Manchetes Socioambientais
As notícias mais relevantes para você formar sua opinião sobre a pauta socioambiental
O trabalho do ISA no monitoramento de "pressões e ameaças" parte do entendimento de que "pressão" é um processo de degradação ambiental (desmatamento, roubo de madeireira, garimpos, incêndios florestais etc) que ocorre no interior de uma área legalmente protegida, como Terra Indígena, Território Quilombola e Unidade de Conservação, como Parques e Florestas Nacionais, levando a perdas de ativos e serviços socioambientais. Ou seja, "pressão" é um processo que pode levar à desestabilização legal e ambiental de determinada área protegida. Já "ameaça", por sua vez, é a existência de risco iminente de ocorrer alguma degradação ambiental no interior de uma área protegida.
Tomadas cumulativamente, as pressões e ameaças podem gerar impactos socioambientais negativos de magnitude e alcance suficientes para desencadear o colapso no funcionamento dos ecossistemas e dos modos de vida das populações locais - e impactos negativos nas cidades. Os povos indígenas e populações tradicionais, como comunidades quilombolas e ribeirinhas, são diretamente atingidos pelas pressões e ameaças por terem seus territórios invadidos, suas florestas desmatadas e seus rios desviados e contaminados.
Aqui no ISA, o trabalho de monitoramento das pressões e ameaças é feito por pesquisadores especializados em antropologia, direito socioambiental, modelagem de uso da terra e avaliação de políticas públicas. A equipe diretamente responsável pelo monitoramento de áreas protegidas do ISA atua na conexão entre pesquisadores, formuladores de políticas públicas e tomadores de decisão. As áreas de atuação desse time abrangem o desenvolvimento de pesquisas científicas e aplicações em sistemas de informação geográfica e ferramentas de monitoramento da situação jurídica, demográfica e projetos governamentais que impactam as áreas protegidas.
O monitoramento de áreas protegidas do ISA possui conhecimento acumulado no monitoramento de pressões e ameaças desde a década de 1980 como um dos primeiros programas da sociedade civil no Brasil a construir uma plataforma organizada de sistemas de informação socioambiental, antes mesmo que setores governamentais. Esse trabalho iniciou-se no antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), em 1983, com o monitoramento de Terras Indígenas no Brasil. Em 1992, ainda no Cedi, foi iniciado o monitoramento das Unidades de Conservação na Amazônia e outras áreas públicas. Seu Sistema de Informação de Áreas Protegidas (SisArp) é um sistema Web com 15 módulos de dados por temas específicos, incluindo o módulo de pressões e ameaças. O SisArp alimenta sites institucionais que disponibilizam dados, mapas, imagens, vídeos, notícias, publicações e análises temáticas. Alguns sites estão listados abaixo, confira!
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Versão especial da Enciclopédia PIB para a educação infantil; |
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o primeiro produto web de referência neste tema, lançado em junho de 2007 |
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painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
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painel de informações sobre o estado das florestas e alertas de pressões e ameaças que impactam as áreas protegidas. |
A secretária-executiva do ISA Adriana Ramos e autores de outras organizações ambientalistas criticam pedido de representantes do agronegócio para que país reduza suas metas climáticas
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 10/9/2024
Na semana na passada, 13 membros daquilo que se convencionou chamar "agro moderno" nacional enviaram uma carta ao Ministério do Meio Ambiente com uma proposta ousada: o Brasil, anfitrião da COP30, deveria simplesmente abrir mão de metas mais estritas de redução de emissões de carbono.
Tendo contribuído quase nada —segundo eles— para a crise climática ora instalada, o país em geral e o setor agro em particular deveriam investir em adaptação, já que hoje a sustentabilíssima produção rural brasileira é prejudicada por eventos extremos encomendados pelas emissões fósseis das nações ricas.
A carta tem timing estratégico: neste momento, o governo elabora o Plano Clima, de onde sairá a nova NDC ("Contribuição Nacionalmente Determinada"), a meta de corte de emissões para o período 2030-35 que o Brasil precisa entregar às Nações Unidas no fim deste ano. Embora o Acordo de Paris seja explícito em determinar que cada NDC precise ser mais ambiciosa que a anterior, e embora o mundo inteiro esteja olhando para o Brasil em busca de liderança nessa agenda, nosso agronegócio acha melhor darmos um passinho atrás.
Repitamos: este é o raciocínio do dito agro moderno, aquele que frequenta conferências do clima e encontros de ESG e que dialoga em fóruns como a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Porque o outro, o "ogronegócio", do qual essa turma diz querer se diferenciar, simplesmente nega o aquecimento global.
Longe de ser uma pobre vítima da crise do clima, o agronegócio brasileiro é responsável por 75% das emissões de gases de efeito estufa do sexto maior emissor de carbono do mundo. Só por desmatamento emitimos em 2022 1,1 bilhão de toneladas brutas de CO2 equivalente, fora as 600 milhões de toneladas de emissões diretas da agropecuária. Se fosse um país, nosso agro seria o sétimo maior poluidor climático do planeta, à frente do Japão.
E, embora a fatia do leão do aquecimento caiba aos combustíveis fósseis, o Brasil, que destruiu a mata atlântica a partir do século 19 e a Amazônia e o cerrado na segunda metade do 20, é um dos dez maiores responsáveis históricos pela mudança do clima.
Precisamos, portanto, fazer mais em corte de emissões. No último dia 26 de agosto, a sociedade civil brasileira mostrou quanto e como: o Observatório do Clima (OC) publicou uma proposta de NDC para o Brasil, com uma meta de corte de 92% das emissões líquidas do país até 2035, limitando-as a 200 milhões de toneladas (em 2022 emitimos 1,7 bilhão). A proposta do OC inclui entre suas principais medidas algo que o agro também reivindica: computar as remoções de carbono nos solos agrícolas para fins de cumprimento de meta. O setor faria melhor se gastasse seu poder de lobby para incluir essas remoções no inventário nacional, em vez de brigar por menos ambição no clima.
Conscientes da importância da agropecuária para o país, resolvemos propor uma agenda positiva mínima para o agro para este ano e o próximo. Ele deveria:
1 - Propor a retirada de pauta de todos os 25 projetos de lei e três PECs do "pacote da destruição". Já que se dizem tão preocupados com adaptação, os missivistas deveriam denunciar as propostas da bancada ruralista que flexibilizam a legislação ambiental e reduzem a resiliência do país;
2 - Aprovar no Congresso o endurecimento de penas para crimes ambientais. Num ano em que o Brasil inteiro está pegando fogo, com prejuízos inclusive para o agro, botar na cadeia quem faz queimada e desmatamento ilegal deveria ser prioridade máxima do setor. E, olha que legal, é uma medida de adaptação e mitigação ao mesmo tempo.
3. Eliminar o financiamento a áreas embargadas, por bancos públicos ou privados (estamos falando com vocês, Banco do Brasil, ItaúBBA e Rabobank!);
4. Demandar do governo uma NDC compatível com 1,5ºC, com desmatamento zero, recuperação total do passivo do Código Florestal e inclusão das remoções pelos solos agrícolas bem manejados.
Essas propostas posicionam o agro brasileiro na liderança da sustentabilidade global às vésperas da COP30. De quebra, ajudam a desembaçar a visão de quem lê a carta para o ministério e confunde seus 13 signatários com o mais arcaico "ogronegócio".
Adriana Ramos
Secretária-executiva do Instituto Socioambiental
Caetano Scannavino
Coordenador-geral do Projeto Saúde e Alegria
Carolina Pasquali
Diretora-executiva do Greenpeace Brasil
Délcio Rodrigues
Diretor-executivo do Instituto ClimaInfo
Marcio Astrini
Secretário-executivo do Observatório do Clima
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O presidente e sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, analisa o debate sobre a redução do uso dos combustíveis fósseis e o papel que a COP-30 pode ter sobre ele
Texto publicado originalmente no portal da Mídia Ninja, em 22/8/2024
A maior parte dos gases do efeito estufa emitidos na atmosfera terrestre vem da queima do petróleo e dos seus derivados. O carvão e o gás natural também são importantes emissores desses gases, mas o petróleo é o ícone mais representativo da era industrial. Apesar dos evidentes e comprovados danos ao clima, novos campos de exploração estão sendo abertos em várias partes do mundo e a produção e consumo seguem aumentando.
Em novembro, a conferência da ONU (COP-29) sobre mudanças climáticas vai se reunir em Baku, Azerbaijão, para avaliar o cumprimento das metas de redução de emissões pelos países, que deverão apresentar as suas novas NDCs, que são os seus compromissos nacionais voluntários apresentados com esse objetivo. A maioria dos países não cumpriu as metas anteriores e os novos compromissos, mesmo sendo atingidos, serão insuficientes para iniciar um processo consistente de redução das emissões globais.
Enquanto isso, as mudanças climáticas escalam. Eventos climáticos extremos estão mais intensos e frequentes. Fenômenos previstos pela ciência para décadas futuras já estão acontecendo. A temperatura média na superfície da Terra bate recordes, o derretimento das geleiras acelera e as águas dos oceanos estão superaquecidas. Ondas de calor ocorrem em todas as partes do mundo, a disponibilidade de água doce diminui. As pessoas sofrem e percebem os seus efeitos.
DESMATAMENTO
Mais de 80% das emissões globais de gases de efeito estufa decorrem da queima de combustíveis fósseis, com destaque para o petróleo. As emissões por desmatamento e uso inadequado do solo não chegam a 20%. Entre os dez maiores emissores atuais, só o Brasil e a Indonésia têm o desmatamento como seu principal fator de emissões. As florestas tropicais ajudam a retirar o excesso de carbono da atmosfera, mas os cientistas constatam que elas vêm perdendo essa condição.
A Amazônia dispõe do maior estoque de carbono florestal do mundo. Desde 2023, o desmatamento na região voltou a cair, de forma mais intensa do que nos demais biomas. Com isso, as emissões brasileiras também voltaram a diminuir e é improvável que outros países estejam fazendo reduções equivalentes. Essa situação reforça o protagonismo do Brasil nas negociações internacionais sobre o clima.
A importância disso é enorme, considerando que a reunião seguinte da ONU sobre clima, a COP-30, em novembro de 2025, deve ocorrer em Belém (PA). Há uma forte expectativa dos países florestais, em desenvolvimento, pelo acesso a recursos compensatórios a serem disponibilizados pelos países industrializados, que são os maiores emissores globais atuais e passados.
COP DO PETRÓLEO
A redução do desmatamento ajuda a combater o aquecimento global e a destinação de recursos compensatórios contribui para financiar o desenvolvimento sustentável nos países florestais. Mas são insuficientes para reverter o efeito estufa ou evitar que ele destrua as florestas e os demais biomas naturais.
A COP-30 será a primeira a se realizar na Amazônia e é de se esperar que ela reforce a proteção das florestas e o financiamento de projetos que promovem a redução do desmatamento e da degradação florestal (REDD). Também será uma oportunidade para que os participantes das negociações internacionais sobre o clima possam conhecer a região.
Porém, se quisermos, de verdade, conservar as florestas e a sua biodiversidade, assim como a nossa própria sobrevivência e descendência, a COP-30 precisa ir muito além da questão florestal. A emergência climática está exigindo medidas concretas e imediatas para reduzir a produção e o consumo dos combustíveis fósseis. Sem essa redução e, mesmo zerando o desmatamento, a Amazônia não terá como sobreviver.
Sendo assim, a reunião de Belém, para ser a “COP da floresta”, precisa, antes, ser a “COP do petróleo”. O Brasil, reduzindo com consistência o desmatamento e, sendo, também, produtor de petróleo, reúne as melhores condições para liderar um pacto para reduzir efetivamente a sua produção e consumo. A abertura de novas áreas de exploração, inclusive na região da foz do Rio Amazonas, deveria estar subordinada às metas e condições desse pacto.
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Partidos e centrais sindicais contestam retrocessos da nova lei de agrotóxicos, sancionada no fim do ano passado e que viola direitos à saúde e ao meio ambiente
A Lei 14.785/2023, conhecida como “Pacote do Veneno”, é objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada, nesta quarta-feira (14/8), Dia de Combate à Poluição, no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo PSOL, Rede Sustentabilidade, PT, Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar). A iniciativa conta com o apoio técnico e jurídico de organizações socioambientais e movimentos populares.
A ação destaca que a norma, ao enfraquecer a regulamentação de agrotóxicos, viola princípios constitucionais norteadores da administração pública, como legalidade e eficiência, e direitos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde, dos povos indígenas, à vida digna, do consumidor, de crianças e adolescentes, entre outros. Os autores da ADI requerem que seja reconhecida a inconstitucionalidade antes do encerramento do julgamento da ação, por meio de uma medida cautelar.
Jakeline Pivato, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica que a lei vai na contramão das reais necessidades de saúde e meio ambiente apontadas historicamente pela sociedade civil organizada.
"Flexibilizar uma lei tornando-a incapaz de proteger o ser humano e o meio ambiente é incentivar a morte. Historicamente, os movimentos, organizações e a sociedade civil têm denunciado os impactos dos agrotóxicos no Brasil. A Lei do Pacote do Veneno traz, para uma realidade já trágica, produtos ainda mais perigosos. Além de limitar a capacidade de ação de nossos órgãos reguladores, como Anvisa e Ibama. Portanto, denunciamos que essa lei fere o direito à alimentação saudável, ao meio ambiente sustentável e a saúde da população brasileira. Nesse sentido, seguimos em luta afirmando sua inconstitucionalidade ", diz Pivato.
Flexibilização da lei
A Lei 14.785/2023 constitui uma mudança profunda na legislação anterior, a Lei 7.802/1989. Na legislação antiga, cabia ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a atribuição conjunta de avaliação, a partir de critérios técnicos e científicos, para a liberação ou veto de registros e fiscalização dos agrotóxicos. Na nova norma, a atribuição tornou-se tarefa exclusiva do Mapa, pasta sob forte influência do agronegócio. Aos demais órgãos cabe apenas a revisão complementar.
O projeto de lei que originou a atual lei do “Pacote do Veneno” é de autoria do ex-senador Blairo Maggi (PP-MT), conhecido como "rei da soja". O projeto contou com intenso lobby do agronegócio e esforço da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). O argumento central era a necessidade de atualização da normativa, pois a legislação então vigente impediria a aprovação de novos registros.
No entanto, apesar desse argumento, o Brasil teve, nos últimos anos, uma escala crescente de novas autorizações de agrotóxicos. Somente no ano de aprovação do “Pacote do Veneno”, 2023, foram 555 novos registros.
Direção contrária à tendência mundial
Além da centralização do processo de liberação de registro no Mapa, a nova lei tem uma definição mais vaga do critério para veto a registros de agrotóxicos com maior grau de toxidade, além de revogar uma série de regras relativas a pagamento de taxas ambientais e dispensa do registro de agrotóxicos para fins de exportação, entre outras medidas.
“[A Lei] vai na direção contrária à tendência mundial de limitação e proibição desse tipo de substância tóxica, aumenta o risco de contaminação ambiental e humana, eleva o perigo de incidência de câncer e outras doenças agudas e crônicas relacionadas à exposição da população brasileira aos agrotóxicos, contamina os ecossistemas nos diferentes biomas brasileiros e põe em risco sobretudo o trabalhador rural e contraria os princípios da prevenção, precaução, agroecologia e do desenvolvimento sustentável”, aponta o documento protocolado ontem.
Impactos à saúde e ao meio ambiente
À época da aprovação do projeto de lei pelo Congresso, a Anvisa destacou em nota que a medida, caso fosse implementada, colocava “vidas brasileiras em risco”. Já o Ibama classificou o projeto de lei como um “flagrante retrocesso socioambiental”.
Ao longo da tramitação, a proposta foi repudiada e denunciada por outros órgãos públicos, autoridades nacionais e internacionais, conselhos de direitos e controle social e órgãos do Sistema de Justiça, como Relatorias Especiais da ONU, o Conselho Nacional de Direitos e o Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Desde 2011, o Brasil está no topo do ranking de países que mais usam agrotóxicos. Só em 2022, foram aplicados aqui mais agrotóxicos do que a quantia somada dos Estados Unidos e China – ao todo, 800 mil toneladas , segundo a FAO/ONU. Entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação de 56.870 pessoas por agrotóxicos no país.
“Considerando a expressiva subnotificação nesses casos, da ordem de 1 para 50, o número é potencialmente bem maior, podendo chegar a 2.843 milhões de pessoas intoxicadas por agrotóxicos no país”, aponta a ação. Os autores ainda destacam o alto risco de registros e uso de agrotóxicos com potencial cancerígeno.
A ADI ainda destaca a vinculação do uso de agrotóxicos à produção de commodities, como soja e milho, e não de maneira genérica a alimentos das famílias brasileiras como é presente no discurso do agronegócio. Outro destaque é o impacto ambiental. “Já é fartamente documentado que esse tipo de produção agropecuária gera desmatamento e, consequentemente, contribui para as emissões de GEE [gases de efeito-estufa]”, enfatizam os autores.
“A Ação Direta de Inconstitucionalidade elaborada pelos partidos políticos em conjunto com organizações da sociedade civil e movimentos sociais traz medidas justas e necessárias", afirma Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. “A nova lei dos agrotóxicos contém um conjunto de retrocessos inaceitáveis. Não há como aceitar a inconsequente flexibilização de regras e o enfraquecimento do controle governamental que ela impõe”, completa.
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Na última hora, oposição pressionou e conseguiu retirar critérios de raça, etnia, gênero e deficiência das políticas sobre o tema
Às vésperas do Dia do Meio Ambiente, comemorado nesta quarta (5/6), e mais de um mês após o início da tragédia causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, o Congresso deu, afinal, uma resposta específica e definitiva sobre a questão da adaptação climática ao país.
O plenário da Câmara aprovou, na noite desta terça (4), o projeto de lei (PL) que estabelece regras gerais para a elaboração e implantação dos planos nacional, estaduais e municipais sobre o tema. O PL 4.129/2021 segue agora à sanção presidencial.
O resultado é considerado uma vitória dos ambientalistas e da sociedade civil. O projeto foi indicado como prioritário pelo Observatório do Clima (OC) e a Frente Parlamentar Ambientalista no pacote de propostas que o Congresso deveria aprovar em resposta à catástrofe enfrentada pelos gaúchos. As duas entidades também encaminharam uma lista de PLs que deveriam ser rejeitados - o chamado “Pacote da Destruição”.
“O que o desastre no Rio Grande do Sul mostrou é que a crise climática infelizmente já é uma realidade. Ela vem para afetar a todos nós e nós precisamos adaptar nossas cidades, estados, o nosso país”, afirmou a deputada e autora principal do projeto, Tábata Amaral (PSB-SP). “A gente sabe que, se o poder público não se adianta, a gente está sempre remediando e o mais vulnerável, sempre, sempre vai ser o que mais sofre”, continuou.
O PL 4.129 prevê que os planos de adaptação sejam integrados aos planos de ação climática, conforme a Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PNMC). Além disso, municípios, estados e União também devem alinhar estratégias de mitigação e adaptação aos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, o tratado internacional sobre a emergência climática. O PL prevê ainda que os planos de adaptação municipais e estaduais priorizem áreas, setores e populações mais vulneráveis (saiba mais no quadro ao final da notícia).
“Os planos subnacionais são importantes, porque são os instrumentos adequados para trazer soluções que considerem as especificidades dos territórios brasileiros”, comenta Ciro Brito, assessor do ISA.
“Em plena crise climática e enfrentando a situação de tragédia no Rio Grande do Sul, a aprovação de uma lei com diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima é com certeza bem-vinda”, diz Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
“Espero que o Congresso continue nessa linha de trabalho e, por coerência, afaste da pauta os projetos que integram o Pacote da Destruição. Não adianta falar de adaptação e, ao mesmo tempo, flexibilizar as regras de controle do desmatamento ou implodir o licenciamento ambiental, potencializando a implantação de empreendimentos que desconsideram meio ambiente e clima”, continua.
Pressão da oposição e alterações no texto
O PL 4.129 foi aprovado no Senado, no dia 15/5, após sofrer resistência da oposição, interessada em desgastar o governo. Uma negociação prévia viabilizou que a votação no plenário da Câmara, nesta terça, fosse simbólica (consensual, sem registro individual de votos). Mesmo assim, o Partido Liberal (PL), a oposição e a minoria manifestaram-se contra e conseguiram que o relator de plenário, Duarte Jr. (PSB-MA), alterasse o texto na última hora.
Com a pressão, foram rejeitados os incisos VI e X do artigo 2º, que mencionavam expressamente que os planos de adaptação deveriam considerar critérios de raça, etnia, gênero e deficiência. Os termos “gênero” e “raça” teriam incomodado em particular a oposição, engajada no desmonte das políticas de proteção dos direitos de negros, mulheres, indígenas e comunidade LGBTQIA+ em agendas diversas.
Os dois dispositivos foram substituídos por outro, previsto no texto original aprovado inicialmente pela Câmara, em 2022, que prevê que as ações de adaptação deverão levar em conta “setores e regiões mais vulneráveis, a partir da identificação de vulnerabilidades, por meio da elaboração de estudos de análise de riscos e vulnerabilidades climáticas”.
“A exclusão desses dois incisos enfraquece as chances de implementação de planos de adaptação às mudanças climáticas que deem prioridade às comunidades mais vulneráveis diante do aumento dos eventos climáticos extremos”, lamenta Thaynah Gutierrez, da Rede por Adaptação Antirracista.
“Esta modificação sublinha a urgência de uma manifestação mais incisiva do governo federal no plano clima adaptação, com uma abordagem interseccional e transversal, que priorize as populações negras, indígenas, mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência”, defende.
"As desigualdades de raça e gênero estão intrinsecamente ligadas, e devem ser tratadas de maneira integrada. Elas revelam o racismo ambiental. No apagar das luzes, a extrema direita derrubou os termos ‘gênero’ e ‘raça’, pontos fundamentais do projeto. A articulação de movimentos negros, ambientalistas e de direitos humanos para que o PL 4129 melhorasse foi enorme. Retirar pontos fundamentais para a sociedade é um prejuízo a lei", criticou Mariana Belmont, assessora de clima e racismo ambiental do Geledés - Instituto da Mulher Negra.
"O Congresso Nacional precisa sentir a urgência da realidade e da emergência climática no país. Agora cabe ao Ministério do Meio Ambiente reforçar e se responsabilizar em garantir raça e gênero, não só transversal, não só como tema, mas como garantia de direitos", afirma.
Tema deve ser retomado por planos setoriais
A secretária do Clima do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ana Toni, reforça que a proposta aprovada pela Câmara é boa, mas também lamentou a alteração feita de última hora. Ela informou que o tema será retomado pelo governo na elaboração dos planos setoriais de adaptação climática que estão sendo discutidos com ministérios e setores da sociedade nos últimos meses.
"Estamos fazendo um plano para a população indígena, outro plano para o combate ao racismo, outro para pessoas vulneráveis, mulheres. Esses planos estão sendo feitos, mas seria complementar ter nisso na lei, obviamente”, comentou. De acordo com Toni, os planos setoriais devem ser formalizados até o fim do ano, por meio de uma resolução do Comitê Interministerial de Mudança Climática.
Toni falou com a reportagem do ISA após uma cerimônia no Palácio do Planalto em que foram anunciadas uma série de medidas em comemoração ao Dia do Meio Ambiente. Entre elas, foi assinado um protocolo entre o MMA e o Ministério das Mulheres para implementar ações de participação das mulheres nas políticas ambientais e climáticas.
Quais os principais pontos do PL 4.129?
Articulação federativa. Articulação entre União, estados e municípios na elaboração, implantação e monitoramento dos planos de adaptação.
Indicadores. Estabelecimento de indicadores para monitoramento e avaliação dos planos, que deverão ser revistos a cada quatro anos.
Integração entre adaptação e outros planos. Estabelecer a integração entre planos de adaptação e mitigação da mudança do clima, estimulando que todos os setores de políticas governamentais considerados vulneráveis aos impactos do Clima (agricultura, indústria, infraestrutura, populações vulneráveis etc) possuam estratégias para a gestão do risco climático
Áreas e populações prioritárias. Os planos de adaptação nacional, municipais e estaduais deverão priorizar áreas e populações mais vulneráveis. Esses critérios deverão levar em conta a “identificação, quantificação e reporte contínuo das vulnerabilidades e ameaças climáticas”.
Apoio aos municípios. Priorização dos municípios mais vulneráveis e a possibilidade de criação de “consórcios intermunicipais”.
Participação social. Garantia de participação social na coordenação, gestão e revisão dos planos nas várias esferas de governo.
Financiamento. Possibilidade de acesso ao Fundo Nacional de Mudança Climática (FNMC) e à cooperação internacional para o financiamento da elaboração e das ações dos planos.
“Soluções baseadas na natureza”. Adoção de medidas como a restauração florestal e a criação de áreas protegidas urbanas, como parte das estratégias de adaptação, considerando os benefícios adicionais e sinergias com as ações de mitigação.
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O presidente e sócio fundador do ISA, Márcio Santilli, comenta as consequências recentes da crise climática sobre o país
Artigo Publicado originalmente no site da Mídia Ninja
Há sinais de que chega ao fim mais um ciclo do fenômeno El Niño, que decorre do aquecimento periódico das águas na região equatorial do Oceano Pacífico, próxima do litoral peruano. Já se detecta a presença de águas geladas e ele deve se converter, nos próximos meses, no fenômeno La Niña, o seu oposto, ou seja, o resfriamento da mesma região. São ocorrências já conhecidas pelos cientistas, assim como a sua influência sobre o clima da América do Sul e do mundo todo.
Desta vez, agravado pelo efeito estufa, o El Niño deixou um rastro de devastação inédito. Porto Alegre está inundada há trinta dias e outras cidades gaúchas terão que ser reconstruídas em outras áreas. O mesmo fenômeno climático provocou, em 2023, a estiagem mais aguda da história recente da Amazônia. Com a redução do volume de chuvas no verão, a mesma crise promete se repetir no próximo semestre. Com ela, virão as cenas já conhecidas de pessoas se deslocando por grandes distâncias para encontrar água potável e comida e outros insumos, barcos encalhados e cargas perdidas, lagoas fétidas, repletas de peixes mortos.
Um outro fator contribuiu para o ineditismo da última estiagem amazônica: o aquecimento, também, das águas do Atlântico Equatorial, entre o nordeste da América do Sul e o noroeste da África. Os cientistas achavam que seria um evento temporário, mas ele vem persistindo há mais de nove meses, como se não tivesse havido inverno.
Toda a superfície da Terra está sujeita ao aquecimento global, mas ele, por si só, não explica um aumento da temperatura do Atlântico tão abrupto. As causas exatas desse aquecimento anormal ainda são incertas, com várias hipóteses em discussão, como a redução da atividade dos ventos alísios no Atlântico e a diminuição das emissões de enxofre por navios, que poderiam estar permitindo que os oceanos absorvam mais radiação solar.
“Não sabemos realmente o que está acontecendo. E não sabemos realmente o que está acontecendo desde março do ano passado. É como se todo o clima tivesse avançado cinquenta ou cem anos para a frente, o que é estranho”, disse à revista New Yorker Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa.
E daí?
Daí que são os ventos alísios que trazem a umidade do Atlântico para o interior do continente sul-americano, mobilizados pela presença da floresta amazônica e pela dinâmica dos “rios voadores”. O avanço do desmatamento na faixa costeira do Norte e Nordeste também dificulta o movimento dos ventos, reduz a umidade e agrava a estiagem em toda a Amazônia.
Como o calor expande os corpos, o aquecimento das águas provoca o aumento do nível dos oceanos, potencializado pelo derretimento das geleiras terrestres. Também altera o curso de correntes marítimas e torna mais frequentes e intensos os furacões, as erosões costeiras, as ressacas e as ondas gigantes.
A taxa de elevação do nível dos oceanos mais do que dobrou desde os anos 1990, aumenta a cada ano desde 1993 e, em 2023, teve sua maior elevação. Um estudo da Organização Mundial de Meteorologia, divulgado em maio, aferiu uma média global de 3,42 mm/ano, chegando a 3,96 na costa atlântica da América do Sul.
Considerando as reentrâncias, o litoral brasileiro se estende por 9.200 km. Florianópolis, Vitória e São Luís estão situadas em ilhas oceânicas. O aumento contínuo no nível do Atlântico exerce um crescente efeito de barragem sobre a foz dos rios, agravando as enchentes no período de chuvas. Pode-se imaginar a extensão dos impactos que uma maré mais agressiva pode causar em todo o delta amazônico, inclusive sobre a região metropolitana de Belém.
Outras capitais e cidades costeiras têm depressões abaixo do nível do mar, como Recife, e populações vulneráveis a inundações vivendo em palafitas, como o Rio de Janeiro.
Significa dizer que o Brasil é muito vulnerável ao aumento do nível e da temperatura do Atlântico e que a notícia da sua persistência é péssima. O país estará mais exposto a eventos climáticos extremos, sua infraestrutura urbana e turística não é adaptada e está ameaçada.
Mortandade
O aumento da temperatura e do nível do Atlântico vai afetar ilhas, praias, lagunas, manguezais e corais, quebrando as cadeias alimentares e ameaçando todas as espécies marinhas. Comunidades caiçaras serão diretamente atingidas, mas também a indústria da pesca, o turismo, a navegação e os setores imobiliário e de seguros, assim como a oferta de pescado e frutos do mar para consumo da população.
Além disso, é a dinâmica da vida marinha que faz dos oceanos fontes generosas de oxigênio. Na sua ausência da vida, eles seriam transformados em gigantescos emissores de metano, agravando muito mais a crise climática global. É o frescor da brisa do mar se convertendo em um bafo quente, desagradável, insalubre e destrutivo.
Belém está se preparando para receber a COP-30, conferência internacional sobre as mudanças climáticas, em 2025, mas não está se preparando para os efeitos dessas mudanças. Por exemplo, as obras de infraestrutura que estão sendo feitas levam em conta o evento e as oportunidades de financiamento que ele traz, mas não os riscos climáticos.
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Projeto já passou pelo Congresso e está em análise pelo Executivo. STF tem decisões sobre necessidade de licenciamento para atividades com danos similares
A Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), o ISA, o Observatório do Clima (OC) e o WWF Brasil publicaram notas técnicas recomendando que o presidente Lula vete integralmente o Projeto de Lei (PL) nº 1.366/2022, que exclui a silvicultura (monocultura de pinus e eucalipto para fins comerciais) do rol de atividades potencialmente poluidoras sujeitas ao licenciamento ambiental e ao pagamento da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA). Aprovado no início de maio, o projeto altera a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) e passou em plenário horas após ganhar caráter de urgência.
A nota da Abrampa assinala que o PL viola a legislação nacional e internacional a respeito da proteção da biodiversidade. “Trata-se de rompimento explícito com o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, especialmente quando toda a comunidade científica isenta e não comprometida com a atividade econômica não foi ouvida e não teve seus estudos respeitados”, diz o texto.
Para o presidente da organização, Alexandre Gaio, a aprovação do PL é um grave retrocesso. “A silvicultura, especialmente em larga escala, possui um potencial poluidor significativo que não pode ser ignorado. Permitir que essa atividade ocorra sem o devido licenciamento ambiental é um convite à ampliação da degradação ambiental e à extinção de espécies. O projeto afronta diretamente o interesse público e a Constituição da República e ainda causa clara insegurança jurídica, razões pelas quais instamos o presidente da República a vetá-lo."
O documento enviado a Lula pelo ISA, OC e WWF Brasil baseia-se em reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que sustentam a necessidade do licenciamento para atividades que possam causar degradação ambiental, como é o caso do PL 1.366/2022. As organizações alertam para potenciais impactos negativos da silvicultura, entre eles:
• fragmentação de habitats, aumentando a vulnerabilidade de espécies nativas e facilitando a propagação de espécies exóticas invasoras;
• contaminação de corpos d'água pela utilização intensiva de agrotóxicos e fertilizantes, afetando a saúde das populações locais;
• redução da biodiversidade e comprometimento de serviços ecossistêmicos essenciais, como a polinização e a regulação do clima, pela conversão de áreas naturais em monoculturas florestais;
• impactos sociais como a possível desapropriação de comunidades tradicionais e a alteração de seus modos de vida, bem como conflitos pelo uso da terra e recursos hídricos.
“O presidente da República tem todos os elementos nas mãos para vetar o projeto de lei”, afirma Mauricio Guetta, consultor jurídico do ISA. “São múltiplas as decisões do STF afirmando a inconstitucionalidade de se dispensar a silvicultura de licenciamento ambiental, por se tratar de atividade potencialmente causadora de degradação ambiental. A dispensa de licenciamento para a atividade vai resultar em descontrole ambiental generalizado, com impactos aos recursos hídricos e à biodiversidade, em prejuízo da população", analisa Guetta.
Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do OC reforça esse entendimento. “O texto, na prática, implicará inexistência de licenciamento ambiental, e não apenas isenção da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental do Ibama. Não há como liberar esses empreendimentos dessa forma -- nem da licença, que será em regra estadual, nem da TCFA. Grandes projetos do setor podem gerar problemas, como rebaixamento de lençol freático, além de implicações graves para a biodiversidade e as comunidades locais. A análise técnica de tipologias de empreendimentos necessita ser realizada pelos órgãos ambientais. Essa não deve ser uma decisão política.”
A analista sênior de políticas públicas do WWF-Brasil, Daniela Malheiros Jerez, destaca que “sem o licenciamento ambiental, não haverá a adoção de medidas para a prevenção, mitigação ou compensação de impactos socioambientais, resultando em insegurança jurídica e conflitos não solucionados previamente".
As organizações concluem que o PL deve ser vetado por inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, reforçando a importância do licenciamento ambiental como medida preventiva essencial para o desenvolvimento sustentável do país.
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O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, comenta as implicações políticas do desastre climático enfrentado pelos gaúchos
Artigo pulicado originalmente no site da Mídia Ninja em 22/5/2024
As águas do Guaíba começam a baixar e a enchente atravessa a Lagoa dos Patos, até vencer a resistência da maré alta para desaguar no Atlântico. Vão deixando para trás um rastro brutal de destruição: deslizamentos nas serras e transbordamento dos rios, arrastando pessoas, animais, cultivos, pontes, estradas, cidades e bairros inteiros alcançados pelo caminho até invadirem o centro de Porto Alegre, superando o sistema de diques construído para proteger a cidade desde a última grande cheia, em 1941.
Ainda estão ocorrendo operações de salvamento, desaparecidos estão sendo procurados e havia 162 mortes confirmadas até às 18h desta quarta (22). Há milhares de desabrigados, muitos perderam tudo e não têm para onde voltar. Será preciso esperar as águas baixarem para estimar a extensão exata dos danos, mas é certo que a economia e a população foram profundamente atingidas.
Na virada do ano, outra capital, Manaus, e muitas cidades da Amazônia, ficaram isoladas, sujeitas à desassistência e ao desabastecimento de água, com a seca, também inédita, que afetou a região. As cenas de Manaus encoberta pela fumaça das queimadas, do isolamento das comunidades ribeirinhas e da mortandade massiva de peixes assustaram todo mundo.
SOLIDÁRIOS E INDIGNADOS
Mas a tragédia gaúcha está provocando uma onda maior de engajamento da sociedade do que em eventos anteriores, no sentido da solidariedade e da indignação. Emociona a atitude dos gaúchos e de gente vinda de outros estados ao socorrer, alimentar, vestir e acolher as vítimas. Prefeituras, empresas, igrejas e organizações da sociedade civil promovem campanhas, em centenas de municípios, em várias regiões do país, com apoio ativo da população, para recolher alimentos, roupas, produtos de higiene e remédios e enviá-los ao Rio Grande do Sul. Sem contar a profusão de doações via pix.
Merecem o repúdio geral os oportunistas que agravam a tragédia em benefício próprio, como os que montam esquemas para desviar doações em dinheiro ou mantimentos, ou que retêm produtos essenciais para aumentar preços. Piores ainda são os que espalham notícias falsas para ampliar o caos, esperando colher benefícios políticos para grupos extremistas.
O que mais irrita é a ausência de providências dos governos para prevenir mortes e danos, diante dos recorrentes eventos extremos em várias regiões do país. Não dá para dizer que não se sabia, pois o agravamento da crise climática vem de longe. Trata-se de tragédia anunciada, de omissão, negligência ou conivência.
RESPONSABILIDADES
O governador gaúcho, Eduardo Leite (PSDB), queixa-se que “não é hora de apontar culpados”. Todo mundo concorda que nada é mais urgente do que socorrer as vítimas. Mas passou a hora de corrigir erros e começar a construir soluções. Sebastião Melo (MDB), prefeito de Porto Alegre e candidato à reeleição, não executou os recursos que constam no orçamento deste ano para a prevenção de desastres. O investimento zero denota ausência de políticas de prevenção.
A deterioração dos solos e da proteção ambiental no Rio Grande do Sul antecede os mandatos de Leite. O próprio Guaíba, que sempre havia sido um rio, foi reclassificado como lago, nos anos 90, para reduzir a largura da mata ciliar legalmente protegida. Fatores climáticos contribuíram para que muitos gaúchos comprassem terras e mudassem para outros estados, contribuindo para descapitalizar o Rio Grande.
O governador, no entanto, persiste e agrava a deterioração. No início do primeiro mandato, sancionou a piora de centenas de disposições legais de proteção ambiental. Não fortaleceu a Defesa Civil, apesar da recorrência das enchentes. Ele fala em um “Plano Marshall” para reconstruir o Rio Grande, a começar pela implantação de quatro “cidades provisórias” que, segundo ele, poderiam ser feitas em pouco tempo. Já Sebastião Melo, em final de mandato e de orçamento, quer contratar uma empresa americana para projetar uma “nova Porto Alegre”.
CACOFONIA FEDERAL
A onda de indignação chegou ao Congresso, despertando a atenção de muita gente para o que andam fazendo deputados e senadores. Saiu da bolha a informação sobre o “Pacote da Destruição”, quase trinta projetos de lei e de emendas à Constituição propostos pelos ruralistas e que pretendem fragilizar ainda mais a proteção ambiental. Estão entre as propostas fragilizar o licenciamento ambiental, reduzir a extensão das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais e desproteger a vegetação nativa não florestal, entre outras.
Também vieram à tona posições já assumidas por deputados gaúchos que negam a evidente crise climática. A bancada espera a chuva passar para retomar a ofensiva à legislação socioambiental.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sentiu a pressão e apressou a aprovação, com emendas, de um projeto de lei originário da Câmara para instituir os planos municipais, estaduais e federal de adaptação à mudança do clima. A Câmara precisa decidir sobre as emendas do Senado e espera-se igual presteza do seu presidente, Arthur Lira (PP-AL). Essa lei não cria instrumentos coercitivos e não dispõe sobre os recursos necessários para implantar esses planos, mas fortalece iniciativas em curso e estimula outras, além de qualificar e qualificar o debate sobre adaptação na campanha eleitoral que se inicia.
Já a extrema direita boicota ativamente as medidas federais, investe na disseminação de informações falsas e na política do “quanto pior, melhor”. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi o único voto contrário à lei dos planos de adaptação. Seus irmãos, Eduardo e Carlos, deputado federal e vereador, estiveram pessoalmente no Rio Grande para promover a radicalização política e insuflar o boicote ao governo federal.
O presidente Lula já foi três vezes ao Rio Grande desde o início da crise climática, acompanhado de vários ministros, para prestar solidariedade às vítimas, tomar pé da grave situação e anunciar medidas, como o envio de efetivos e de equipamentos e a liberação de recursos emergenciais. Porém, como ocorre em outras situações críticas, as ações federais são mal articuladas, o que irrita Lula.
O governo federal está fazendo a lição de casa ao reduzir o desmatamento na Amazônia e assumir o seu protagonismo na política climática mundial. A COP-30, reunião da ONU sobre o tema, será realizada em Belém, Pará, no final de 2025, e o Brasil deve chegar lá com emissões em redução e condições de cobrar dos demais emissores globais o cumprimento das suas metas. Porém, novas frentes de produção de petróleo estão sendo abertas, inclusive na Amazônia, e o “Pacote da Destruição” nos ameaça. O país está muito atrasado na adaptação climática.
HORA DE SOLUÇÕES
Eduardo Leite está incomodado com as iniciativas do governo federal que, por sua vez, o considera ingrato. Ele sempre acha pouco e pede mais. Mas Lula também maculou a relação ao criar um ministério extraordinário para cuidar da reconstrução do Rio Grande e nomear, para chefiá-lo, o deputado federal gaúcho Paulo Pimenta (PT), até então ministro das Comunicações, tido como futuro candidato petista ao governo estadual. Leite acusa Lula de organizar um governo paralelo.
A criação de um ministério é controversa, pois os recursos e as competências para reagir à emergência e reconstruir o estado estão em outros ministérios e a articulação entre eles deveria ser garantida pela Casa Civil. Na eventualidade de novas crises, em outros estados, seriam criados outros ministérios? Paulo Pimenta é um grande quadro político, mas não é uma autoridade climática e não dispõe do reconhecimento das demais forças políticas para poder realizar essa missão.
Leite também exagera no direito de errar. Não acha que seja hora de reconhecer os seus erros passados, mas chegou a reclamar das doações de mantimentos, alegando que elas poderiam prejudicar o comércio local. Porém, ele sabe que a produção estadual foi duramente impactada e que a população está sujeita à extorsão com a inflação de preços, num momento de extrema necessidade. Leite não compreende e desmobiliza o abraço do Brasil ao seu estado.
Espera-se que Lula e Leite (governos federal e estadual), numa hora dessas, superem-se e se entendam. São líderes muito importantes, mas o desafio é muito maior do que eles e do que todos nós. A demora e o desperdício de energia política ocorrem contra nós. E aí estão os extremistas, criminosos, ávidos para destruir Lula, Leite, as políticas públicas e a democracia. Espera-se que eles tenham a humildade e a grandeza de rever erros e de voltar atrás. Devem unir suas forças para enfrentar esta e outras crises climáticas que virão.
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Toda vegetação “não florestal” do país, de todos os biomas, está em perigo. Mais de 50% do Pantanal está ameaçado
Reportagem atualizada às 10:50 de 21/3/2024.
Com 38 votos, principalmente de ruralistas e bolsonaristas, contra 18 dos partidos de esquerda, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou, hoje (20), um projeto de lei (PL) que permite devastar, pelo menos, 48 milhões de hectares só de campos nativos, o equivalente às extensões somadas do Rio Grande do Sul e do Paraná.
Se o PL 364/2019 for aprovado, na prática, poderiam ser riscados do mapa mais de 50% do Pantanal, 32% dos Pampas e 7% do Cerrado. Além disso, 15 milhões de hectares na Amazônia também estão ameaçados ‒ o que representa mais de 16 vezes a última taxa de desmatamento do bioma (2022-2023), de 900 mil hectares. Os dados são de uma nota técnica da SOS Mata Atlântica que analisou os impactos do projeto sobre a vegetação natural campestre.
O PL foi aprovado em caráter terminativo, isto é, deve seguir direto ao Senado. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), no entanto, já avisou que deve apresentar um recurso para que ele passe pelo plenário da Câmara primeiro. Lá, o pedido precisa ser aprovado por maioria mas quem decide se será votado ou não é o presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), parceiro de primeira hora dos ruralistas.
A extensão de vegetação nativa passível de supressão, porém, é ainda maior, porque o PL coloca em risco não apenas os campos nativos mas qualquer tipo de vegetação “não florestal” em todo Brasil.
"A proposta pretende revogar toda a proteção da vegetação nativa não florestal, em vigor no Brasil desde 1934, liberando-a para o desmatamento generalizado. O impacto é abissal em biomas predominantemente não florestais, como Pantanal, Cerrado, Caatinga e Pampa, mas também vai afetar enormes áreas não florestais na Amazônia e na Mata Atlântica", alerta o consultor jurídico do ISA Mauricio Guetta (saiba mais no box ao final da notícia).
Ao propor alterar o parágrafo 2º do artigo 3º do novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), o parecer do deputado Lucas Redecker (PSDB-RS) legaliza os desmatamentos antigos de toda vegetação “predominantemente não florestal” do país inteiro e permite seu desmatamento de agora em diante, de forma automática. O relatório faz isso por meio de uma redação capciosa, que classifica esse tipo de cobertura vegetal, de antemão, “área rural consolidada”, ou seja, já convertida para uso agropecuário - mesmo que ela esteja em estado original de conservação (leia abaixo).
“Art. 3º. § 2º. Nos imóveis rurais com formações de vegetação nativa predominantemente não florestais, tais como os campos gerais, os campos de altitude e os campos nativos, para os fins do inciso IV do art. 3º, é considerada ocupação antrópica a atividade agrossilvipastoril preexistentes a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, caracterizando-se tais locais, para todos os efeitos desta Lei, como área rural consolidada.”
“Art.82-B. As disposições relativas à regularização ambiental de imóveis rurais previstas nesta Lei se aplicam a todo o território nacional e podem abranger fatos pretéritos à edição desta Lei [...]."
Parecer do PL 364/2029 do deputado Lucas Redecker (PSDB-RS)
‘Afirmação falsa’
Durante a sessão da CCJ, Redecker e outros ruralistas insistiram que o projeto afetaria um tipo restrito de vegetação, de pouca importância e em região limitada geograficamente. Chegaram a afirmar que o PL não abre margem para derrubar “uma árvore sequer”.
“Estamos tratando de campos em áreas consolidadas”, repetiu o relator. “São campos antropizados, ou seja, naqueles lugares que o campo não teve ascensão humana, não teve pastoreio de animais com a pecuária, não vai se enquadrar neste (sic) projeto ”, continuou.
“A afirmação de que o texto se limita aos campos é falsa, pois a expressão ‘tais como’, na redação atual, denota que os tipos de vegetação mencionados ‒ campos gerais, campos de altitude e campos nativos ‒ são meros exemplos do conteúdo principal, que é a vegetação não florestal em geral”, explica Guetta.
“O PL 364 é a maior das boiadas contra todos os biomas brasileiros”, critica a diretora de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro. “É um ataque grave contra as agendas do clima, da água e da biodiversidade, um atentado contra os nossos patrimônios naturais e que recoloca o Brasil na contramão do mundo”, completa.
Ribeiro lembra que a vegetação não florestal tem grande importância ecológica. Esses ecossistemas são fundamentais para a manutenção de nascentes e aquíferos, por exemplo, e sua destruição pode colocar em risco o abastecimento de água de várias regiões.
Projeto original
O projeto original do deputado Alceu Moreira (MDB-RS) visava apenas resolver uma demanda de agricultores de alguns municípios da Serra Gaúcha. Entre 2016 e 2019, vários deles foram autuados pelo Ibama por converter essas áreas para uso agropecuário. A ideia era regularizá-las do ponto de vista ambiental. A proposta retirava dos “campos de altitude” a proteção conferida pela Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006), aplicando a eles as normas menos restritivas do Código Florestal.
A bancada ruralista aproveitou a votação do PL na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, no final de 2022, para distorcer o objetivo inicial e ampliar seu impacto em escala nacional. Depois disso, organizações ambientalistas conduziram uma negociação complexa com prefeitos e entidades de produtores rurais do Rio Grande do Sul, para retomar e ajustar o escopo original. Redecker desconsiderou o entendimento, no entanto.
Biomas e fisionomias vegetais no Brasil
O país é dividido em seis biomas: Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal. O bioma é o conjunto de ecossistemas caracterizados por climas e fisionomias de vegetação semelhantes. Como nação de maior biodiversidade no mundo, temos uma enorme variedade delas. O IBGE lista mais de 30, entre categorias diferentes de florestas, savanas, estepes e outras paisagens em que predominam ou combinam-se árvores, arbustos, gramíneas, a influência marinha, de rios e lagos, por exemplo (veja mapa abaixo).
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Projeto prevê diretrizes gerais para planos nacional, estaduais e municipais, além de fontes de financiamento. Pressão ruralista deve continuar durante tramitação
Texto atualizado em 29/2/2024, às 18:17
Errata: informamos inicialmente que, com as alterações promovidas no parecer do PL 4.129/2021, o agronegócio não seria mais obrigado a ter um “plano próprio” de adaptação climática. Na verdade, as mudanças desvinculam os planos de adaptação do setor à execução do “Plano ABC” de economia de baixo carbono na produção rural.
Nesta quarta (28), a Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou, por votação simbólica, uma proposta que estabelece diretrizes e critérios gerais nacionais para a formulação e implementação dos planos nacional, estaduais e municipais de adaptação às mudanças climáticas. O PL 4.129/2021 segue agora para o plenário e, se for aprovado, volta à Câmara.
O relator, senador Alessandro Vieira (MDB-SE), havia previsto que os planos de adaptação da agropecuária deveriam estar vinculados necessariamente à implementação do plano para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC). Criado em 2011, ele visa estimular práticas e tecnologias para redução das emissões de gases de efeito estufa no setor.
Vieira acabou acatando parcialmente uma emenda do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) e alterou esse ponto. Segundo a nova redação, os planos de adaptação para a produção rural deverão basear-se apenas no estímulo à “pesquisa, desenvolvimento e inovação ou na implementação de práticas, processos e tecnologias ambientalmente adequadas e economicamente sustentáveis”.
Os incentivos previstos no texto alterado promoveriam uma “transição voluntária” permitindo que os produtores se “adaptem gradualmente, minimizando riscos e maximizando a eficiência operacional”, segundo a justificativa da emenda. Marinho ainda tentou inserir vantagens adicionais para o setor, por meio de um mecanismo de pagamento por serviços ambientais (PSA), mas o relator não acatou a ideia.
“É mais importante você contar com a adesão do setor. Mecanismos para ter essa adesão são menos importantes na minha opinião”, justificou Vieira, em entrevista à reportagem do ISA após a sessão.
"A proposta inicial do relator era mais ambiciosa, indicando a obrigação da implementação do Plano ABC, considerando a urgência que os efeitos climáticos extremos ganharam. O que se viu no final foi a modificação desse dispositivo, prevendo estímulos para o setor, sob justificativa de garantia de uma transição 'suave e eficaz' em direção a um modelo menos emissor de gases de efeito estufa”, explica Ciro Brito, assessor do ISA.
Pressões
São esperadas novas pressões e possíveis alterações no texto. No final da sessão da CMA, o senador Jayme Campos (União-MT) avisou que vai apresentar um requerimento para que a Comissão de Agricultura (CRA) analise a proposta antes dela ir ao plenário. A correlação de forças no colegiado é amplamente favorável aos ruralistas.
O tema da adaptação das mudanças climáticas ganhou mais visibilidade em 2023, o ano mais quente já registrado, por causa da grande quantidade de eventos climáticos extremos em todo o mundo. O Brasil alcançou o recorde de 1.161 eventos em 1.038 municípios monitorados, o maior número já verificado pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), desde 2019, quando os registros começaram.
A série de secas, enchentes e tempestades foi causada pelo aquecimento das águas da região equatorial do Pacífico, o El Ñino. O fenômeno tem causas naturais, mas, segundo os cientistas, está sendo potencializado pelas mudanças climáticas.
Texto aprimorado
A avaliação de organizações da sociedade civil é de que as alterações promovidas por Vieira aprimoraram o texto original, de autoria dos deputados Tábata Amaral (PSB-SP), Nilto Tatto (PT-SP), Joenia Wapichana (REDE-RR), Alessandro Molon (PSB-RJ), Camilo Capiberibe (PSB-AP) e Talíria Petrone (PSOL-RJ).
A redação saída da CMA do Senado determina que os planos de adaptação municipais e estaduais priorizem áreas, setores e populações mais vulneráveis, incluindo aí critérios de “etnia, raça, gênero e condição de deficiência”. As ações desses planos deverão ser monitoradas e avaliadas e eles deverão ser revistos a cada quatro anos. Além disso, o PL estabelece mecanismos de monitoramento da agenda de adaptação climática nos três níveis federativos.
A articuladora da Rede por Adaptação Antirracista, Mariana Belmont, considera que a aprovação do projeto é um avanço. “Precisamos urgentemente de políticas públicas que contenham medidas efetivas de adaptação para responder aos efeitos dos eventos climáticos extremos sobre a vida das populações das cidades, da floresta e do campo”, aponta. "Estamos vivendo no Brasil desigualdades sociais e territoriais decorrentes dos impactos e efeitos do aquecimento do planeta e quem mais sofre é a população negra e periférica nas cidades”, comenta. “O racismo ambiental acontece nos territórios negros das cidades, nos territórios quilombolas e indígenas do país”, continua.
Outro item da proposta considerado positivo é a garantia de participação da sociedade civil na coordenação e gestão dos planos de adaptação nas várias esferas de governo.
"A sociedade civil foi expressamente incorporada tanto à coordenação quanto à governança dos planos de adaptação. Inicialmente essa participação estava restrita ao arranjo institucional do plano nacional e por meio de uma única instância. Agora, a participação se espraia para os âmbitos estaduais e municipais e não se restringe a um único fórum", completa Brito.
Financiamento
O PL também permite que a cooperação internacional e o Fundo Nacional de Mudança Climática (FNMC) financiem a elaboração e implantação dos planos municipais e estaduais.
Vieira avaliou que esse é um “primeiro passo” para conseguir mais recursos para a adaptação climática. “A partir do monitoramento, você vai ter clareza se [os recursos] são suficientes ou se precisam ser suplementados. Você não começa uma construção pelo telhado. Vai começando do alicerce, vamos identificando as demandas, vamos crescendo o orçamento”, completou.
A gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário, Juliana Baladelli Ribeiro, considera que, como uma proposta de lei de diretrizes gerais, o PL não vai resolver a questão do financiamento da adaptação climática, mas abre caminho para programas e políticas destinadas a esse fim.
“Para a questão do financiamento, é muito importante ter um plano de adaptação. Isso quer dizer que você está olhando para o risco climático, que você terá um financiamento mais seguro”, analisa. “Por exemplo, o Banco Mundial só vai colocar recursos onde houver gestão do risco climático. Essa já é uma premissa do Banco Mundial. Os financiadores já estão começando a olhar para isso”, explica.
Quais os principais pontos do PL 4.129?
Áreas e populações prioritárias. Os planos de adaptação nacional, municipais e estaduais deverão priorizar áreas e populações mais vulneráveis, conforme critérios de "etnia, raça, gênero e condição de deficiência”. Esses critérios deverão levar em conta a “identificação, quantificação e reporte contínuo das vulnerabilidades e ameaças climáticas”.
Apoio aos municípios. Priorização dos municípios mais vulneráveis e a possibilidade de criação de “consórcios intermunicipais”.
Participação social. Garantia de participação social na coordenação e gestão dos planos nas várias esferas de governo.
Financiamento. Possibilidade de acesso ao Fundo Nacional de Mudança Climática (FNMC) e à cooperação internacional para o financiamento da elaboração e das ações dos planos.
“Soluções baseadas na natureza”. Adoção de “soluções baseadas na natureza”, a exemplo da restauração florestal e da criação de áreas protegidas urbanas, como parte das estratégias de adaptação, considerando os benefícios adicionais e sinergias com as ações de mitigação.
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Proposta coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da Amazônia. Recursos do Fundo Amazônia poderão ser utilizados para financiar a obra
A Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Lei (PL) que coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da floresta amazônica ao flexibilizar o licenciamento ambiental do reasfaltamento da rodovia BR-319, que corta o bioma e conecta Manaus (AM) a Porto Velho (RO). O PL permite ainda o uso de recursos do Fundo Amazônia para financiar a obra. O texto será enviado ao Senado.
A proposta, que classifica o empreendimento como "infraestrutura crítica, indispensável à segurança nacional", foi aprovada nesta terça-feira (19), com 311 votos a favor e 103 contra. A votação gerou indignação entre a sociedade civil e especialistas, que veem o projeto como um ataque direto à preservação do bioma e aos direitos das populações indígenas e tradicionais.
“É evidente e comprovado que a abertura de rodovia é um vetor para o desmatamento e a grilagem. Centenas de estudos indicam isso, é preciso ter cautela”, afirma Alexandre Gaio, da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa). “Não temos mais tempo para permitir que um empreendimento seja feito sem as devidas medidas compensatórias e mitigadoras”, completa.
Em nota, a Abrampa declarou que o projeto, ao propor a repavimentação da rodovia sem o devido licenciamento ambiental, pode agravar eventos climáticos extremos na região amazônica, intensificando o desmatamento, as queimadas e, em consequência, as emissões de gases de efeito estufa.
“Não faz sentido uma lei para uma obra específica. Isso fere a divisão de poderes entre Legislativo e Executivo”, alerta Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC). “É uma lei esvaziada, de uso político. Não deveria ser essa a opção do legislador nacional. As leis têm que ter conteúdo normativo”, avalia.
“É inapropriado que a decisão sobre determinado projeto seja exclusivamente política, sem nenhum critério técnico e objetivo”, critica Luís Henrique Sanches, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Internacional de Avaliação de Impactos.
Licenciamento fracionado
O PL nº 4.994/2023 determina que a liberação e o licenciamento ambiental para obras "de pequeno e médio potencial poluidor" relacionadas à rodovia "deverão ser realizados por meio de procedimentos simplificados ou por adesão e compromisso, inclusive os serviços acessórios ou necessários à realização das obras da rodovia". Ao compartimentar e fracionar o licenciamento ambiental, o projeto desconsidera o impacto global do empreendimento. A licença por “adesão e compromisso” é feita de forma automática, por meio do preenchimento de documentos via internet, sem nenhuma análise prévia dos órgãos ambientais.
“É importante que sejam avaliados os impactos diretos, indiretos e cumulativos, inclusive das obras derivadas da obra principal, que não são apenas ‘serviços acessórios’”, alerta Sanches. Para ele, a proposta é contrária às recomendações internacionais de avaliação de impactos para empreendimentos desse porte e tem potencial de impactos significativos.
“Haverá, certamente, lesão a direitos”, avalia Alexandre Gaio, da Abrampa. “Ao fazer a obra sem o licenciamento completo, sem o devido debate sobre todos os impactos, estamos abrindo espaço para graves lesões aos direitos fundamentais e ao meio ambiente. Não me parece adequado, justo, legal e constitucional, se buscar atalhos para agilizar o licenciamento e colocar em risco outros direitos constitucionais”.
Em nota técnica, o ISA e o Observatório do Clima consideram que o projeto pode ser alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade, já que o licenciamento simplificado para atividades de médio impacto ambiental viola a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto.
“Além de poder gerar danos significativos ao meio ambiente e à população do entorno, o PL é contraproducente para aqueles que querem ver a obra implantada rapidamente”, pondera Mauricio Guetta, assessor jurídico do ISA. “As inconstitucionalidades do PL são flagrantes e sua aprovação resultará em judicialização desnecessária e insegurança jurídica e financeira. Não faz sentido sob nenhum ângulo”.
Fundo Amazônia
Além da flexibilização do licenciamento, o projeto autoriza o uso de doações recebidas pela União, incluindo recursos do Fundo Amazônia, para a repavimentação da rodovia. Esse ponto é visto por alguns especialistas como um desvio de finalidade desses recursos, que originalmente são destinados ao combate ao desmatamento na Amazônia.
“Esse é um problema de injuridicidade. Temos acordos com os doadores que regem a aplicação desses recursos e as diretrizes concretas para sua aplicação são fixadas pelo Comitê Orientador do Fundo Amazônia”, explica Araújo.
Dispensa de licenciamento
Originalmente, o projeto continha um dispositivo que dispensava o empreendimento como um todo do licenciamento ambiental. Depois de acordo com o governo, o relator do PL, deputado Capitão Alberto Neto (PL-AM), aceitou exclui-lo.
Para o deputado Nilto Tatto (PT-SP), no entanto, a mudança não reverteu a inconstitucionalidade da proposta. “Fracionar processo de licenciamento também é inconstitucional. O PL trabalha com conceitos ultrapassados, não tem nenhuma estrada que pode ser enquadrada no quesito segurança nacional. Os recursos do Fundo Amazônia também têm regras próprias de destinação. O projeto é inócuo, feito para os deputados da Amazônia fazerem política”, afirma Tatto.
“Apesar da negociação para retirada desse dispositivo, o texto foi aprovado com autorização para processo de licenciamento ambiental simplificado e fracionado, o que não garante a aplicação de mecanismos de monitoramento, mitigação e compensação. É um retrocesso, uma afronta à legislação vigente e à defesa do meio ambiente”, pontua a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ).
Obra impacta Terras Indígenas
Construída nos anos 1968 a 1976, rasgando a floresta amazônica entre Manaus e Porto Velho, a BR-319tem cerca de 885 km de extensão e foi planejada na época do chamado “milagre econômico brasileiro” da Ditadura Militar, com o objetivo de ser um eixo de colonização, tornando possível fazer uma viagem de carro entre as duas capitais em cerca de 12 horas. A manutenção da rodovia foi abandonada em 1988 e retomada anos depois.
A estrada vem sendo reconstruída de forma irregular, sem licenciamento ambiental para as obras, como exige a legislação. Os impactos chegaram a vários povos indígenas da região, inclusive na aldeia São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauá-Mirim, no município de Tapauá, na parte sul do Amazonas, a área do estado mais impactada por desmatamento, grilagem e queimadas.
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