Manchetes Socioambientais
As notícias mais relevantes para você formar sua opinião sobre a pauta socioambiental
“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
A atuação de Danilo, aliada à excelência do corpo técnico da entidade, afirmou ao longo dos anos a fundamental importância das contribuições de povos indígenas e comunidades tradicionais para a política e a cultura brasileira
O Instituto Socioambiental (ISA) lamenta o falecimento de Danilo Santos de Miranda, neste domingo (29/10), aos 80 anos. Diretor regional do Sesc (Serviço Social do Comércio) São Paulo desde 1984, Danilo dedicou 55 anos de sua vida a transformar a entidade em um dos mais importantes difusores de culturas e suas manifestações do Brasil.
A atuação de Danilo, aliada à excelência do corpo técnico do Sesc SP, afirmou ao longo dos anos a fundamental importância das contribuições de povos e comunidades tradicionais para a política e a cultura brasileira.
Diversas parcerias entre o Sesc SP, organizações comunitárias e o ISA continuamente oferecem caminhos, por meio da informação qualificada e da arte, para sensibilizar os públicos que acessam as mais de 40 unidades da entidade sobre a luta por direitos de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
Em 2017, na ocasião do lançamento do livro “Araweté: um povo tupi da Amazônia”, do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro - uma entre tantas obras com a temática indígena disponibilizada pela Edições Sesc - Danilo ofereceu sua visão sobre o assunto.
“Para o Sesc São Paulo, o respeito à pluralidade cultural, em termos constitucionais e morais, é condição sine qua non para a cidadania de quem há muito vive nestas terras e de quem aporta com expectativas e visões de mundo. Entre os que vêm e os que ficam se reelabora a identidade brasileira”, afirmou Danilo.
O ISA oferece seus sentimentos à família, à equipe do Sesc SP e às pessoas de seu entorno.
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#ElasQueLutam! Coroada na parada LGBTQIA+ do estado, Paola já liderou o maior abrigo indígena da América Latina e tem como referência Joenia Wapichana, presidente da Funai
Atravessar a fronteira era o início de uma nova vida – um “renascimento”, como descreve a nova miss trans da parada LGBTQIA+ de Roraima, Paola Abache, de 23 anos. A indígena da etnia Warao, habitantes do Delta do Rio Orinoco, no Norte da Venezuela, enxergou na imigração a oportunidade de começar sua transição de gênero. Mas a chegada ao Brasil lhe proporcionou ainda mais conquistas: Paola foi escolhida como “cacique” do maior abrigo indígena da América Latina e realizou o sonho de infância de se tornar uma “reina” (rainha, em espanhol).
Coroada em outubro de 2023, quatro anos depois de chegar em Roraima, Paola conta que não conseguiu acreditar quando teve seu nome anunciado pela segunda vez. O primeiro anúncio ocorreu por engano e a colocava em terceiro lugar. Quando teve que voltar a sua posição achou que não daria nem mais um passo à frente, até que os apresentadores do evento disseram que ela era a nova miss trans do estado.
“Eu lembro que fiquei sem reação. Pensava que ia chorar, mas não chorei. Pensava que ia gritar, mas não gritei. Achava que ia pular, mas não pulei. Eu só pensava que não podia acreditar, mesmo com a faixa de miss. Só entendi em casa, onde coloquei a faixa de novo e fiz tudo que achei que iria fazer. Depois, eu só pensava que queria abraçar forte a minha mãe”, relembrou.
A dificuldade para entender que havia alcançado um sonho não era só pelo choque do momento. Paola afirma que teve dificuldades financeiras para passar por todas as etapas do concurso. Além disso, ela lembra que a concorrência não foi fácil.
“Eu olhava para as outras meninas concorrendo, estavam bem vestidas, maquiadas, e eu sentia que iria passar vergonha porque não estava bem produzidas como elas. Também eram muito bonitas, nenhuma era feia. Um amigo me olhou e disse: ‘é a sua noite, brilhe e arrase’, eu acenei com a cabeça e disse: ‘está bem, isso que vou fazer’”, disse.
Ao fim do concurso, Paola se sente realizada e equiparada a Lilith Cairú, indígena Wapichana que também foi coroada miss trans em 2020. Segundo Paola, Lilith se tornou uma inspiração desde a primeira vez que a viu. Então, pediu orientação à ela para se inscrever no concurso deste ano. As duas se conheceram durante a Parada.
Inspirações e aspirações
Lilith Cairú é só uma das três mulheres Wapichana que têm inspirado a indígena Warao em sua jornada pelo Brasil. Mari Wapichana, a primeira a vencer o concurso de miss indígena de Roraima, também é um exemplo que Paola deseja seguir.
No entanto, é a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, que faz Paola suspirar e sonhar com o futuro. Atualmente, ela cursa o ensino médio pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) e planeja estudar Direito.
“Quero fazer Direito para poder trabalhar com a defesa dos Direitos Humanos, assim como a Joenia faz. Eu quero ser como ela, quero lutar como ela, porque ela é forte. É lindo ver como ela defende sua comunidade”, afirma.
Além do EJA, Paola também tem se dedicado a aprender a língua portuguesa. Este será o seu terceiro idioma, pois ela se comunica em warao e espanhol. Após quase cinco anos no Brasil, ela diz que hoje já consegue entender os brasileiros.
Renascimento
Em janeiro de 2019, quando tinha 19 anos, Paola decidiu que era hora de ser quem ela sabia que era desde os 6 anos. Ela seguiu o movimento de venezuelanos que, desde 2014, buscam melhores condições de vida em outros países.
“No meu caso, a imigração não foi pela fome ou falta de remédios. Eu imigrei para renascer”, conta a jovem, que chegou em Roraima em janeiro de 2019. Durante os primeiros dois anos, ela viveu em um abrigo no município de Pacaraima.
A fim de dar assistência aos venezuelanos que vivem em Roraima, o governo federal instaurou em 2017 a Operação Acolhida, uma força-tarefa coordenada pelo Exército Brasileiro, que garante abrigos e orientações sobre os trâmites legais no Brasil.
Quando a indígena Warao deixou a comunidade Araguabisi, na Venezuela, a transição ainda não havia iniciado, mas ela já enfrentava problemas para ser aceita, inclusive por parte da própria família. No entanto, ela já estava decidida e, quando iniciou a triagem na fronteira, pediu que seu nome nos documentos brasileiros fosse Paola Abache.
Em Roraima, o namorado já a esperava. Ele havia chegado dois anos antes e os dois mantiveram o relacionamento pelas redes sociais. Também pelos meios virtuais a família de Paola descobriu a transição ao ver suas fotos.
“Minha avó, que me criou, foi a primeira a me aceitar. Eu também fui acolhida por minhas duas tias, irmãs da minha mãe, e duas das minhas primas. Elas me apoiaram muito e minha avó dizia que já sabia que eu seria assim porque me observava desde criança”, contou. Ela disse que hoje sua identidade é aceita pela família.
Após dois anos vivendo em Pacaraima, ela decidiu que era hora de ir para a capital e foi transferida para um dos abrigos de Boa Vista. Quando chegou, o espaço ainda era dividido com não indígenas, mas se tornou um abrigo específico para os Warao em 14 de março de 2022.
O Waraotuma a Tuaranoko (“lugar de repouso até que possa partir para outro” na língua Warao) é o maior abrigo indígena da América Latina, segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados (Acnur). O espaço já chegou a abrigar quase 2 mil indígenas e também já esteve sob a liderança de Paola Abache.
De acordo com o Censo mais recente da Venezuela, de 2011, a etnia Warao é a segunda mais populosa do país com cerca de 49 mil indígenas. Este povo também é apontado como o grupo humano mais antigo da Venezuela. Relatório do Acnur afirma que em 2014 havia 30 Warao vivendo no Brasil, mas em 2016, quando a crise no país vizinho se agravou, o número saltou para 600 e chegou a 3.300 em 2020.
Na comunidade, na Venezuela, as questões de gênero foram uma barreira entre Paola e seu povo, mas no abrigo sua identidade não foi uma questão. Os próprios indígenas a escolheram como uma cacique para representá-los mesmo sem que ela quisesse aceitar.
Primeiro, ela ocupou o cargo de “suplente” de um dos caciques. No entanto, ele optou pela interiorização, um processo da Operação Acolhida que leva imigrantes venezuelanos para viver em outros estados brasileiros a fim de reduzir os impactos em Roraima. Então, foi necessária uma nova votação para escolher um novo cacique e a comunidade já sabia que queria Paola, mas levou dois dias até que a convencessem a aceitar.
“Já estava como mulher e nunca me passou nada com os indígenas, não sofri preconceito. Ainda assim, eu não quis ser líder de cara, eu fiquei pensando e os outros me convenceram dizendo que eu já tinha experiência e expressava bem as necessidades de todos e que sabia fazer uma boa defesa do meu povo”, contou.
Paola foi cacique por sete meses. Ela dividia a liderança com outros quatro indígenas. “Ser cacique não é fácil. É preciso conhecer a própria comunidade, entender os problemas, atuar nos casos de conflito, ser uma conselheira e, mais do que tudo, precisa saber trabalhar para levar o melhor para comunidade. E, eu tinha medo, porque não saberia ser de outro jeito se não conseguisse ser uma cacique assim”, relembrou.
Após transicionar em um novo país, liderar seus parentes no maior abrigo indígena da América Latina e se tornar miss trans da parada LGBTQIA+ de Roraima, Paola sabe que suas conquistas são fruto de uma luta que precisa se multiplicar. “Para outras mulheres assim como eu, trans e indígena, é preciso trabalhar, lutar e estudar. Se vocês têm sonhos, não desistam e não acreditem nas muitas pessoas que vão tentar fazer com que não consigam realizar seus sonhos!”.
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Comunicadores da Rede Xingu+ mostram seus trabalhos mais recentes na Galeria Metrópole; evento terá apresentação musical do grupo andino Lakitas Sinchi Warmis
Na sexta-feira (27/10), às 19h, em São Paulo (SP), comunicadores indígenas do Xingu+ apresentam suas realizações audiovisuais na loja Floresta no Centro, do Instituto Socioambiental (ISA). O espaço fica na segunda sobreloja da Galeria Metrópole, na Praça Dom José Gaspar, centro da capital paulista.
Serão exibidos os filmes “A castanha é o nosso tempero” e “Kurigre: esquilo”, produzidos e dirigidos por Kujaesãge Kaiabi e Kamatxi Ikpeng. Em seguida haverá um bate-papo com a presença dos diretores xinguanos e de Miraip Kaiabi, assessor técnico do ISA e de Anaya Suyà, assessora de comunicação da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX). A mediação será de Silia Moan, jornalista do ISA.
O espaço Floresta no Centro contará com a exposição fotográfica 'O AIC pelos olhos dos comunicadores do Xingu', assinada por Kujaesãge Kaiabi e Kamatxi Ikpeng. São 11 fotos que contam as histórias de 4 projetos comunitários desenvolvidos pelos povos indígenas do Território do Xingu (TIX).
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Exposição de produtos do Território Indígena do Xingu fortalece laços por uma economia do cuidado
O evento terá abertura com apresentação do grupo Lakitas Sinchi Warmis, que reúne mulheres imigrantes e filhas de imigrantes que fortalecem sua cultura por meio de músicas tradicionais andinas. O coquetel será realizado pelo Kitanda das Minas, cozinha afro brasileira, que resgata os saberes ancestrais através da gastronomia contemporânea.
Venha conhecer como a comunicação está sendo utilizada pelos xinguanos para registrar soluções encontradas nas aldeias que fortalecem seus modos de vida em meio à emergência climática.
Bate-papo Olhos do Xingu
Cinema indígena no centro de SP, com os comunicadores do Xingu+
Galeria Metrópole | Segunda sobreloja
Praça Dom José Gaspar, Metrô República, São Paulo (SP)
Quando: 27 de outubro
Horário: Das 19h às 21h
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Impactos no noroeste do Amazonas atingem serviços essenciais, com mudança de horário de atendimento em postos de saúde e escolas. Cidade passa por racionamento.
Na segunda-feira (16/10), dia em que o Rio Negro atingiu seu nível mais baixo em 120 anos de medição em Manaus, parte dos moradores de São Gabriel da Cachoeira (AM) acordou sem energia elétrica. E a estação seca está apenas começando na região.
São Gabriel da Cachoeira é a terceira cidade mais indígena do país, e o racionamento de energia já atinge serviços essenciais para a população. Na manhã desta terça-feira (17), um cartaz em frente à Unidade Básica de Saúde (UBS) no bairro Praia informava sobre a mudança do horário de funcionamento por causa do racionamento. Escolas precisaram alterar seus horários devido à falta do abastecimento de energia e ao calor excessivo.
A cidade corre risco de ficar sem fornecimento de energia. Na noite de 18 de outubro, autoridades se reuniram no Fórum da cidade para discutir a questão. Foi informado que a cidade tem combustível para mais 4 dias, ou seja, até o dia 22 de outubro, mantendo o racionamento. A balsa com o combustível tem previsão de chegada apenas para o dia 23, mas com o nível do rio baixo, a viagem pode demorar mais.
Com a chegada da balsa, a situação pode se normalizar por alguns dias, entretanto o cenário de incerteza sobre o abastecimento de combustível continua, pois o período da seca vai até o início de 2024, o que pode piorar as condições de navegabilidade.
São Gabriel é abastecida por uma termelétrica. Normalmente, são utilizados 44 mil litros de diesel por dia para gerar 8 megawatts. Com o racionamento, estão sendo gerados 4,2 megawatts/dia, com uso aproximado de 25 mil litros de diesel/dia. Os cortes temporários por região da cidade vêm se intensificando.
Em nota, a Amazonas Energia explicou que a VP Flexgen, produtora independente de energia responsável pela geração do insumo no município, informou no domingo (15) sobre a dificuldade de recebimento de combustível que abastece a termelétrica. “A VP Flexgen comunicou ainda que adotou as medidas necessárias junto ao fornecedor de combustível, mas que o agravamento dos efeitos da estiagem afetou de forma severa as operações em função das dificuldades de navegação e logística do transporte pelo Rio Negro”, diz o informe.
Moradores argumentam que a empresa tem condições de se programar para evitar o racionamento. A população de São Gabriel da Cachoeira enfrenta também problemas no abastecimento de água, dificuldade para encontrar determinadas mercadorias, aumento dos preços, problemas na navegabilidade do rio e altas temperaturas. Indígenas ainda relatam perda de roças, solo quente e sensação de água fervendo no rio.
“Estamos acostumados com as cheias e as secas do rio, mas agora está tudo diferente. Até a água mudou, a quentura mudou. Até o sol mudou muito, a quentura é diferente de antigamente. Ninguém regula mais o que vai acontecer”, afirmou a indígena Cecília da Silva, do povo Tukano, que desde a década de 1980 mantém comércio na beira do Rio Negro, na região do Porto Queiroz Galvão, de onde acompanha mudanças do clima.
Na manhã de terça-feira, em um dos postos de combustível no Porto Queiroz Galvão, era possível ver vários carotes (tambores) deixados lá por consumidores. O combustível tinha sido vendido, mas não foi possível entregar o produto também por falta de energia.
Com o bote parado ao lado do posto flutuante, o indígena Tarcísio Saldanha, povo Tariano, aguardava para abastecer e seguir viagem para Urubuquara, no distrito de Iauaretê, Alto Rio Uaupés. “Na minha região, lá para dezembro e janeiro é seco, seco. Esse ano parece que vai ser mais seco ainda. Ainda falta muito tempo de verão”, diz.
Para chegar a Urubuquara, ele precisa passar pela Cachoeira de Ipanoré. Esse trecho, devido às corredeiras, não é navegável: é necessário retirar o bote da água e transportá-lo em um caminhão em trecho de estrada até outra parte do rio. Na seca, esse processo é dificultado, pois entre o rio e a estrada aparece um barranco.
Conhecido como Joaquim 90, o comerciante Joaquim Henrique Uchôa vende gelo na sua balsa, no Porto Queiroz Galvão. Mas não está conseguindo encontrar o produto para entregar aos clientes. “Sem energia, não há fabricação”, explica.
Ele mantém uma balsa que faz o trecho São Gabriel da Cachoeira – Distrito de Iauaretê. A embarcação realizou o trajeto de ida, mas não se sabe se conseguirá voltar, o que depende das condições de navegação. Para medir o nível do rio, ele improvisou um medidor. “Choveu um pouco, mas o rio está parado”, comenta Joaquim.
As poucas chuvas que estão atingindo a região não estão sendo suficientes para alterar o nível do rio, conforme a observação dos moradores. Os dados mostram que o Rio Negro continua secando. Em São Gabriel da Cachoeira, o nível baixou de 602 cm para 508 cm entre os dias 5 e 13 de outubro, conforme boletim divulgado no dia 16 de outubro (confira o boletim completo abaixo).
Na principal orla da cidade, a praia de areia branca avança sobre o rio, com muitas pedras expostas. Um dos marcadores para a seca é a travessia para a Ilha da Juíza. Em 2017, durante a estiagem, as pessoas conseguiam atravessar para a ilha passando pelas pedras. Agora, já é quase possível fazer esse mesmo caminho. Além disso, para acessar a cidade pela orla principal, os indígenas precisam arrastar o bote sobre um canal de areia que se formou no rio.
A comerciante Marilene Ferreira de Oliveira, povo Baré, mora no fim da avenida da orla, em um trecho que costuma alagar durante as cheias. Em frente à sua casa e à sua mercearia, ela e o marido construíram uma estrutura suspensa para poderem trabalhar mesmo com o rio cheio. Mas estão tendo que lidar com a seca e a falta de algumas mercadorias.
“Está faltando frango e carne. O nosso fornecedor só está vendendo até dois fardos de refrigerante. Tudo está com preço alto, o arroz, o macarrão, tudo subiu”, diz.
Em São Gabriel da Cachoeira – onde só se chega de barco ou avião –, o abastecimento de mercadorias é feito principalmente por balsas. Mas as embarcações grandes não estão conseguindo desembarcar no Porto de Camanaus, de onde os produtos são transportados em caminhões até o centro comercial.
As balsas têm ficado estacionadas em um trecho abaixo do porto, e para buscar os mantimentos são utilizados botes pequenos, o que encarece a logística e, consequentemente, os produtos. Arroz, macarrão e até a água subiram de preço. O galão de 20 litros, que era vendido a R$ 12, agora é encontrado com o preço entre R$ 16 e R$ 20. No domingo, a balsa conseguiu chegar a Camanaus.
Além dos problemas de energia e abastecimento de mercadorias, os moradores também enfrentam a falta de água. A Secretaria Municipal de Obras, Transporte e Serviços Urbanos (Semob) divulgou nota pedindo que as pessoas economizem água e comunicou que o fornecimento pode ter interrupções devido à estiagem.
O informe alerta ainda que o problema pode atingir as bicas d’água, devido ao rebaixamento do lençol freático nos poços artesianos. Em São Gabriel da Cachoeira, muitas pessoas utilizam as bicas espalhadas em alguns pontos do município.
Nas redes sociais, os indígenas alertam sobre os impactos da estiagem
Liderança de Santa Maria, no distrito de Iauaretê, Edvaldo de Jesus gravou um vídeo pedindo o apoio dos órgãos públicos, pois o poço de água, que é utilizado para abastecer a comunidade, secou. Na comunidade de Buia Igarapé, na região do Rio Içana, o professor Cleto Hermes, povo Baniwa, também registrou imagens mostrando o fogo avançando em áreas de roças já plantadas.
Arivaldo Matias, do povo Baré, morador da comunidade Yamado, relatou que devido às altas temperaturas não há como trabalhar as roças. Além disso, ele relata que a terra está quente, prejudicando as plantações de maniva e as pimenteiras.
O pescador Antônio Carlos Azevedo, Baré, conta que há impactos também para os peixes. “Está mais difícil pescar, os peixes estão sumindo. A água tá muito quente. Com a chuva que deu, esfriou um pouco”, relata.
A liderança Yanomami José Mário Góes divulgou vídeo na quinta-feira (12), mostrando foco de incêndio na Serra do Opota, considerada sagrada e localizada na comunidade de Maturacá, no Território Yanomami no Amazonas.
Ele relata que um raio atingiu a serra e provocou o fogo, que foi apagado na madrugada de sábado após uma chuva atingir a região. “Estamos falando com nossos pajés. É urgente que venha água para molhar o chão, para molhar a floresta. Cada vez mais o rio está secando. Estamos preocupados”, relatou.
Estiagem atípica tem relação com a crise climática
Dados do Boletim de Monitoramento Hidrometeorológico da Amazônia Ocidental – Serviço Geológico do Brasil (CPRM) indicam que o rio Negro está mantendo o processo de descida em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, onde os níveis registrados estão abaixo da faixa da normalidade.
O Rio Negro em Manaus atingiu a cota de 13,59 m em 16 de outubro, superando a vazante de 2010 (13,63 m), apresentando descidas diárias na ordem de 10 cm. Em 24 de outubro de 2019, o rio chegou a 13,63 metros. Até então essa era considerada a seca mais severa desde o início das medições, em 1902.
Ainda conforme o CPRM, no período de 12 de setembro a 11 de outubro de 2023, permanece o quadro de chuvas abaixo da média predominando na região. A causa da queda do índice de chuva é o fenômeno El Niño, intensificado pelos impactos da emergência climática.
“Os fenômenos El Niño (aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico) e aquecimento anômalo das águas superficiais do Atlântico Tropical Norte continuam atuando, favorecendo a condição de subsidência (movimento vertical do ar de cima para baixo) sobre grande parte da região inibindo ou reduzindo a formação de nuvens e por consequência redução dos volumes de chuva observados”, diz o relatório do CPRM.
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Curta documental mostra como foi o diálogo com o governo federal, orientado por protocolo de consulta e com foco no fim da invasão do garimpo ilegal
“Eu chamo vocês, eu convido vocês, juntos vamos cuidar da Terra”, diz o xamã e liderança do povo Yanomami Davi Kopenawa no filme do IV Fórum de Lideranças Yanomami e Ye´Kwana. O curta documental estreou nos canais de comunicação da Hutukara Associação Yanomami (HAY) nesta quarta-feira (04/10) e narra as demandas feitas pelos Yanomami e Ye’kwana para o governo federal.
Assista ao filme:
O Fórum de Lideranças é uma grande assembleia para tomadas de decisões coletivas dos povos da maior Terra Indígena do Brasil. O evento ocorre anualmente desde 2019 e neste ano foi realizado em Maturacá, no Amazonas, de 10 a 14 de julho.
“Essa semana é muito importante para todos nós Yanomami do Amazonas e de Roraima. Todas as associações estão se encontrando junto com as lideranças”, afirma José Mário, ex-presidente da Associação Yanomami do rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA) na abertura do filme.
Ao todo, dez associações e mais de 300 lideranças estiveram presentes no evento. Pela primeira vez, o Fórum contou com a participação de representantes do governo federal, que fez uma ampla escuta guiada pelo Protocolo de Consulta Yanomami e Ye'kwana, documento elaborado pelos próprios indígenas. Tudo foi registrado pelos cineastas Cassandra Melo e Fred Rahal, que assinam o curta com quase dez minutos de duração.
“Por que fizemos este protocolo de consulta? De que forma queremos ser consultados? Quem vai nos consultar e quem vai responder em nome da Terra Indígena? Uma pessoa só? Só um presidente de associação? Só uma liderança? Então eu acho que é um papel muito importante que estamos fazendo no Fórum de Lideranças”, refletiu o diretor da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Maurício Ye’Kwana.
Entre os membros do governo federal presentes, estavam a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e a ministra de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva.
“Eu e a Soninha estamos fazendo uma verdadeira campanha para que o Brasil vote em priorizar as políticas para os povos indígenas, porque o Congresso tem que ter uma mensagem muito clara que o povo brasileiro respeita e quer ver protegido no Congresso brasileiro o meio ambiente e os povos indígenas”, afirmou Marina Silva.
Para Joenia Wapichana, que também esteve em 2022 no III Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, na comunidade Xihopi, como deputada federal, disse que já sente uma diferença com um clima de esperança entre os indígenas.
A Terra Indígena Yanomami sofre com a invasão de garimpeiros, que se intensificou nos últimos seis anos. No início de seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou uma operação emergencial de saúde e de desmonte dos garimpos ilegais, além da retirada dos invasores.
“A Terra Indígena Yanomami continua sangrando, porque os garimpeiros continuam rasgando as nossas comunidades. O governo está dizendo que acabou, mas ainda não acabou os garimpeiros”, alertou Junior Hekurari Yanomami, presidente da Urihi Associação Yanomami.
Além da HAY, Ayrca e Urihi, também estavam presentes a Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma (Amyk), a Associação Ye’kwana Wanasseduume (Seduume), a Associação Kurikama Yanomami (AKY), a Associação Xoromawë, Associação Parawamɨ, a Associação Sanöma Ypassali e a Associação Ninam Texoli (Taner).
Juntas, as associações escreveram uma carta (acesse AQUI) resumindo os temas discutidos durante o Fórum. Entre os temas estão proteção territorial, saúde, educação e segurança alimentar. Ao final do filme, um QR Code é apresentado para direcionar os espectadores à leitura integral do documento, que também foi entregue ao governo federal.
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Episódios gravados por jovens e lideranças indígenas em Santa Isabel do Rio Negro e Iauaretê, no Amazonas, começaram a ser divulgados esta semana. Narrativas trazem conhecimentos ancestrais e histórias de vida
Dona Maria Lucélia, povo Desana, de nome indígena Diakarapo, nasceu na comunidade Pakowa, na Colômbia, e cresceu na comunidade Yai Boha, Santa Marta, rio Papuri, no Brasil. Lá passou pelo processo de benzimento e desde cedo recebeu orientações do pai. Ela se mudou ainda jovem para Iauaretê, distrito de São Gabriel da Cachoeira (AM), para dar continuidade aos seus estudos no internato salesiano junto com outras 600 internas. É uma conhecedora de histórias ancestrais.
Roberto da Silva é do povo Baré e nasceu em 1961. Educador das comunidades da região do Médio Rio Negro, passou parte da juventude pelos piaçabais, o que marcou sua história de vida. É morador da comunidade Jerusalém, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
Essas e outras histórias – contadas em primeira pessoa e registradas por indígenas do médio e alto rio Negro – estão disponíveis no podcast Guardiões da Memória do Rio Negro, projeto desenvolvido pelo Museu da Pessoa com a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro.
O lançamento aconteceu na quinta-feira (21), dentro da programação “Memórias Ancestrais”, agenda do Museu da Pessoa na Primavera dos Museus. Os áudios podem ser encontrados nas redes sociais do Museu da Pessoa e da Rede Wayuri.
Os episódios serão disponibilizados quinzenalmente, até o final do ano. Escute no Spotify:
Os comunicadores registraram narrativas e histórias em Iauaretê, no rio Uaupés, e Santa Isabel do Rio Negro. Os principais temas foram o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN) e a Cachoeira da Onça, em Iauaretê, ambos registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Foram ouvidas 27 pessoas em comunidades do médio rio Negro e 35 em Iauaretê. Muitos dos entrevistados são os próprios pais, mães, avôs, avós, tios e tias dos jovens participantes.
Por meio das histórias de vida, aparecem a riqueza cultural, a tradição, a resistência e a exploração colonizadora que passa por piaçabais e a opressão religiosa, entre outros. A produção do podcast teve início em 2022. Este ano, a Rede Wayuri foi convidada a integrar o projeto com a realização de uma oficina de comunicação para ações de divulgação.
Comunicadora da Rede Wayuri, Juliana Albuquerque, do povo Baré, participou de encontros em Santa Isabel do Rio Negro e em Iauaretê. “Quando fomos convidados, até fiquei com um pouco de receio, pois sabemos da importância do Museu da Pessoa. Mas tive o apoio da Rede e segui em frente”, diz.
Ela desenvolveu as atividades junto com os jovens e lideranças que já integravam o projeto. O resultado foi uma intensa troca de saberes. “Percebi que muitos estavam com dúvidas sobre como gravar os áudios, como fazer os roteiros. Fomos fazendo juntos e aprendendo”, relata.
“É um grande projeto, que nos ajuda a perceber que às vezes a gente mesmo, que vive aqui, não conhece as nossas histórias. Quando ouvi as narrativas, resgatei memórias da minha própria história. Outro grande desafio foi fazer os registros nas línguas indígenas. Em Iauaretê, a maioria dos áudios estavam na língua tukano e foi necessário irmos atrás das traduções. Foi uma troca de saberes”, completou.
Histórias de vida também são patrimônios
A Rede Wayuri tem um programa de rádio semanal, o Papo da Maloca, que divulga informações do movimento indígena e sobre outros temas de interesse dos povos do rio Negro. Além disso, o coletivo mantém o podcast Wayuri e o Instagram da Rede.
São 19 bolsistas e cerca de 40 voluntários indígenas dos povos Wanano, Baré, Tukano, Hupd´däh, Yanomami, Piratapuia, Hupd´äh, entre outros. Eles atuam a partir de São Gabriel da Cachoeira e das comunidades indígenas do extenso território do rio Negro.
A série de podcast está inserida no projeto Memória, Território e Patrimônios Imateriais do Rio Negro, desenvolvido em parceria entre o Museu da Pessoa, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e organizações indígenas locais.
Esses episódios foram idealizados e produzidos pelos Guardiões da Memória – jovens e lideranças que participaram do projeto - em parceria com a Rede Wayuri, que é ligada à FOIRN e tem o apoio do ISA.
O projeto é coordenado pela antropóloga Aline Scolfaro. As oficinas tiveram também a participação da coordenadora do programa Vidas Indígenas do Museu da Pessoa, Márcia Trezza.
“Acredito que, com a execução desse projeto, foi possível reforçar a ideia de que as pessoas e suas histórias de vida não só fazem parte dos domínios que constituem e dão sentido aos patrimônios, mas são também em si um patrimônio a ser salvaguardado”, diz Aline.
Comunicador e Guardião da Memória, Rogério Xavier, povo Baniwa, que vive na comunidade de Cartucho, médio Rio Negro, trouxe a importância do registro das narrativas para a valorização das vivências.
“Com esse trabalho, a gente começou a se dar conta do valor dessas histórias, do valor da cultura, da floresta, desse rio. Acho que a maioria aqui não se dava conta, apenas ia vivendo”, disse.
O Museu da Pessoa é um museu virtual e colaborativo de histórias de vida. Nos últimos anos, vem buscando ampliar sua atuação junto a povos indígenas e outras populações tradicionais, visando contribuir com a luta indígena e a pauta socioambiental, através de projetos de memória desenvolvidos de forma colaborativa.
Além do podcast, também foram produzidos vídeos curtos e dois documentários com trechos das histórias de vida registradas em Iauaretê e Santa Isabel do Rio Negro E ainda o livro “Um rio de raízes e memórias”, com histórias dos detentores do Sistema Agrícola no Médio Rio Negro. Todos esses produtos resultantes do projeto foram disponibilizados ao público dentro da programação da Primavera dos Museus.
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Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN) completa 20 anos. Comemorações ocorreram durante a III Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, com lançamento de publicação, documentário e site
Ohpenkõ di´a kahnã numia é como se escreve mulheres indígenas do rio Negro ou rionegrinas, em Tukano, uma das línguas faladas nessa região da Amazônia. A frase está no canto preparado por Odimara Ferraz Matos, povo Tukano, entoado durante a III Marcha das Mulheres Indígenas, que aconteceu em Brasília, de 11 a 13 de setembro, com organização da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Com vestimentas tradicionais, urucum e jenipapo, elas divulgaram sua luta durante a marcha na Esplanada dos Ministérios, junto a outras aproximadamente 8 mil mulheres do país todo. Ao som de maracás, fizeram barulho e buscaram espaço nos gabinetes oficiais, articulando por políticas públicas que beneficiem as mulheres em seus territórios.
“Esse canto mostra que a mulher sempre esteve no movimento indígena, mas sua história nem sempre apareceu”, diz Odimara.
Junto dela estavam lideranças como Elizângela Baré, Dadá Baniwa, Cleocimara Reis (povo Piratapuya), Larissa Duarte (povo Tukano), Almerinda Ramos (povo Tariano) e Janete Alves (povo Desana). A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), Joênia Wapichana, também esteve ao lado das mulheres do Rio Negro durante a marcha.
Para as rionegrinas, é um momento especial para falar dessa história: no encontro foram comemorados os 20 Anos do Departamento das Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN).
Foram lançados o documentário “Rionegrinas” e o livro “As mães do DMIRN – Conquistas e Desafios”, que trazem narrativas das lideranças do departamento e resgatam a memória para inspirar o futuro. Também houve o lançamento do site do departamento, instrumento de comunicação e fortalecimento. Conheça em https://dmirn.foirn.org.br.
Coordenadora do DMIRN, Cleocimara Reis fala da valorização dessa história. “Essa história é inspiradora não só para o rio Negro. Mulheres indígenas de outras regiões estão nos propondo intercâmbios para conhecer o DMIRN e para estruturar seus próprios departamentos”, disse em São Gabriel da Cachoeira, ao retornar de Brasília.
A comitiva que foi a Brasília era formada por cerca de 40 mulheres de povos como Baré, Tukano, Baniwa, Yanomami, Piratapuia, Wanano, Desana, Tuyuka, entre outros. Povos considerados de recente contato, os Hudp´däh e Nadeb também contaram com representantes na marcha.
Entre as integrantes estavam três comunicadoras da Rede Wayuri: Cláudia Ferraz, povo Wanano, Suellen Samanta, povo Baré, e Deise Alencar, povo Tukano. “Foi muito especial participar desse momento e mostrar o histórico do DMIRN, a caminhada e o avanço até hoje. Essa caminhada é inspiradora e é necessário termos um olhar diferenciado para a história dessas mulheres, conhecendo, reconhecendo e dando visibilidade”, diz Suellen Samanta.
Veja a cobertura no Instagram da Rede Wayuri:
Escute o programa especial sobre a III Marcha das Mulheres no podcast Wayuri, produzido por Cláudia Wanano:
“Rionegrinas”
Produzido pelo ISA em parceria com o DMIRN e FOIRN, o documentário “Rionegrinas” foi lançado no dia 12, no Centro de Convivência dos Povos Indígenas da UnB (Maloca), em Brasília. Na plateia, mulheres indígenas do rio Negro, mas também de outras regiões, como as Kayapó e Waiãpi e, ainda, estudantes indígenas da UnB. A artista e ativista Daiara Tukano, nascida na região do alto rio Negro, participou da sessão e trouxe a tradição indígena para falar da mulher na narrativa do surgimento do mundo.
A direção e o roteiro são da documentarista Fernanda Ligabue e da articuladora de políticas socioambientais do ISA, Juliana Radler, com colaboração de Dadá Baniwa, Carla Dias, Dulce Morais e Ana Amélia Hamdan. O filme conta, por meio de depoimentos das mulheres indígenas, a luta por espaço, território, renda e sustentabilidade. Desde as roças até as universidades, desde a casa-território até os cargos públicos.
O DMIRN tem uma coordenadora e cinco articuladoras regionais que possibilitam um diálogo com o território indígena do rio Negro.
Na região, vivem povos de 23 etnias em cerca de 750 sítios e comunidades nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos (AM).
A coordenação é de responsabilidade de Cleocimara Reis e as articuladoras são: Belmira Melgueiro, Baré; Madalena Fontes Olímpio, Baniwa; Odimara Ferraz Matos, Tukano; Maria das Dores Azevedo Barbosa, Tariano; e Victoria Campos, Tariano.
Entre as pautas prioritárias do DMIRN estão equidade de gênero, apoio às associações de mulheres indígenas, geração de renda e sustentabilidade, fortalecimento de conhecimentos e saúde, medicina indígena e sistema agrícola tradicional, enfrentamento aos impactos da emergência climática e direitos das mulheres.
Antes de se estruturar como departamento, muitas trilhas foram percorridas, como relata Rosi Waikhon. Ela relembra que o presidente da FOIRN à época, Braz França, do povo Baré, indicou que elas precisavam se organizar no papel. E assim foram trabalhando até criar o DMIRN, depois a loja Wariró, hoje a casa do artesão e da artesã indígena do rio Negro, que não só vende produtos, como fortalece a cultura.
Em 2020, a pandemia da Covid-19 atingiu fortemente a região do rio Negro. As coordenadoras do DMIRN à época, Elizângela da Silva, do povo Baré, e Janete Alves, povo Desana, articularam apoios e parcerias para ações de proteção e saúde. Foi criada a Campanha 'Rio Negro, Nós Cuidamos!', que levou ajuda humanitária para dentro do território indígena.
Entre outras mulheres, o documentário tem a participação da coordenadora da Rede Wayuri, Cláudia Wanano, trazendo a importância da comunicação para e feita pelas indígenas. A Ex-coordenadora do DMIRN, Dadá Baniwa, que hoje está à frente da Coordenação Regional Rio Negro da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai – CR Rio Negro) fala no filme sobre o fortalecimento da presença da mulher indígena no espaço político, citando a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a presidente da FUNAI, Joênia Wapichana, e a deputada federal Célia Xacriabá. Todas estavam presentes na Marcha.
A antropóloga Francy Baniwa reflete sobre a conquista dos espaços nas universidades e desafios que permanecem. A liderança Edneia Teles, povo Arapaso, aponta para o futuro e fala da importância do registro da memória do DMIRN para as próximas gerações.
O filme será lançado também em Manaus e São Gabriel da Cachoeira, mas as datas ainda não estão confirmadas. Confira o trailer:
“Mães do DMIRN”
O livro “As Mães do DMIRN – Conquistas e Desafios” também traz depoimentos das mulheres indígenas. A escrita foi conduzida por Elizângela da Silva, povo Baré, ex-coordenadora do DMIRN, comunicadora e liderança, numa construção conjunta.
“Quando comecei a escrever é como se fosse uma mulher parindo, uma mulher grávida. As mulheres contavam: lá naquele início nós éramos tratadas assim e nossas estratégias eram essas. Nós procurávamos mais diálogo e parcerias para dizer de nossa importância. A nossa tradição é muito forte, é patriarcal e, na época, os homens eram machistas e diziam que nossa participação estava fora do contexto ou do estatuto. Mas a gente criava outras estratégias e assim foram construindo”, relata Elizângela Baré.
Ela revela que uma das estratégias das mulheres foi fortalecer a geração de renda por meio do artesanato, conquistando outros espaços de luta por saúde, educação e formação. A publicação tem o apoio do Observatório da Violência de Gênero no Amazonas, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com a professora Flávia Melo da Cunha, e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), com o professor José Miguel Nieto Olivar.
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Filme guarda memórias de mulheres no movimento indígena do rio Negro (AM) e na construção do DMIRN-FOIRN, que completou 20 anos.
A trajetória de lutas e conquistas das mulheres do rio Negro dentro do movimento indígena e na criação do Departamento das Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN) é narrada no documentário “Rionegrinas”, que será lançado em 12 de setembro, em Brasília, no Centro de Convivência dos Povos Indígenas da UnB (Maloca).
Uma comitiva de cerca de 40 mulheres do médio e alto rio Negro, no Amazonas, estará no lançamento do filme, que celebra os 20 anos do DMIRN-FOIRN. O departamento foi criado em 2002 e chegou aos 20 anos em 2022, mas as comemorações estão acontecendo agora.
O grupo participa da III Marcha das Mulheres Indígenas - Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
A comitiva leva à Brasília a diversidade do rio Negro, com mulheres dos povos Baré, Tukano, Baniwa, Yanomami, Piratapuia, Wanano, Hupda. Também integram três comunicadoras da Rede Wayuri: Cláudia Ferraz, do povo Wanano, Suellen Samanta, do povo Baré, e Deise Alencar, do povo Tukano. A cobertura pode ser acompanhada no Instagram da Rede Wayuri.
Entre as lideranças estão Dadá Baniwa, coordenadora regional da Funai no rio Negro e ex-coordenadora do DMIRN, Elizângela Baré, ex-coordenadora do DMIRN e comunicadora da Agência Sumaúma, e Francy Baniwa, ex-coordenadora do DMIRN, antropóloga e escritora.
A Coordenadora do DMIRN, Cleocimara Reis, do povo Piratapuia, fala da valorização da história do departamento.
“Essas mulheres foram nossas inspiradoras. Não foi fácil criar o DMIRN, foi com muita luta e discussão. É uma história que precisamos guardar para outras mulheres que virão”.
O filme conta, por meio de depoimentos das mulheres indígenas, a luta por espaço, território, renda e sustentabilidade, desde as roças até as universidades, da casa-território aos cargos públicos.
“Me deram uma salinha bem pequenininha. Mal cabiam a mim, uma mesa e uma cadeira. O que eu vou fazer só com essa mesa e a cadeira?”, relembra Cecília Albuquerque, do povo Piratapuia, primeira coordenadora do DMIRN.
Hoje, o DMIRN tem uma coordenadora, Cleocimara Reis, povo Piratapuia, e cinco articuladoras regionais que possibilitam o diálogo constante com o território indígena do rio Negro, onde vivem povos de 23 etnias em aproximadamente 750 sítios e comunidades nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos (AM).
O departamento tem como pautas prioritárias equidade de gênero, apoio às associações de mulheres indígenas, geração de renda e sustentabilidade, fortalecimento de conhecimentos, medicina indígena e sistema agrícola tradicional, além do enfrentamento aos impactos da emergência climática e os direitos das mulheres.
Produzido em parceria pelo Instituto Socioambiental (ISA), DMIRN e FOIRN, o documentário “Rionegrinas” tem direção e roteiro da documentarista Fernanda Ligabue e da articuladora de políticas socioambientais do ISA, Juliana Radler, com colaboração de Dadá Baniwa, Carla Dias, Dulce Morais e Ana Amélia Hamdan. Confira o trailer:
Também em comemoração aos 20 anos do DMIRN estão sendo lançados o livro “As mães do DMIRN – Conquistas e Desafios” e o site do Departamento de Mulheres Indígenas, instrumento de comunicação e fortalecimento do departamento.
Leia também: Corpo é território: mulheres indígenas se unem para garantir direitos e definir os rumos do aldeamento político
Lançamento do documentário “Rionegrinas”
Data: 12/09, às 18h30
Local: Centro de Convivência dos Povos Indígenas da UnB (Maloca)
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Especial da série #ElasQueLutam apresenta a força e resistência de três lideranças em nível local, regional e nacional
“Ouçam a minha fala. Agora já nos resta pouca terra [....] As florestas, os rios, os povos indígenas: é a sobrevivência deles que eu defendo até hoje”.
Aos 53 anos, Tuíre Kayapó ainda se desloca regularmente pelos mais de 1.100 quilômetros que unem a Terra Indígena Las Casas (PA) e Brasília (DF), para garantir que a floresta permaneça de pé e seus filhos e netos possam seguir existindo. É uma vida inteira de luta, que nem mesmo a passagem do tempo se tornou uma fronteira. “Se eu me calar e meus parentes morrerem, onde estarão os indígenas? Apenas os brancos vão existir”, assinala.
Em fevereiro, ela realizou mais uma vez esse percurso, para se unir à Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, uma convocação da Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) para debater coletivamente as possibilidades de incidência política em espaços como o Ministério dos Povos Indígenas, o Congresso Nacional, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e começarem a preparar a III Marcha das Mulheres Indígenas, que neste ano acontece entre os dias 11 e 13 setembro.
Foi nesse espaço, também, que Célia Xakriabá, Sonia Guajajara e Joenia Wapichana receberam a força e poder de representatividade dado pelas mulheres-biomas em cerimônia de posse ancestral.
Liderança histórica do povo Kayapó, Tuíre é reverenciada pelo icônico registro onde brada um facão contra a bochecha do então presidente da Eletronorte, o engenheiro José Antônio Muniz Lopes. Feita em 1989, no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, a fotografia marcou para sempre a história de resistência dos povos indígenas contra projetos predatórios a suas vidas e territórios, como era o caso da Usina Hidrelétrica Kararaô, então em discussão. O projeto, mais tarde, se tornou Belo Monte, que ignorou as vozes ancestrais que já anunciavam sua ruína. Porém, essas vozes não cessam em ousar salvar o pulsar do rio Xingu.
“Eu disse para ele: ‘branco, você não tem floresta. Essa terra não é sua. Você nasceu na cidade e então veio para cá atacar nossa floresta e nossos rios. Você não vai fazer isso”, lembra. “E então os brancos não fizeram mesmo”. Sua imagem correu o mundo e ajudou a adiar a construção da hidrelétrica por mais de 20 anos – a inauguração veio em 2015, agora com o nome de UHE Belo Monte.
Em um momento onde os homens eram os principais – e frequentemente únicos – líderes do movimento indígena, onde as mulheres pouco tinham espaço para participar na política externa das aldeias, Tuíre já se mostrava uma protagonista na defesa do seu território e da cultura do seu povo.
“Antigamente eu era a única mulher que ia para Brasília com os homens, e eu atuava bem”, Tuíre recorda. “Na minha luta, eu defendo meu povo, falo com os brancos; envelheci fazendo isso. Minhas parentas veem minhas fotos, vão aprendendo as coisas e agora somos muitas”.
De fato, onde antes Tuíre era uma exceção entre seus pares, hoje as mulheres indígenas representam de maneira inequívoca o rosto da luta pelos direitos indígenas e socioambientais.
Todos os anos, elas colorem Brasília com seus maracás e corpos pintados de jenipapo e urucum. Nos últimos tempos, essas mesmas mulheres passaram a ocupar lugares estratégicos da política indígena, fruto de uma longa construção para fortalecer e empoderar a assumirem a frente tanto dentro de seus territórios e associações como em espaços de diálogo com os não indígenas.
Inspiradas por Tuíre e por tantas outras, as mulheres Kayapó começam agora a assumir cacicados, liderar associações representativas do povo e até mesmo se candidatar a cargos públicos - caso de Maial Kaiapó, primeira do povo a concorrer a deputada federal.
No entanto, muito além das reuniões, marchas e encontros, Tuíre nunca deixou de lado a política cotidiana dos Kayapó, aquela que acontece essencialmente no território, no dia a dia da aldeia, e na qual as mulheres sempre exerceram influência indireta, desde seus núcleos familiares.
“Nós procuramos lenha, vamos para as roças, trazemos mandioca e ralamos. Preparamos o forno de pedra para alimentar nossos filhos e neles assamos batatas. Quando nossos maridos trazem peixe, nós limpamos e cozemos ou assamos. Se quisermos castanhas, temos que ir colhê-las e trazer para casa”, conta, sobre o dia-a-dia das mulheres Mebêngokrê. “Temos muito trabalho, é difícil. Vocês não dariam conta”.
A atuação feminina local é ponto de partida essencial para qualquer tipo de enfrentamento político, revela Tuíre, que também é cacica da aldeia Irã-Amraire, na Terra Indígena Las Casas. É por causa de suas mães e avós, que permaneceram no território prezando pela coletividade e cuidado com todos da aldeia, que, hoje, mais indígenas podem frequentar universidades, se formar e chegar a lugares que, até pouco tempo atrás, lhes eram negados.
“Agora nossos netos estudam, aprendem o português, aprendem a escrever e assim nossos parentes começam a ocupar esses espaços. E eu fico muito feliz e fortalecida”, diz. “Eles vão ter presença na política e vamos ajudá-los. Votaremos neles e não vamos mais ficar procurando os brancos. Eles vão trabalhar para nós e nos ajudar”.
Do território à academia, da academia para a política
Foi graças aos caminhos abertos por mulheres como Tuíre, que Jozileia Kaingang pôde realizar seu percurso acadêmico e, agora, político.
Doutoranda e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jozileia veio ao mundo pelas mãos de uma parteira de seu povo Kaingang, no Rio Grande do Sul, para hoje ocupar a chefia de gabinete da ministra Sonia Guajajara.
A sua história, no entanto, não começa na universidade e tampouco se limita ao cargo que possui atualmente. Jozileia traz consigo a ancestralidade Kaingang e remonta a resistência do seu povo que seguiu em retomada por seus territórios tradicionais, como a Reserva Indígena Serrinha, de onde vem boa parte de sua família e cujo processo foi capitaneado por mulheres indígenas, incluindo sua mãe.
Neta do cacique da Terra Indígena Carreteiro, Jozileia chegou à universidade em uma época em que o direito à educação superior não alcançava os indígenas. Seus pares só vieram a ser contemplados seis anos depois do seu ingresso, por meio da lei 12.711 de 2012, que estabeleceu a reserva de vagas no Ensino Superior para estudantes pretos, pardos e indígenas e para pessoas com deficiência.
“Eu fui para a universidade em um momento em que a gente ainda não tinha cotas, mas nós tivemos a luta das lideranças indígenas, dos nossos caciques, para que a Funai tivesse universidades com quem ela dialogasse e pudesse ter o ingresso com bolsa para os estudantes indígenas naquela época”, relembra.
“E eu acho que isso é importante dizer, a gente nunca fez parte desse lugar”, pontua. Tanto na política, como nas universidades, a presença indígena faz parte de um processo recente de retomada histórica. Cada vez mais indígenas, principalmente mulheres, vêm ocupando esses espaços, que despontam uma nova forma de resistência.
“A abertura das portas da universidade faz com que nós, mulheres indígenas, tenhamos uma outra possibilidade de construir vias que a gente possa trabalhar com os nossos povos, que a gente possa ser, mais uma vez, ferramenta de luta.”
Uma das fundadoras da ANMIGA, Jozileia traz a sua vivência como mulher indígena para a sua atuação acadêmica e para a sua forma de se organizar em uma rede nacional como a que ajudou a construir. “E eu acho que viver o que a gente acredita é isso, é você se doar para o movimento, é construir o movimento. O movimento não está dado, ele é uma construção conjunta coletiva e diária, cotidiana.”.
Nesse movimento, Jozileia vê as mulheres indígenas se organizando em uma importante característica: o recorte de gênero. “As mulheres são as que mais estão no território, estão cuidando dos seus territórios, cuidando das suas famílias, lutando para poder permanecer nas suas terras, fazendo as retomadas”, afirma. “São as mulheres que cuidam, são as mulheres que protegem”, conclui.
E foi como resultado de sua construção tanto pela via da pesquisa quanto pela da atuação direta dentro do movimento que surgiu o convite para comandar o gabinete do Ministério dos Povos Indígenas.
Apesar de receber a proposta com surpresa, Jozileia assumiu prontamente a função em janeiro de 2023. Agora, ela quer mais e mais espaços preenchidos por mulheres indígenas, dentro de cada competência. “Porque se a gente se soma é porque a gente tem cada uma um jeito de fazer, um modo de ser, uma especificidade dentro do nosso trabalho que a gente está mais dedicada, então isso faz com que a gente também ocupe os lugares dentro desse universo”, explica.
A primeira mulher indígena a assumir a Funai no Rio Negro
Somando à luta irrompida por Tuíre, Dadá Baniwa, de 42 anos, se une a Jozileia Kaingang no processo de abertura do que se chama aldeamento da política institucional. A primeira mulher indígena a assumir a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) do Rio Negro, em maio deste ano, nasceu na aldeia Assunção do Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM), a segunda cidade com o maior número de pessoas indígenas no país, segundo o Censo 2022 do IBGE.
Dadá foi nomeada pela presidente da Funai, Joenia Wapichana, em uma cerimônia foi realizada na Casa do Saber da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), organização onde atuou anteriormente como coordenadora do departamento de mulheres.
Sua chegada se deu por meio de uma indicação do movimento indígena local, que desempenhou um importante papel nas conquistas atuais. Dadá é parte disso, é uma das forças de uma luta coletiva. “É com bastante orgulho e profundo sentimento de responsabilidade que assumo hoje a Coordenação Regional da Funai do Rio Negro. Desafio esse que só aceitei por ter a plena convicção de que não estarei sozinha”, afirmou, durante a posse.
Estudante e mãe de quatro filhos, Dadá partilha sua vida entre a família, sua liderança, a articulação com outras mulheres indígenas, seu cargo e, principalmente, a construção de um futuro possível para os povos indígenas, que só se fará presente com as florestas em pé. “A gente precisa cuidar da nossa floresta, porque elas são muito importantes para a gente, do jeito que elas nos sustentam, dando a caça, dando o peixe, as nossas roças. Então a gente também precisa retribuir esse cuidado para a nossa mãe terra, então isso é muito importante, e isso a gente está fazendo através do trabalho das mulheres.”
Dadá destaca que o esforço desempenhado pelas mulheres indígenas vem aos poucos sendo reconhecido. “A gente está tendo oportunidade de ocupar mais esses espaços e mostrar que as mulheres podem, que as mulheres sabem, que as mulheres conseguem”, ressalta. “A gente só consegue realizar, concretizar o que a gente sonha através da nossa união e do nosso fortalecimento”.
Para ela, o futuro de seus filhos e netos ainda não está garantido. Por essa razão, junto ao movimento indígena, ela se articula pelo sonho de que um dia a política local também seja aldeada, com prefeitas e vereadoras indígenas.
“Eu acho que esse trabalho nosso agora é empoderar outras mulheres, chamar essas mulheres pra junto da gente e dizer ‘olha, a gente precisa de vocês, vocês têm que estar junto com a gente, porque só assim vamos conseguir avançar cada vez mais”, explica.
Apesar dos avanços, ela conclui: “Ainda há desafios, ainda há muitas conquistas daqui pra frente”.
Assim como Dadá, Tuíre e Jozileia deram seus depoimentos à equipe do ISA durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. As três mulheres, representando cada um de seus biomas, se uniram para o fortalecimento da luta e o protagonismo das mulheres indígenas na defesa dos seus direitos.
Mulheres-bioma, guerreiras ancestrais
No XV Acampamento Terra Livre, realizado em abril de 2019, foi um ambiente dinâmico e envolvente para as ações das mulheres indígenas. Lá, elas trouxeram à tona questões cruciais que culminaram na histórica Marcha das Mulheres Indígenas. Neste evento, ocorrido em Brasília, no Dia Internacional dos Povos Indígenas, em 9 de agosto daquele mesmo ano, 2.500 mulheres, representando 130 diferentes povos indígenas, se juntaram em uma poderosa união.
Essas mulheres se definem como mulheres biomas, onde cada qual - a depender do grupo que pertence - tem uma função importante para a organização e fortalecimento da mulher indígena no Brasil, do chão território ao chão do congresso, elas mostram que são mulheres árvores, raízes sementes e não somente mulheres, guerreiras da ancestralidade.
Confira alguns depoimentos:
Shirley Krenak
Co-fundadora Anmiga (MG)
“Estamos mais do que felizes, estamos empoderadas porque nós estamos ocupando esses espaços que realmente são nossos. Isso já deveria ter acontecido há muito tempo”
Gloria Potyguara
Presidente da associação de mulheres da aldeia Jucás- Monsenhor Tabosa (CE)
“Nós, como “mulher-semente” queremos ver crescer onde a gente for plantado. A gente quer articular outras mulheres a empoderar, a encorajar para estar na luta e estar na resistência”
Auricélia Arapiun
Coordenadora do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (PA)
“Nós passamos esses quatro anos só fazendo resistência, fazendo estratégia de resistir e proteger os nossos territórios. Nós acreditamos que só nós ocupando os espaços podemos fazer outra política”
Alana Wapichana
Vice-coordenadora das Mulheres da Região Murupu (RR)
“É muito bom estar presente e levar essa força dessas mulheres para o meu Estado”.
Assista:
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No último dia 29 de julho, o grande líder do povo Hupd’äh, Américo Salustiano Socot, fez sua última viagem pelas águas do Alto Rio Negro
Todos nós que tivemos a chance de trabalhar, dialogar e adentrar em caminhadas na floresta no Alto Rio Negro ao lado de Américo Socot saímos transformados. Seja pelo seu silêncio, pelo seu olhar sorridente ou pelas suas palavras de poliglota, como um falante diário de três línguas: a sua materna, Hup, Tukano e Português. Esse universo multilinguístico representava bem o que era a vida e o trabalho diário do Américo.
É difícil pensar que agora temos que seguir os trabalhos sem ele, sem sua tradução e interpretação de mundos. No último dia 29 de julho, Américo sofreu um acidente de voadeira nas águas do Rio Negro quando ia para seu sítio na comunidade do Cabari, próxima da cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Foram muitos dias de buscas, sem que Américo fosse encontrado na imensidão de água e floresta do Alto Rio Negro.
A última busca foi feita no dia 22 de agosto após sonhos de seus filhos apontarem que o corpo do Américo pudesse estar em alguma ilha na região da foz do rio Curicuriari. Mas, infelizmente, não o encontramos. Hoje completa-se 33 dias da sua derradeira viagem e sua família realiza uma cerimônia simbólica pela passagem do Américo, no cemitério de São Gabriel da Cachoeira, com a presença de parentes, amigos e do Bispo Dom Edson. Para homenageá-lo e manter viva sua memória publicamos esse texto, que conta com depoimentos de amigas e amigos indigenistas que trabalharam próximos a Américo nos últimos anos.
Suavidade Invencível
Américo nasceu na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, no dia 4 de maio de 1972. A demarcação e homologação da TI só veio mais de 20 anos depois do seu nascimento, em 1998. O líder acompanhou muitas transformações na região e viu seu povo, que que é a quarta maior população entre as etnias do Rio Negro, com aproximadamente 3 mil pessoas, passar por dificuldades no contato com a cidade e com a sociedade não- indígena.
Conheci Américo em 2017 neste contexto, andando pelas ruas de São Gabriel da Cachoeira como guia para seus parentes em peregrinações para acessar direitos, como retirada de documentos e acesso a benefícios sociais. Às vezes sentindo fome e sede na cidade, Américo mantinha esse trabalho de apoio aos Hupd’äh com força e serenidade. Com isso ele construiu uma rede de apoio que foi se fortalecendo nos últimos anos com a criação do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd’äh, Dâw e Nadëb).
Depois passamos a trabalhar mais próximos na época da elaboração do PGTA – Plano de Gestão Territorial e Ambiental - quando ele gravou um depoimento marcante na sua língua traduzindo o que seria, na visão Hupd’äh, um território protegido e saudável. Nessa ocasião, ele me apresentou seu filho, Álvaro Socot, e sugeriu que o jovem entrasse na rede de comunicadores Wayuri, onde está até hoje como comunicador.
Confira o depoimento:
Preocupado em se relacionar e se comunicar bem com as pessoas, Américo desejava que seu filho estudasse, aprendesse técnicas narrativas do audiovisual e pudesse também contribuir para a luta coletiva do seu povo. Além do Álvaro, Américo tem outros oito filhos: Jacinta, Marinela, Carmem, Simonia, Adalivia, Marivaldo, Greuza e Tadeu. Todos aprenderam com esse “pai herói” a dar valor ao diálogo e viver entre mundos. Casado com Isabel Sales Brasil, Américo já era avô do seu primeiro neto, chamado Talison, carinhosamente apelidado de “doutor”.
Sempre com leveza, Américo nos ensinou que a suavidade é invencível e nos deixa a missão coletiva de continuar “levando para a frente”, como ele mesmo gostava de falar, os trabalhos com o seu povo Hupd’äh. Aqui seguem homenagens enviadas por amigas e amigos que trabalharam ao lado do Américo Socot pelos direitos indígenas:
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Adelina de Assis Veloso Desana
Liderança indígena e funcionária da Funai em São Gabriel da Cachoeira
*Depoimento enviado por áudio e transcrito
“Foi muito difícil a partida do Américo Socot para todos nós que trabalhamos com ele. O Américo foi um grande líder no Rio Negro, um grande líder do povo Hupd’äh e do povo Yuhupdeh. Ele tinha um olhar muito cativante, tinha brilho e uma voz que todos ouviam. O que o Américo significou para toda a sociedade, não só para o seu povo, mas para todos que passaram a trabalhar com ele? Ele significou uma grande pessoa, pacificador, um cacique sempre na linha de frente da luta pelo seu povo.
Américo lutava pelo direito à cidadania, pela emissão de documentos e por benefícios sociais. Ele fazia essa ponte de tradução para o seu povo. Ele apoiava seu povo em idas ao banco, em lotérica e nas instituições. Ele significou muito para todos nós que estávamos ao redor dele. Sempre com educação e com gentileza ele pedia uma ajuda. E isso cativava a gente. O modo dele falar, o modo dele sorrir, o modo dele fazer piadas. 2023 foi um ano que eu estava muito próxima dele. Sempre senti no Américo uma força e uma energia positiva.
Para mim foi uma perda muito grande e que na minha alma agora eu sinto que falta alguma coisa na luta desses povos de recente contato. Isso porque o Américo não está mais com a gente para levar as informações ao seu povo, para fazer a tradução e falar o português de um modo que eles entendem. Américo foi um cacique diferenciado e que hoje sentimos muito pela perda dele. É uma saudade enorme que estará sempre na minha memória.
Vou sempre levar o que aprendi com Américo, de ser uma pessoa calma, de buscar ouvir e de saber responder na hora do nosso momento de falar. De sempre estar atento a tudo ao nosso redor durante uma reunião ou debate, sempre estar presente buscando entender e resolver as necessidades, não importa a necessidade que for. Eu aprendi ao lado do Américo sobre como falar das nossas necessidades e garantir os nossos direitos. De garantir uma ajuda, seja ela particular ou coletiva. Mas, ele sabia refletir sobre as dificuldades do povo dele e falar sobre elas para as pessoas. Foi isso que aprendi convivendo com Américo.”
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Bruno Marques
Antropólogo (Museu Paraense Emílio Goeldi) e membro do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd'äh, Dâw e Nadëb)
"Serenidade, força, humor e uma extrema inteligência. Américo Socot era meu amigo, mas começo esta memória falando da importância dele como liderança Hupd’äh.
Conheci Américo quando ele já morava nas proximidades de São Gabriel da Cachoeira, em algum momento entre 2013 e o começo de 2014. Neste tempo, começaram os deslocamentos massivos de famílias Hupd’äh, no período das férias escolares, para a cidade em busca de documentação e acesso a benefícios governamentais. Ficavam acampados em Parauari, próximo ao porto Queiroz Galvão, e sofriam toda a sorte de problemas acarretados pela precariedade das instalações na cidade, pela dificuldade das instituições locais em acolher as famílias, pela exploração dos comerciantes e das instituições bancárias. Américo se destacou no apoio às instituições locais e aos seus parentes Hupd’äh neste processo, colocando-se como uma forte voz de denúncia do que estava ocorrendo. Além do mais, esse processo transformou a visibilidade do povo no contexto político local e mesmo além.
Os Hupd’äh passaram a se colocar diante das instituições locais de forma mais direta, pautando demandas em diferentes áreas, como saúde, educação e direitos sociais, buscando se inserir em agendas locais e nacionais – como, por exemplo, o Acampamento Terra Livre 2023, em que Américo esteve presente. Américo Socot foi a liderança Hupd’äh de maior destaque nesse processo político que se estendeu pelos últimos 10 anos. Há, entretanto, outras lideranças do povo que também colocaram seus esforços, muitas das quais também já não estão mais entre nós – e muitas dessas tendo falecido de modo semelhante ao que ocorreu com Américo. Não cabe listar nomes, mas gostaria que essa memória pessoal que faço de Américo fosse também, de certa forma, uma homenagem a outros amigos Hupd’äh que faleceram nos últimos anos.
Américo, eu e outros colegas participantes do que viemos a chamar de CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd’äh, Dâw e Nadëb) nos aproximamos nesse contexto. Em 2015, seguimos para outras empreitadas, sobretudo o trabalho de elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Alto Rio Negro (FOIRN, FUNAI e ISA). Trabalhamos intensamente por anos, e Américo deu o tom e o método de trabalho com seus parentes no processo de consulta e elaboração conjunta, além de se destacar como liderança nas assembleias gerais do movimento indígena.
Américo colocava suas críticas a todos os atores e instituições que trabalham na região, mas sempre em um horizonte agregador. Ele soube, com paciência, dedicação e muita inteligência, lentamente fazer alianças, abrindo os espaços possíveis em um terreno nem sempre fértil, para dizer o mínimo. Américo, em sua serenidade, era profundamente altivo, que ninguém se engane, e que todos respeitem. “Respeito” era uma palavra, uma ideia, uma necessidade constantemente reforçadas por ele em suas falas.
Sempre que Américo Socot pegava o microfone em eventos públicos, falava, dentre outros assuntos e pautas específicos, de basicamente duas coisas: denunciava o que os parentes Hupd’äh estavam vivendo nas descidas para a cidade de São Gabriel da Cachoeira e falava dos conhecimentos da terra, dos caminhos, dos benzimentos na relação com a floresta. A força dos conhecimentos dos Hupd’äh na relação com a terra era sempre seu solo discursivo. Américo nos ensinou uma filosofia que relacionava s’ah sap (“terra cortada”, Terra Demarcada) e s’ah bi’id ta’ (“terra cercada com benzimento”). Política e xamanismo seguiam juntos nos conhecimentos e na vida.
Um tradutor cultural, como se costuma dizer. Uma coisa é traduzir palavras, outra é traduzir conceitos, ideias, mundos. E, nisso, ele era genial. Lembro de sentarmos por horas conversando sobre leis específicas, projetos etc. e Américo sempre me deixando impressionado com as construções que criava em língua Hup para traduzir aos seus parentes. Com ele, certamente aprendi sobre a língua Hup, mas talvez, em meio a isso, tenha aprendido algo mais profundo, que é a percepção do que jamais conseguiria aprender, o que está além, o que define o limite de ser um não-Hup.
Nesses dias em que procurávamos o corpo de Américo no Rio Negro, o que mais me lembrei foi da risada calma, a ironia sutil e as palavras inspiradas. Ele caminhava devagar, mas estava sempre andando... entre parentes, instituições, afins… era, em si, uma rede. Eu, um aliado, ele um líder, e, em algum momento desta última década, nos tornamos amigos, ou “amigão” como ele costumava me chamar. Nos ensinou muito, e cabe a nós que tivemos a sorte de conviver e aprender com essa pessoa gigantesca seguir seus passos na medida dos nossos limites.
Nesse momento de luto, é de um amigo – um “amigão” – que me despeço com a serenidade que tanto admirava nele. Guardo a memória alegre de uma viagem recente que fizemos no igarapé Japu. Era um dia de caxiri em Boca do Traíra, nos sentamos em um fim de tarde tranquilo para comer ipadu com parentes dessa comunidade. Américo tocava cabeça de veado, um instrumento de sopro que o haviam presenteado pouco antes. Ríamos e conversávamos. Gosto de pensar que, em algum lugar, esse momento permanecerá.
Kä’ tomou o rumo de seus ancestrais.
Amán ã́h hipãh tëg! Naw ham, nɨh báb’!"
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Danilo Paiva
Antropólogo, professor universitário e membro do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd'äh, Dâw e Nadëb)
*Depoimento enviado por áudio e transcrito
"Américo Socot foi um grande amigo, um grande homem, um grande professor. Conheci Américo em 2007. Ele foi a primeira pessoa Hupd’äh que eu conheci. Ele e o pai dele, Henrique Brasil. É uma dor imensa a morte dele. Eu convivi durante muitos anos com ele. Morei na casa do Américo e da Isabel, vi os filhos deles crescerem. Conheci as terras da família, do clã, a serra da Cutivaia, de onde ele veio com o pai, quando era criança ainda, para morar em Taracuá Igarapé. Esse era o território onde eles sempre iam abrir roças, pescar e caçar.
É difícil agora pensar em rumos da luta por direitos do povo Hupd’äh sem ele. Américo foi a grande liderança do povo Hupd’äh e o primeiro conselheiro distrital de saúde dos Hupd’äh. O primeiro a ocupar uma cadeira no Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena) representando os Hupd’äh e Yuhupdeh. O Américo também foi representante dos Hupd’äh na Funai. Ele foi um dos assessores para a elaboração dos planos de gestão territorial e ambiental dos Hupd’äh. O Américo foi um grande homem. Uma pessoa com uma capacidade imensa de trabalho, de diálogo com pessoas de outras etnias, pessoas Tukano, Desano, etc. E também no diálogo com pessoas não indígenas.
Tive o prazer de acompanhar o Américo na primeira viagem dele a Brasília, onde também estavam Domingos Barreto (Tukano), André Baniwa e o antropólogo Henrique Junio Felipe. Falamos com a Funai sobre os primeiros problemas que o povo Hupd’äh vinha passando já por conta das idas de centenas de pessoas todos os anos para a cidade de São Gabriel em busca de benefícios sociais, de documentos e também por conta das situações de epidemia. Epidemias de desnutrição, de suicídio, de malária, de gripe e de coqueluche.
Foram muitos anos de luta em que pude acompanhá-lo. Américo também foi um dos fundadores do Coletivo de Apoio aos Povos Hupd’äh, Yuhupdeh, Dâw e Nadëb. E ele era, enfim, uma grande luz que iluminava todo o nosso trabalho, de muitos de nós indigenistas e lideranças indígenas. E é por isso que essa homenagem é tão importante. Pude fazer várias viagens junto com Américo, várias caminhadas. Tive o prazer de apresentar minha filha pra ele, a Rosa, na nossa última viagem, e de vê-los brincando com bolinha de gude. Imagens muito bonitas. Ele era uma pessoa muito sensível, muito doce, muito acolhedora. Sempre pronto para ensinar as primeiras palavras na língua Hup para todos nós e de ensinar os sentidos do mundo Hup. E sempre pronto para engajar a gente nessa luta, na luta que ele animava e protagonizava. Então, com muita emoção e muita tristeza, deixo essa mensagem para homenagear meu grande amigo que se foi."
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Denivaldo Cruz da Silva
Coordenador Técnico Local (CTL) - Funai Alto Rio Negro
Falar do Américo Socot é falar da luta do povo Hupd’äh, sem demagogia. Entrei na Funai em 2015 e nesse mesmo ano conheci o Américo. Primeiramente, nas triagens no beiradão do Parawari, onde ficavam os Hupd’äh que se deslocavam das comunidades distantes para a cidade em busca de acesso aos documentos básicos e benefícios sociais. Me lembro exatamente o ano que ele ainda ficou diretamente na Funai como colaborador e então pude conhecê-lo melhor como pessoa e como liderança.
Participamos de várias reuniões juntos e ele sempre falava 'pelos meus parentes', com a fala mansa, no seu tempo, cada palavra dita com sabedoria, com experiência adquirida ao longo dos anos convivendo com outras etnias, e, principalmente como alguém que sofreu na pele a discriminação. Aprendi muito com meu amigo ouvindo suas palavras nas reuniões, nas realizações dos PGTAs e nas caminhadas. Uma característica específica e muito importante que tento colocar em prática: ter paciência e ouvir. Para fazer uma atividade com o povo Hupd’äh tem que ser 'no tempo deles', coisa que muitas vezes nós das instituições no ativismo do dia a dia acabamos atropelando.
A última viagem realizada com Américo e Danilo Paiva para a realização da oficina de audiovisual com jovens Hupd’äh, acabamos dividindo a equipe e nos encontramos em Barreira Alta. Ele estava feliz, pois via os jovens interessados, alegres querendo aprender coisas novas. É importante eles 'aprenderem a como divulgar nossas coisas', dizia ele. Ele me contou também que um velho pajé Hupd’äh tinha lhe repassado conhecimento até contra o suicídio.
Enfim, para falar do Américo seria um livro, com essas palavras encerro meu depoimento. Se foi meu amigo Américo, levando seus conhecimentos e seus sonhos. Só nos resta continuar a luta para que o povo Hupd’äh tenha em seu futuro um bem-viver em suas comunidades como era o sonho do Américo. Vá com Deus meu amigo!
OBS: Estamos agora em uma atividade de mutirão de documentação na região do rio Papuri para o povo Hupd’äh e como Américo nos faz falta!”
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Pattie Epps
Linguista norte-americana
"Sempre lembro da primeira vez que cheguei no Rio Tiquié, em julho de 2000, quando conheci o Américo. Tinha chegado no Brasil só duas semanas atrás e quase nem falava Português. Chegamos na beira do Rio Tiquié, depois de três dias de viagem debaixo da chuva, e lá era o Américo, pescando na beira perto do caminho para Taracuá Igarapé.
Lembro muito bem essas primeiras semanas que passei em Taracuá Igarapé, como ele me acolheu como capitão da comunidade, como a gente era quase da mesma idade, como conversamos num português que para nós dois ainda era bastante limitado naquela época, que logo passou para conversas na língua Hup, depois dos meses e dos anos. Lembro como ele me apresentou naquela primeira visita ao pai dele, o Seu Henrique, que chegou a ser uma pessoa de referência muito importante para mim, e a Isabel, que sempre me acolheu com muito carinho, e os filhos deles, que eram tão pequenos quando cheguei lá pela primeira vez, e que agora são adultos.
Através dos anos, o Américo sempre estava lá quando cheguei na região, ou no Rio Tiquié ou em São Gabriel; sempre passamos momentos lindos de conversa, de trocar conhecimentos, e nesses últimos anos, de lembrarmos juntos do querido pai dele. Conversamos sobre os conhecimentos incríveis dos Hupd’äh, os benzimentos, o território entre os Rios Tiquié e Japu, a floresta linda. Sempre fiquei impressionada com as contribuições dele ao povo Hup, com o caminho importante que ele desenvolveu em representar os Hupd’äh em São Gabriel e até no Brasil. E sempre contava em ver ele de novo. Americoan hipãhãy bɨg, hot ɨdɨy bɨg, ãh bab’."
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Rafael Moreira
Doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional, membro do Laboratório de Antropologia da Arte, Memória e Ritual (LARME/UFRJ/IFCS) e do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd'äh, Dâw e Nadëb)
"Náw yùh.
Se fosse o caso de pensar numa palavra equivalente a dizer adeus na língua hup, idioma falado pelos Hupd´äh do Alto Rio Negro, confesso que passaria vários dias sem encontrar uma resposta precisa. Sabe, aquele adeus, de quem espera nunca mais ver um ente querido! Pois bem, não tenho forças e nem vontade de me expressar assim sobre Américo Socot, indígena nascido na comunidade de Taracuá Igarapé, falecido no final do mês de julho na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Para ele, meu velho amigo, prefiro simplesmente dizer nàw yúh, expressão que os Hupd´äh utilizam quando querem agradecer alguém, dizer muito obrigado.
Conheci Américo, por volta de 2014, ainda durante o meu mestrado. Nesta ocasião, ele sempre andava de um lado para o outro buscando ajudar seus parentes que viajavam até a cidade, querendo aposentadoria, salário maternidade, bolsa família ou só passear. Muitos morreram na cidade, sem abrigo e atendimento das instituições, passando fome e sendo humilhados. Apesar do esforço do Américo para dialogar com o governo municipal e federal, em busca de melhoria para seu povo, ele perdeu vários irmãos em condições trágicas, antes dele vir a falecer nas perigosas cachoeiras do Rio Negro.
Num dos últimos registros que recebi do Américo, escuto ele pedindo para sua filha, Carmem, gravar sua voz no celular: 'Rafael, boa tarde! Ni am? Amán mensagem nó´ tëg!'. Falando um pouco de língua hup e português, eu entendi que ele dizia algo assim: 'Rafael, boa tarde! Tudo bem? Tenho mensagem para você!'. Infelizmente, as notícias não eram tão boas. Um parente dele tinha acabado de falecer. E ele estava com outros parentes acampados em sua casa, num pequeno sítio à margem do Rio Negro, que esperavam receber benefícios sociais. Faltava comida e, por isso, ele me dizia: 'Inìh amigo, àm! Amàn ajuda tukúy àn!', 'Você é nosso amigo, quero sua ajuda!' Fiz o que pude para ampará-lo, uma vez que em outras ocasiões ele fez de tudo para me acudir.
Lembro que, durante o meu trabalho de campo de doutorado, eu fui saber, no mês de abril de 2018, que o barco do “senhor Noventa” viajaria desde São Gabriel da Cachoeira até Iauaretê. Neste povoado multiétnico na fronteira da Colômbia, logo embarcariam mercadorias e comerciantes. Eu resolvi então conversar com Nenê, dono da embarcação que sairia de São Gabriel da Cachoeira, a fim de garantir uma passagem. Eu era o único antropólogo e esperava chegar em Iauaretê e depois prosseguir para um pequeno afluente, o igarapé Cabari, que é o local onde nasceu Isabel Salustiano, esposa do Américo.
No dia da viagem, acordei de madrugada. Pedi uma lotação na rua e estava tudo escuro. Enquanto descia com minha bagagem, um carro em alta velocidade tirou tinta do veículo e um passageiro cambaleante, vindo de alguma festa, logo saiu. Chovia um pouco e eu entrei na lotação. Cheguei ao barco do Nenê um pouco antes do amanhecer. Amarrei, então, minha rede para dormir. 'Saímos daqui meia hora', ele avisou. Baixei minha adrenalina, fiquei tranquilo e cochilei.
Tendo passado poucos minutos, o barco começou a afundar em função do peso da carga e danos na balsa. Os passageiros, entre eles, mulheres grávidas, crianças e velhos, desamarravam suas redes e corriam para terra firme, perto da margem do rio. Na proa, Nenê desamarrava a balsa com pressa. No entanto, fiquei aguardando no barco, imaginando que em último caso pularia na água e tentaria nadar. Decisão pouco prudente, certamente, uma vez que muitas pessoas morrem afogadas nas cachoeiras e redemoinhos que se formam no Rio Negro.
Felizmente, o barco não afundou e logo algumas canoas começaram a rodeá-lo. Uma delas vinha com Américo Socot, remando. Este indígena vivia justamente numa comunidade na beira do rio, onde os passageiros buscaram abrigo. Ainda sem acreditar naquela situação, escutei Américo me chamando. Eu entrei na sua canoa e ele me contou que estavam circulando notícias sobre o acidente e as mercadorias flutuando na água.
'Perdeu tudo, Rafael!', sorriu Álvaro Socot, um filho do Américo. Ao escutá-lo, não pude fazer nada senão sorrir copiosamente com ele e assistir aos tonéis com gasolina e caixas de isopor com fardos de frango congelado dos comerciantes descendo rio abaixo. Estes perseguiam, numa lancha, outros indígenas que cruzavam o rio. Estes fugiam em embarcações variadas, carregando tudo que boiava no caminho. 'Castigo de Deus, domingo não pode trabalhar', sumarizou Américo, lembrando o dia do ocorrido.
Tendo passado essa cena de filme ou de uma típica crônica do Pozzobon, as coisas se acalmaram. Américo, então, me convidou para pernoitar na sua casa e aguardar a chegada de uma nova embarcação, que levaria posteriormente os náufragos até Iauaretê. Peguei minha mochila e fui descansar. Mais tarde, retornei até a beira do rio para conversar sobre o barco com Nenê e saber sobre os meus pertences. Perdi ali alguma coisa, como um tonel com gasolina, mas tive certeza desde então que tinha conquistado um nobre amigo na minha vida. Por isso, com imenso carinho, nàw yúh Américo!"
OBS: As buscas por Américo Socot no Rio Negro contaram com uma rede de apoiadores e instituições que trabalhavam com Américo, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Funai, a Foirn e o DSEI-ARN. A todas as pessoas amigas que se envolveram nas buscas e ao apoio à família, gratidão pela generosidade e empenho voluntário nesta missão. Um homem generoso que dedicou grande parte do seu tempo de vida ao bem comum e a ajudar as pessoas do seu povo, recebe de nós que vimos sua luta e caminhamos com ele, nosso profundo sentimento de admiração e respeito pela sua força e coragem.
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