A Bacia do Rio Negro se estende pelos estados do Amazonas e de Roraima, no Brasil, e também avança pelos territórios vizinhos da Colômbia, Venezuela e Guiana. Na sua porção no Amazonas, a bacia é uma das regiões mais preservadas de todo o bioma amazônico, com biodiversidade incalculável. Por outro lado, a parte da bacia localizada em Roraima vem sofrendo grande degradação ambiental causada pelo garimpo ilegal de ouro, desmatamento e roubo de terra, ou "grilagem de terra".
Aproximadamente 68% da Bacia do Rio Negro no Brasil está formalmente protegida por um conjunto de unidades de conservação e terras indígenas legalmente reconhecidas. A diversidade cultural da região é enorme: ali vivem 45 povos indígenas e estão localizados dois patrimônios culturais do Brasil – a Cachoeira de Iauaretê e o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro – além do ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina, lugar sagrado do povo Yanomami.
No Rio Negro, o ISA mantém trabalho de longo prazo e parceria institucional - que nos enche de orgulho - com associações indígenas e suas lideranças, entre elas a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Hutukara Associação Yanomami (HAY) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Mantemos escritório e equipe na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), considerado o município mais indígena do Brasil, localizado no Alto Rio Negro. De São Gabriel, também descemos com as águas do Negro para apoiar comunidades e associações indígenas dos municípios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, ambos no Amazonas. Em 2009, o ISA incorporou a organização Comissão Pró-Yanomami (CCPY), sua equipe e legado, abrindo escritório em Boa Vista (RR) e passando a atuar diretamente com o povo Yanomami e outros povos de Roraima.
Atualmente, o ISA atua na Bacia do Rio Negro com a promoção de processos formativos, articulando parcerias para a proteção dos territórios indígenas, valorização da diversidade socioambiental, segurança alimentar das comunidades, desenvolvimento de cadeias de valor da economia da floresta para geração de renda e produção de pesquisas interculturais que dêem visibilidade aos conhecimentos tradicionais e modos de vida das populações que, há muitos anos, mantém as florestas da região preservadas.
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Juventude do Rio Negro: é urgente falar de justiça climática e racismo ambiental nas Terras Indígenas
Impactos da emergência climática no Amazonas foram debatidos em oficina com jovens lideranças na sede do ISA em São Gabriel da Cachoeira
Oficina sobre justiça climática, realizada na sede do ISA em São Gabriel da Cachoeira, debateu último relatório do IPCC|Adelina Desana/Acervo pessoal
Calor extremo prejudicando a agricultura, chuvas intensas que alagam e devastam cultivos, além de incêndios florestais que resultam em estiagens e isolamento de comunidades, são apenas alguns exemplos dos impactos da emergência climática sentidos e narrados por indígenas que moram em comunidades no Noroeste Amazônico — na região de fronteira com a Venezuela e Colômbia conhecida como Cabeça do Cachorro, na Bacia Hidrográfica do Rio Negro.
Integrantes da juventude indígena de São Gabriel da Cachoeira, coordenada pelo Departamento de Adolescentes e Jovens (Dajirn) da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a Rede Wayuri de Comunicação Indígena, participaram em 8 de setembro de oficina sobre Justiça Climática realizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) no telecentro comunitário.
Estavam presentes 15 jovens indígenas que são líderes, articuladores e/ou comunicadores para seus povos e comunidades de oito etnias do Rio Negro: Arapaso, Baniwa, Baré, Desana, Piratapuia, Tukano, Wanano e Yanomami.
A oficina foi organizada e ministrada pela articuladora de políticas socioambientais do Programa Rio Negro do ISA, Juliana Radler, e contou com a mobilização da Rede Wayuri de Comunicação Indígena e do coordenador do Dajirn, Elson Kene, do povo Baniwa.
Edneia Teles, do povo Arapaso, representante da Secretaria Municipal de Juventude, Esporte e Lazer de São Gabriel da Cachoeira (Semjel), também enfatizou a importância de a pauta Justiça Climática ser incluída na 3ª Conferência Municipal de Juventude, que terá o tema “Reconstruir e Transformar: Protagonismo em defesa da vida, Território e Justiça”.
O evento municipal acontece na quarta-feira (27/09), no Centro Missionário Salesiano, no centro de São Gabriel da Cachoeira. A oficina teve ainda o apoio da Fundação Rainforest, da Noruega.
Vez e voz da juventude indígena
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Juventude indígena do Rio Negro discutiu justiça climática e racismo ambiental em oficina|Yasmim Samores Melgueiro Baré/Acervo pessoal
“A juventude indígena do Rio Negro, junto com o movimento socioambiental, vem organizando encontros e levando o tema da emergência climática para as assembleias indígenas de base, em especial para os encontros de jovens nos territórios”, afirmou Juliana Radler, especialista em Jornalismo Ambiental que já cobriu como repórter 10 Conferências do Clima (COP).
“Agora, é o momento da juventude indígena da Amazônia se preparar para ter voz ativa na Conferência do Clima da ONU em Belém, em 2025, tendo consciência do que significam conceitos como emergência climática, justiça climática e racismo ambiental”, completou.
A oficina teve uma exposição sobre o último relatório dos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – o IR6, sexto relatório de avaliação, divulgado em março deste ano. O estudo traz as últimas conclusões de 780 cientistas do mundo sobre a situação extremamente grave do clima no planeta devido ao aumento das emissões dos gases do efeito estufa (GEE).
Na sequência, também foi feita uma exposição sobre os conceitos de justiça climática e racismo ambiental, com exemplos e roda de conversa com o grupo.
Carta de Direitos Climáticos da Juventude Indígena do Rio Negro
Os jovens receberam materiais de apoio para trabalharem sobre o tema em suas comunidades. O objetivo é mobilizar a juventude indígena do Rio Negro sobre o tema da emergência climática para construir, até a sua Assembleia Geral, em 2024, uma Carta de Direitos Climáticos da Juventude Indígena rionegrina.
Para isso. um calendário de atividades está sendo fechado, e contará com reuniões virtuais e presenciais com os articuladores do Dajirn nas cinco regiões de atuação da Foirn, nos municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, em parceria com o ISA.
A expansão dos pontos de internet pela Foirn também vem facilitando a mobilização dos jovens indígenas em pautas relevantes e estratégicas para as suas comunidades.
Leia os depoimentos abaixo:
Juntos pelo clima na Terra Indígena Alto Rio Negro
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Hélio Géssem, do povo Tukano, morador da TI Alto Rio Negro|acervo pessoal
Hélio Géssem, do povo Tukano Articulador do Depatamento de Adolescentes e Jovens Indígenas (Dajirn/Foirn) da Coordenadoria DIA WI'Í)
“Na minha opinião, precisamos urgentemente conhecer e estudar sobre Emergência Climática e quais são os fatores que afetam e contribuem para as mudanças climáticas. Eu e também os demais indígenas precisamos de formação técnica para poder trabalhar com essa temática para dentro das comunidades e entender o lado técnico da ciência. Queremos, com isso, trazer a comparação e o diálogo com o saber indígena e assim, de fato, buscar alternativas para esse imenso problema. Juntos, o conhecimento indígena e não indígena, podem colaborar muito com as soluções. O saber indígena ainda está vivo e precisamos criar uma plataforma digital para alimentar os dados coletados e os que ainda vão ser coletados e assim, futuramente, criar um calendário ambiental atualizado. Agora, precisamos realizar e mobilizar campanhas urgentemente no território indígena para tratar dessa temática da emergência climática, pois é um assunto vital para a sobrevivência humana. Vejo também como uma oportunidade grande de mostrar o saber indígena nessas discussões futuras”.
Incidência política precisa ser de dentro do território indígena para fora
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Elson Kene, do povo Baniwa, liderança da juventude indígena do Rio Negro|
Juliana Radler / ISA
Elson Kene, do povo Baniwa Coordenador do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas (Dajirn/Foirn)
“Já estamos vendo as consequências das mudanças climáticas conforme as pesquisas realizadas pelos nossos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas), que relatam os últimos acontecimentos na região do Rio Negro. Essa observação é muito impactante e a gente vê a atual realidade ambiental no Rio Negro com preocupação. Desde já, precisamos estar nesta discussão, para que a gente possa ter participação em uma temática de extrema importância para nós e que vai trazer muito impacto no futuro. Precisamos apresentar nossas propostas como jovens e como moradores indígenas do Rio Negro. Temos nosso próprio manejo do meio ambiente, desde o sistema agrícola para a nossa alimentação, como outros manejos do mundo ao nosso redor. Temos que apresentar propostas que estejam sempre ligadas à nossa cultura, assim como também precisam dialogar com nosso Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). A gente vê também que não conseguimos nos adaptar a essas mudanças do clima de forma rápida como os brancos, grandes empresários, que conseguem fazer essas adaptações muito rapidamente porque têm dinheiro e muitos recursos para investir. A gente aqui precisa de implementação de políticas públicas que possam beneficiar nossos povos e comunidades que são afetadas pelas consequências das mudanças climáticas. Mesmo tendo nossa forma tradicional de viver bem, notamos a necessidade de ter uma ajuda das políticas públicas do governo para essa questão da mudança climática. Nosso território é nosso centro do mundo. Por isso, precisamos preservar e ter também a parceria com outras pessoas de fora que nos ajudam a preservar a nossa região”.
Cuidar o meio ambiente como bandeira de luta
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Adelina de Assis Veloso, do povo Desana, da TI Balaio|Juliana Radler/ISA
Adelina de Assis Veloso Ex-coordenadora do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas (Dajirn/Foirn)
“Quando é colocada essa palavra forte “justiça” nos faz refletir. O que é justiça, o que é justiça climática? Foi muito bom conhecer esse conceito e acompanhar o debate com os participantes e com a Rede Wayuri, com os próprios comunicadores que têm esse papel de divulgar e falar sobre o nosso meio ambiente. Tiveram pontos trazidos pelos jovens das aldeias e dos distritos maiores, como Taracuá e Iauaretê, que vão levar o tema sobre justiça climática para suas comunidades. Ficou muito clara a importância do cuidado com o meio ambiente para combater a emergência climática. A minha observação é que esse tema precisa ser multiplicado nas comunidades. Nós, que moramos nas aldeias dentro da floresta, vivendo no rio, comendo as caças da floresta, os peixes do rio, frutas nativas e as frutas plantadas pelos nossos avós e pais, a gente se sente bem. Porém, a gente esquece de dar valor e cuidado com o que é essencial para a nossa vida. E o nosso dever é ter esse cuidado com o nosso território. Os impactos ambientais causados em outros estados e em outros países também vêm nos afetando. Porque aqui ainda temos gerações que têm contato direto com o rio, com a mata e com o modo de alimentação tradicional. Cuidar do nosso meio ambiente também é cuidar da nossa própria saúde. Por isso precisamos fazer do cuidado do meio ambiente nossa bandeira de luta como juventude indígena e a gente deve multiplicar esse cuidado. A vida do planeta depende da floresta. A veia de tudo, da chuva, do ar, das nuvens, de tudo, é a floresta. Assim encerro minha palavra.”
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Rede Wayuri e Museu da Pessoa lançam podcast ‘Guardiões da Memória do Rio Negro’
Episódios gravados por jovens e lideranças indígenas em Santa Isabel do Rio Negro e Iauaretê, no Amazonas, começaram a ser divulgados esta semana. Narrativas trazem conhecimentos ancestrais e histórias de vida
Podcast 'Guardiões da Memória do Rio Negro' entrevista conhecedores e conhecedoras das narrativas ancestrais|Museu da Pessoa/Divulgação
Dona Maria Lucélia, povo Desana, de nome indígena Diakarapo, nasceu na comunidade Pakowa, na Colômbia, e cresceu na comunidade Yai Boha, Santa Marta, rio Papuri, no Brasil. Lá passou pelo processo de benzimento e desde cedo recebeu orientações do pai. Ela se mudou ainda jovem para Iauaretê, distrito de São Gabriel da Cachoeira (AM), para dar continuidade aos seus estudos no internato salesiano junto com outras 600 internas. É uma conhecedora de histórias ancestrais.
Roberto da Silva é do povo Baré e nasceu em 1961. Educador das comunidades da região do Médio Rio Negro, passou parte da juventude pelos piaçabais, o que marcou sua história de vida. É morador da comunidade Jerusalém, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
Essas e outras histórias – contadas em primeira pessoa e registradas por indígenas do médio e alto rio Negro – estão disponíveis no podcast Guardiões da Memória do Rio Negro, projeto desenvolvido pelo Museu da Pessoa com a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro.
O lançamento aconteceu na quinta-feira (21), dentro da programação “Memórias Ancestrais”, agenda do Museu da Pessoa na Primavera dos Museus. Os áudios podem ser encontrados nas redes sociais do Museu da Pessoa e da Rede Wayuri.
Os episódios serão disponibilizados quinzenalmente, até o final do ano. Escute no Spotify:
Os comunicadores registraram narrativas e histórias em Iauaretê, no rio Uaupés, e Santa Isabel do Rio Negro. Os principais temas foram o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN) e a Cachoeira da Onça, em Iauaretê, ambos registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Foram ouvidas 27 pessoas em comunidades do médio rio Negro e 35 em Iauaretê. Muitos dos entrevistados são os próprios pais, mães, avôs, avós, tios e tias dos jovens participantes.
Por meio das histórias de vida, aparecem a riqueza cultural, a tradição, a resistência e a exploração colonizadora que passa por piaçabais e a opressão religiosa, entre outros. A produção do podcast teve início em 2022. Este ano, a Rede Wayuri foi convidada a integrar o projeto com a realização de uma oficina de comunicação para ações de divulgação.
Comunicadora da Rede Wayuri, Juliana Albuquerque, do povo Baré, participou de encontros em Santa Isabel do Rio Negro e em Iauaretê. “Quando fomos convidados, até fiquei com um pouco de receio, pois sabemos da importância do Museu da Pessoa. Mas tive o apoio da Rede e segui em frente”, diz.
Ela desenvolveu as atividades junto com os jovens e lideranças que já integravam o projeto. O resultado foi uma intensa troca de saberes. “Percebi que muitos estavam com dúvidas sobre como gravar os áudios, como fazer os roteiros. Fomos fazendo juntos e aprendendo”, relata.
“É um grande projeto, que nos ajuda a perceber que às vezes a gente mesmo, que vive aqui, não conhece as nossas histórias. Quando ouvi as narrativas, resgatei memórias da minha própria história. Outro grande desafio foi fazer os registros nas línguas indígenas. Em Iauaretê, a maioria dos áudios estavam na língua tukano e foi necessário irmos atrás das traduções. Foi uma troca de saberes”, completou.
Histórias de vida também são patrimônios
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Captação de áudio e imagem em Iauaretê, distrito indígena no alto rio Negro|Museu da Pessoa/Divulgação
A Rede Wayuri tem um programa de rádio semanal, o Papo da Maloca, que divulga informações do movimento indígena e sobre outros temas de interesse dos povos do rio Negro. Além disso, o coletivo mantém o podcast Wayuri e o Instagram da Rede.
São 19 bolsistas e cerca de 40 voluntários indígenas dos povos Wanano, Baré, Tukano, Hupd´däh, Yanomami, Piratapuia, Hupd´äh, entre outros. Eles atuam a partir de São Gabriel da Cachoeira e das comunidades indígenas do extenso território do rio Negro.
A série de podcast está inserida no projeto Memória, Território e Patrimônios Imateriais do Rio Negro, desenvolvido em parceria entre o Museu da Pessoa, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e organizações indígenas locais.
Esses episódios foram idealizados e produzidos pelos Guardiões da Memória – jovens e lideranças que participaram do projeto - em parceria com a Rede Wayuri, que é ligada à FOIRN e tem o apoio do ISA.
O projeto é coordenado pela antropóloga Aline Scolfaro. As oficinas tiveram também a participação da coordenadora do programa Vidas Indígenas do Museu da Pessoa, Márcia Trezza.
“Acredito que, com a execução desse projeto, foi possível reforçar a ideia de que as pessoas e suas histórias de vida não só fazem parte dos domínios que constituem e dão sentido aos patrimônios, mas são também em si um patrimônio a ser salvaguardado”, diz Aline.
Comunicador e Guardião da Memória, Rogério Xavier, povo Baniwa, que vive na comunidade de Cartucho, médio Rio Negro, trouxe a importância do registro das narrativas para a valorização das vivências.
“Com esse trabalho, a gente começou a se dar conta do valor dessas histórias, do valor da cultura, da floresta, desse rio. Acho que a maioria aqui não se dava conta, apenas ia vivendo”, disse.
O Museu da Pessoa é um museu virtual e colaborativo de histórias de vida. Nos últimos anos, vem buscando ampliar sua atuação junto a povos indígenas e outras populações tradicionais, visando contribuir com a luta indígena e a pauta socioambiental, através de projetos de memória desenvolvidos de forma colaborativa.
Além do podcast, também foram produzidos vídeos curtos e dois documentários com trechos das histórias de vida registradas em Iauaretê e Santa Isabel do Rio Negro E ainda o livro “Um rio de raízes e memórias”, com histórias dos detentores do Sistema Agrícola no Médio Rio Negro. Todos esses produtos resultantes do projeto foram disponibilizados ao público dentro da programação da Primavera dos Museus.
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Cuidadoras da memória e do futuro, mulheres indígenas do rio Negro contam sua história em filme e livro
Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN) completa 20 anos. Comemorações ocorreram durante a III Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, com lançamento de publicação, documentário e site
Dadá Baniwa (centro), ex-coordenadora do DMIRN e atual coordenadora da Funai Regional Rio Negro|Suellen Samtanta/Rede Wayuri
Ohpenkõ di´a kahnã numia é como se escreve mulheres indígenas do rio Negro ou rionegrinas, em Tukano, uma das línguas faladas nessa região da Amazônia. A frase está no canto preparado por Odimara Ferraz Matos, povo Tukano, entoado durante a III Marcha das Mulheres Indígenas, que aconteceu em Brasília, de 11 a 13 de setembro, com organização da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Com vestimentas tradicionais, urucum e jenipapo, elas divulgaram sua luta durante a marcha na Esplanada dos Ministérios, junto a outras aproximadamente 8 mil mulheres do país todo. Ao som de maracás, fizeram barulho e buscaram espaço nos gabinetes oficiais, articulando por políticas públicas que beneficiem as mulheres em seus territórios.
“Esse canto mostra que a mulher sempre esteve no movimento indígena, mas sua história nem sempre apareceu”, diz Odimara.
Junto dela estavam lideranças como Elizângela Baré, Dadá Baniwa, Cleocimara Reis (povo Piratapuya), Larissa Duarte (povo Tukano), Almerinda Ramos (povo Tariano) e Janete Alves (povo Desana). A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), Joênia Wapichana, também esteve ao lado das mulheres do Rio Negro durante a marcha.
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Daiara Tukano, artista indígena, Joênia Wapichana, presidente da Funai, e Madalena Olímpio, do povo Baniwa|Suellen Samanta/Rede Wayuri
Para as rionegrinas, é um momento especial para falar dessa história: no encontro foram comemorados os 20 Anos do Departamento das Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN).
Foram lançados o documentário “Rionegrinas” e o livro “As mães do DMIRN – Conquistas e Desafios”, que trazem narrativas das lideranças do departamento e resgatam a memória para inspirar o futuro. Também houve o lançamento do site do departamento, instrumento de comunicação e fortalecimento. Conheça em https://dmirn.foirn.org.br.
Coordenadora do DMIRN, Cleocimara Reis fala da valorização dessa história. “Essa história é inspiradora não só para o rio Negro. Mulheres indígenas de outras regiões estão nos propondo intercâmbios para conhecer o DMIRN e para estruturar seus próprios departamentos”, disse em São Gabriel da Cachoeira, ao retornar de Brasília.
A comitiva que foi a Brasília era formada por cerca de 40 mulheres de povos como Baré, Tukano, Baniwa, Yanomami, Piratapuia, Wanano, Desana, Tuyuka, entre outros. Povos considerados de recente contato, os Hudp´däh e Nadeb também contaram com representantes na marcha.
Entre as integrantes estavam três comunicadoras da Rede Wayuri: Cláudia Ferraz, povo Wanano, Suellen Samanta, povo Baré, e Deise Alencar, povo Tukano. “Foi muito especial participar desse momento e mostrar o histórico do DMIRN, a caminhada e o avanço até hoje. Essa caminhada é inspiradora e é necessário termos um olhar diferenciado para a história dessas mulheres, conhecendo, reconhecendo e dando visibilidade”, diz Suellen Samanta.
Escute o programa especial sobre a III Marcha das Mulheres no podcast Wayuri, produzido por Cláudia Wanano:
“Rionegrinas”
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Comemoração multiétnica no lançamento do filme|Mariana Soares/ISA
Produzido pelo ISA em parceria com o DMIRN e FOIRN, o documentário “Rionegrinas” foi lançado no dia 12, no Centro de Convivência dos Povos Indígenas da UnB (Maloca), em Brasília. Na plateia, mulheres indígenas do rio Negro, mas também de outras regiões, como as Kayapó e Waiãpi e, ainda, estudantes indígenas da UnB. A artista e ativista Daiara Tukano, nascida na região do alto rio Negro, participou da sessão e trouxe a tradição indígena para falar da mulher na narrativa do surgimento do mundo.
A direção e o roteiro são da documentarista Fernanda Ligabue e da articuladora de políticas socioambientais do ISA, Juliana Radler, com colaboração de Dadá Baniwa, Carla Dias, Dulce Morais e Ana Amélia Hamdan. O filme conta, por meio de depoimentos das mulheres indígenas, a luta por espaço, território, renda e sustentabilidade. Desde as roças até as universidades, desde a casa-território até os cargos públicos.
O DMIRN tem uma coordenadora e cinco articuladoras regionais que possibilitam um diálogo com o território indígena do rio Negro.
Na região, vivem povos de 23 etnias em cerca de 750 sítios e comunidades nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos (AM).
A coordenação é de responsabilidade de Cleocimara Reis e as articuladoras são: Belmira Melgueiro, Baré; Madalena Fontes Olímpio, Baniwa; Odimara Ferraz Matos, Tukano; Maria das Dores Azevedo Barbosa, Tariano; e Victoria Campos, Tariano.
Entre as pautas prioritárias do DMIRN estão equidade de gênero, apoio às associações de mulheres indígenas, geração de renda e sustentabilidade, fortalecimento de conhecimentos e saúde, medicina indígena e sistema agrícola tradicional, enfrentamento aos impactos da emergência climática e direitos das mulheres.
Antes de se estruturar como departamento, muitas trilhas foram percorridas, como relata Rosi Waikhon. Ela relembra que o presidente da FOIRN à época, Braz França, do povo Baré, indicou que elas precisavam se organizar no papel. E assim foram trabalhando até criar o DMIRN, depois a loja Wariró, hoje a casa do artesão e da artesã indígena do rio Negro, que não só vende produtos, como fortalece a cultura.
Em 2020, a pandemia da Covid-19 atingiu fortemente a região do rio Negro. As coordenadoras do DMIRN à época, Elizângela da Silva, do povo Baré, e Janete Alves, povo Desana, articularam apoios e parcerias para ações de proteção e saúde. Foi criada a Campanha 'Rio Negro, Nós Cuidamos!', que levou ajuda humanitária para dentro do território indígena.
Entre outras mulheres, o documentário tem a participação da coordenadora da Rede Wayuri, Cláudia Wanano, trazendo a importância da comunicação para e feita pelas indígenas. A Ex-coordenadora do DMIRN, Dadá Baniwa, que hoje está à frente da Coordenação Regional Rio Negro da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai – CR Rio Negro) fala no filme sobre o fortalecimento da presença da mulher indígena no espaço político, citando a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a presidente da FUNAI, Joênia Wapichana, e a deputada federal Célia Xacriabá. Todas estavam presentes na Marcha.
A antropóloga Francy Baniwa reflete sobre a conquista dos espaços nas universidades e desafios que permanecem. A liderança Edneia Teles, povo Arapaso, aponta para o futuro e fala da importância do registro da memória do DMIRN para as próximas gerações.
O filme será lançado também em Manaus e São Gabriel da Cachoeira, mas as datas ainda não estão confirmadas. Confira o trailer:
“Mães do DMIRN”
O livro “As Mães do DMIRN – Conquistas e Desafios” também traz depoimentos das mulheres indígenas. A escrita foi conduzida por Elizângela da Silva, povo Baré, ex-coordenadora do DMIRN, comunicadora e liderança, numa construção conjunta.
“Quando comecei a escrever é como se fosse uma mulher parindo, uma mulher grávida. As mulheres contavam: lá naquele início nós éramos tratadas assim e nossas estratégias eram essas. Nós procurávamos mais diálogo e parcerias para dizer de nossa importância. A nossa tradição é muito forte, é patriarcal e, na época, os homens eram machistas e diziam que nossa participação estava fora do contexto ou do estatuto. Mas a gente criava outras estratégias e assim foram construindo”, relata Elizângela Baré.
Ela revela que uma das estratégias das mulheres foi fortalecer a geração de renda por meio do artesanato, conquistando outros espaços de luta por saúde, educação e formação. A publicação tem o apoio do Observatório da Violência de Gênero no Amazonas, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com a professora Flávia Melo da Cunha, e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), com o professor José Miguel Nieto Olivar.
Odimara Ferraz Matos, povo Tukano, entoa canto com a história das rionegrinas|José Miguel Nieto Olivar/Divulgação
Rosilda Cordeiro, professora e liderança do povo Tukano, recebe pintura tradicional|José Miguel Nieto Olivar/Divulgação
Dança, cantos e trajes típicos_ tradição na luta por direitos|José Miguel Nieto Olivar/Divulgação
Cleocimara Reis, povo Piratapuia, lança o site do DMIRN na abertura da III Marcha das Mulheres Indígenas|Suellen Samanta/Rede Wayuri
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Indígenas reabrem roteiros de Serras Guerreiras de Tapuruquara, turismo de base comunitária na Amazônia
Visitantes são recebidos e guiados por moradores de comunidades indígenas do Rio Negro (AM). Próximas saídas serão em novembro.
Turismo de base comunitária leva a imersão nas belezas naturais e culturais da Amazônia|Marcelo Monzillo / ISA
Cercadas pela floresta, pelo rio Negro, seus igarapés e igapós, as Serras Guerreiras de Tapuruquara, localizadas em uma das regiões mais preservadas da Amazônia, no município de Santa Isabel do Rio Negro (AM), voltam a receber visitantes no próximo mês de outubro. A retomada é especial, já que os passeios não aconteciam desde 2019, quando foram interrompidos devido à pandemia.
O primeiro roteiro, chamado Maniaka, tem nove dias de duração e foi cuidadosamente pensado e estruturado pelos povos indígenas. Os turistas serão recebidos por famílias que moram nas comunidades e têm a oportunidade de viver uma imersão cultural, guiados pelos povos que vivem ali milenarmente. O segundo roteiro é o Iwitera e estará disponível a partir de janeiro.
Cada expedição conta com no máximo 12 visitantes e, portanto, as vagas são limitadas. No próximo dia 14, quinta-feira, às 19h (horário de Brasília) será realizada uma roda de conversa virtual sobre o projeto. Não perca!
A expedição parte de Manaus e os pacotes incluem transporte de barco até as comunidades, alimentação e todas as atividades previstas nos roteiros nas comunidades.
O projeto Serras Guerreiras de Tapuruquara é uma experiência que une o turismo de base comunitária, o turismo etnográfico e o ecoturismo, possibilitando que o visitante tenha a experiência de conhecer a região e, ao mesmo tempo, de proteger a Amazônia e fortalecer a cultura dos povos que vivem ali, contribuindo com o desenvolvimento sustentável.
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Vista do topo da Segunda Serra Guerreira, próxima à comunidade do Cartucho no Rio Negro|Marcelo Monzillo/ISA
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Vista do topo da Serra Iacawení, na Comunidade Uábada II, em Santa Isabel do Rio Negro (AM)|Marcelo Monzillo/ISA
Pelo turismo comunitário, as comunidades locais desempenham papel central no desenvolvimento e gestão do projeto, sendo as principais beneficiadas. Com o etnoturismo, os visitantes vivenciam e aprendem sobre as tradições, costumes, estilos de vida e patrimônio cultural das comunidades anfitriãs. Como os roteiros são pensados pelas comunidades, o calendário respeita o cotidiano dos indígenas, interferindo minimamente em seus modos de vida.
Durante a viagem às Serras Guerreiras, os visitantes vão conhecer as comunidades Cartucho; Tayaçu (São João II) e Aruti, passando pela experiência de dormir em redes, caminhar por trilhas, navegar em canoas, experimentar o alimento tradicional, ouvir narrativas em línguas indígenas, observar a confecção de artesanatos e ir às roças tradicionais cultivadas em meio à floresta.
Nas idas às roças, o visitante vai ver de perto o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, registrado como patrimônio cultural nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Localizadas em Santa Isabel do Rio Negro, as Serras Guerreiras de Tapuruquara são consideradas sagradas. A narrativa revela que as serras são guerreiros que desceram da Colômbia para lutar contra uma cobra mitológica que estava impedindo a passagem e permanência dos indígenas. Os guerreiros venceram a batalha e estão até hoje no local, representados em rochas.
Nessa região – no médio e alto rio Negro - convivem povos de 23 etnias em cerca de 750 sítios e comunidades em meio à floresta. Os visitantes vão estar em contato principalmente com povos Baré, Desana e Baniwa.
As expedições às Serras Guerreiras de Tapuruquara aconteceram anteriormente, entre 2017 e 2019, quando foram realizadas treze expedições que beneficiaram ao menos 100 famílias e 500 pessoas de oito etnias. Em 2020, a pandemia do coronavírus forçou a interrupção das atividades. Agora, os indígenas se preparam para receber novamente os visitantes.
O projeto de turismo de base comunitária Serras Guerreiras de Tapuruquara é desenvolvido pela Associação das Comunidades Indígenas Ribeirinhas (ACIR) e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O roteiro especial de retomada será operado pela agência Poranduba Amazônia.
Serras Guerreiras de Tapuruquara
Roteiro Maniaka
Comunidades Cartucho, Tayaçu (São João II) e Aruti
Data: 3/11/23 a 11/11/2023
Valor: R$ 7.200 à vista ou parcelado com acréscimo em até 12x
Principais experiências:
- Prática cultural com cerâmica;
- Prática cultural com tecidos de arumã;
- Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (Patrimônio Cultural do Brasil);
- Canoada;
- Dança Mawako.
O que está incluído:
Ida de barco regional a partir de Manaus inclusa (não inclui volta de avião a Manaus);
O pacote inclui transporte até as comunidades, alimentação tradicional e as atividades previstas nos roteiros nas comunidades.
Sr Jacson Luís, artesão dos fornos de cerâmica, na Terra Indígena Médio Rio Negro II|Marcelo Monzillo/ISA
Sra. Alaíde produzindo farinha na Comunidade Cartucho, em Santa Isabel do Rio Negro (AM)|Marcelo Monzillo/ISA
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Documentário “Rionegrinas” será lançado nesta terça (12), em Brasília
Filme guarda memórias de mulheres no movimento indígena do rio Negro (AM) e na construção do DMIRN-FOIRN, que completou 20 anos.
A trajetória de lutas e conquistas das mulheres do rio Negro dentro do movimento indígena e na criação do Departamento das Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN) é narrada no documentário “Rionegrinas”, que será lançado em 12 de setembro, em Brasília, no Centro de Convivência dos Povos Indígenas da UnB (Maloca).
Uma comitiva de cerca de 40 mulheres do médio e alto rio Negro, no Amazonas, estará no lançamento do filme, que celebra os 20 anos do DMIRN-FOIRN. O departamento foi criado em 2002 e chegou aos 20 anos em 2022, mas as comemorações estão acontecendo agora.
O grupo participa da III Marcha das Mulheres Indígenas - Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
A comitiva leva à Brasília a diversidade do rio Negro, com mulheres dos povos Baré, Tukano, Baniwa, Yanomami, Piratapuia, Wanano, Hupda. Também integram três comunicadoras da Rede Wayuri: Cláudia Ferraz, do povo Wanano, Suellen Samanta, do povo Baré, e Deise Alencar, do povo Tukano. A cobertura pode ser acompanhada no Instagram da Rede Wayuri.
Entre as lideranças estão Dadá Baniwa, coordenadora regional da Funai no rio Negro e ex-coordenadora do DMIRN, Elizângela Baré, ex-coordenadora do DMIRN e comunicadora da Agência Sumaúma, e Francy Baniwa, ex-coordenadora do DMIRN, antropóloga e escritora.
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Caravana de mulheres do rio Negro vai à Brasília comemorar os 20 anos do DMIRN durante a III Marcha das Mulheres Indígenas|Ana Amélia Hamdan/ISA
A Coordenadora do DMIRN, Cleocimara Reis, do povo Piratapuia, fala da valorização da história do departamento.
“Essas mulheres foram nossas inspiradoras. Não foi fácil criar o DMIRN, foi com muita luta e discussão. É uma história que precisamos guardar para outras mulheres que virão”.
O filme conta, por meio de depoimentos das mulheres indígenas, a luta por espaço, território, renda e sustentabilidade, desde as roças até as universidades, da casa-território aos cargos públicos.
“Me deram uma salinha bem pequenininha. Mal cabiam a mim, uma mesa e uma cadeira. O que eu vou fazer só com essa mesa e a cadeira?”, relembra Cecília Albuquerque, do povo Piratapuia, primeira coordenadora do DMIRN.
Hoje, o DMIRN tem uma coordenadora, Cleocimara Reis, povo Piratapuia, e cinco articuladoras regionais que possibilitam o diálogo constante com o território indígena do rio Negro, onde vivem povos de 23 etnias em aproximadamente 750 sítios e comunidades nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos (AM).
O departamento tem como pautas prioritárias equidade de gênero, apoio às associações de mulheres indígenas, geração de renda e sustentabilidade, fortalecimento de conhecimentos, medicina indígena e sistema agrícola tradicional, além do enfrentamento aos impactos da emergência climática e os direitos das mulheres.
Produzido em parceria pelo Instituto Socioambiental (ISA), DMIRN e FOIRN, o documentário “Rionegrinas” tem direção e roteiro da documentarista Fernanda Ligabue e da articuladora de políticas socioambientais do ISA, Juliana Radler, com colaboração de Dadá Baniwa, Carla Dias, Dulce Morais e Ana Amélia Hamdan. Confira o trailer:
Também em comemoração aos 20 anos do DMIRN estão sendo lançados o livro “As mães do DMIRN – Conquistas e Desafios” e o site do Departamento de Mulheres Indígenas, instrumento de comunicação e fortalecimento do departamento.
Sistema permite emitir alertas de ameaças pelo celular em língua indígena|Evilene Paixão/ Hutukara Yanomami
A Hutukara Associação Yanomami (HAY) implementou no início deste mês uma nova ferramenta de sistema de alertas na Terra Indígena Yanomami (TIY). As próprias comunidades podem alimentar, por meio do aplicativo ODK Collect para celulares, um sistema de alertas com informações sobre riscos sanitários, ambientais e ao território.
Por meio de um formulário, indígenas devidamente capacitados podem anexar fotos, vídeos, áudios, pontos de localização com coordenadas geográficas e relatos. Os envios podem ser feitos offline e incluídos no dispositivo quando tiver conexão.
A fim de garantir o acesso a todos os povos do território, a ferramenta disponibiliza as opções de idioma em yanomami, ye'kwana, sanoma e português.
O presidente da HAY, o xamã e liderança Yanomami Davi Kopenawa, acredita que a ferramenta é importante para que as pessoas da cidade entendam a realidade vivida pelo povo Yanomami. Para ele, o sistema pode facilitar o entendimento das autoridades sobre as necessidades dos indígenas que vivem no território.
“Eu sempre digo que hoje já é o futuro. Eu acho importante a gente conseguir sonhar e pensar com outros amigos que estão apoiando, trabalhando e lutando juntos. Quem está na cidade escuta, mas não sente o que os Yanomami precisam, por isso é muito bom ter esse sistema de alertas para nosso monitoramento”, disse Kopenawa.
O funcionamento é simples: uma vez que o sistema recebe a denúncia, operadores do sistema qualificam as informações para validar os relatos, que em seguida ficarão expostos em um painel virtual e público para que autoridades, instituições parceiras e a imprensa possam ter ciência de qualquer anormalidade que ameace o território.
Para o uso da ferramenta, o geógrafo e pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) Estêvão Senra e a advogada do ISA Daniela Nakano ministraram uma oficina de quatro dias na comunidade de WatorikƗ, na região do Demini. Eles apresentaram o sistema para 10 indígenas da região que integram os grupos de agentes indígenas de saúde e saneamento, comunicadores e pesquisadores.
“A recepção foi bastante positiva. Eles entenderam imediatamente a importância da ferramenta para dar mais peso às demandas das comunidades por políticas públicas mais eficientes”, disse Senra sobre o período de cinco dias, de 11 a 15 de agosto, da oficina.
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Treinamento para uso do novo sistema na Terra Indígena Yanomami|Evilene Paixão/ Hutukara Yanomami
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Oficina na comunidade de WatorikƗ durou quatro dias e contou com 10 indígenas da região|Evilene Paixão/ Hutukara Yanomami
Uma central de comunicação foi instalada no Demini durante a oficina. A ideia é que os Yanomami treinados operem esta base, que deve receber as denúncias de todas as partes da Terra Indígena Yanomami. Todo o projeto é feito pela HAY com apoio do Fundo das Nações Unidas Para Infância (Unicef) e ISA.
“Às vezes um alerta chega incompleto ou com informações que precisam ser verificadas. A central de comunicação tem por objetivo qualificar os alertas que estão nessa situação. Os responsáveis pela Central devem entrar em contato com as comunidades de origem do alerta para fazer essa checagem ou colher mais elementos que podem enriquecê-la. Os responsáveis pela central também ajudam na tradução dos relatos que na maioria dos casos chegam somente nas línguas indígenas”, explica Senra.
Para garantir que todas as regiões tenham pessoas capacitadas para repassar as informações, outras oficinas devem ser realizadas com o apoio de parceiros. A próxima ocorrerá em setembro na região da Missão Catrimani.
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1ª Oficina do Sistema de Alerta Wãnori, na comunidade Watoriki, região Demini, em agosto de 2023|Evilene Paixão/ Hutukara Yanomami
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A força delicada de um sábio da floresta
No último dia 29 de julho, o grande líder do povo Hupd’äh, Américo Salustiano Socot, fez sua última viagem pelas águas do Alto Rio Negro
Américo Socot em trabalho sobre os aturás Hupd'ah em Boca do Traíra, rio Japu|Juliana Radler/ISA
Todos nós que tivemos a chance de trabalhar, dialogar e adentrar em caminhadas na floresta no Alto Rio Negro ao lado de Américo Socot saímos transformados. Seja pelo seu silêncio, pelo seu olhar sorridente ou pelas suas palavras de poliglota, como um falante diário de três línguas: a sua materna, Hup, Tukano e Português. Esse universo multilinguístico representava bem o que era a vida e o trabalho diário do Américo.
É difícil pensar que agora temos que seguir os trabalhos sem ele, sem sua tradução e interpretação de mundos. No último dia 29 de julho, Américo sofreu um acidente de voadeira nas águas do Rio Negro quando ia para seu sítio na comunidade do Cabari, próxima da cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Foram muitos dias de buscas, sem que Américo fosse encontrado na imensidão de água e floresta do Alto Rio Negro.
A última busca foi feita no dia 22 de agosto após sonhos de seus filhos apontarem que o corpo do Américo pudesse estar em alguma ilha na região da foz do rio Curicuriari. Mas, infelizmente, não o encontramos. Hoje completa-se 33 dias da sua derradeira viagem e sua família realiza uma cerimônia simbólica pela passagem do Américo, no cemitério de São Gabriel da Cachoeira, com a presença de parentes, amigos e do Bispo Dom Edson. Para homenageá-lo e manter viva sua memória publicamos esse texto, que conta com depoimentos de amigas e amigos indigenistas que trabalharam próximos a Américo nos últimos anos.
Suavidade Invencível
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Américo Socot em 2001, na sua comunidade de origem, Taracuá Igarapé|Pattie Epps/acervo pessoal
Américo nasceu na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, no dia 4 de maio de 1972. A demarcação e homologação da TI só veio mais de 20 anos depois do seu nascimento, em 1998. O líder acompanhou muitas transformações na região e viu seu povo, que que é a quarta maior população entre as etnias do Rio Negro, com aproximadamente 3 mil pessoas, passar por dificuldades no contato com a cidade e com a sociedade não- indígena.
Conheci Américo em 2017 neste contexto, andando pelas ruas de São Gabriel da Cachoeira como guia para seus parentes em peregrinações para acessar direitos, como retirada de documentos e acesso a benefícios sociais. Às vezes sentindo fome e sede na cidade, Américo mantinha esse trabalho de apoio aos Hupd’äh com força e serenidade. Com isso ele construiu uma rede de apoio que foi se fortalecendo nos últimos anos com a criação do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd’äh, Dâw e Nadëb).
Depois passamos a trabalhar mais próximos na época da elaboração do PGTA – Plano de Gestão Territorial e Ambiental - quando ele gravou um depoimento marcante na sua língua traduzindo o que seria, na visão Hupd’äh, um território protegido e saudável. Nessa ocasião, ele me apresentou seu filho, Álvaro Socot, e sugeriu que o jovem entrasse na rede de comunicadores Wayuri, onde está até hoje como comunicador.
Confira o depoimento:
Preocupado em se relacionar e se comunicar bem com as pessoas, Américo desejava que seu filho estudasse, aprendesse técnicas narrativas do audiovisual e pudesse também contribuir para a luta coletiva do seu povo. Além do Álvaro, Américo tem outros oito filhos: Jacinta, Marinela, Carmem, Simonia, Adalivia, Marivaldo, Greuza e Tadeu. Todos aprenderam com esse “pai herói” a dar valor ao diálogo e viver entre mundos. Casado com Isabel Sales Brasil, Américo já era avô do seu primeiro neto, chamado Talison, carinhosamente apelidado de “doutor”.
Sempre com leveza, Américo nos ensinou que a suavidade é invencível e nos deixa a missão coletiva de continuar “levando para a frente”, como ele mesmo gostava de falar, os trabalhos com o seu povo Hupd’äh. Aqui seguem homenagens enviadas por amigas e amigos que trabalharam ao lado do Américo Socot pelos direitos indígenas:
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Adelina de Assis Veloso Desana Liderança indígena e funcionária da Funai em São Gabriel da Cachoeira *Depoimento enviado por áudio e transcrito
“Foi muito difícil a partida do Américo Socot para todos nós que trabalhamos com ele. O Américo foi um grande líder no Rio Negro, um grande líder do povo Hupd’äh e do povo Yuhupdeh. Ele tinha um olhar muito cativante, tinha brilho e uma voz que todos ouviam. O que o Américo significou para toda a sociedade, não só para o seu povo, mas para todos que passaram a trabalhar com ele? Ele significou uma grande pessoa, pacificador, um cacique sempre na linha de frente da luta pelo seu povo.
Américo lutava pelo direito à cidadania, pela emissão de documentos e por benefícios sociais. Ele fazia essa ponte de tradução para o seu povo. Ele apoiava seu povo em idas ao banco, em lotérica e nas instituições. Ele significou muito para todos nós que estávamos ao redor dele. Sempre com educação e com gentileza ele pedia uma ajuda. E isso cativava a gente. O modo dele falar, o modo dele sorrir, o modo dele fazer piadas. 2023 foi um ano que eu estava muito próxima dele. Sempre senti no Américo uma força e uma energia positiva.
Para mim foi uma perda muito grande e que na minha alma agora eu sinto que falta alguma coisa na luta desses povos de recente contato. Isso porque o Américo não está mais com a gente para levar as informações ao seu povo, para fazer a tradução e falar o português de um modo que eles entendem. Américo foi um cacique diferenciado e que hoje sentimos muito pela perda dele. É uma saudade enorme que estará sempre na minha memória.
Vou sempre levar o que aprendi com Américo, de ser uma pessoa calma, de buscar ouvir e de saber responder na hora do nosso momento de falar. De sempre estar atento a tudo ao nosso redor durante uma reunião ou debate, sempre estar presente buscando entender e resolver as necessidades, não importa a necessidade que for. Eu aprendi ao lado do Américo sobre como falar das nossas necessidades e garantir os nossos direitos. De garantir uma ajuda, seja ela particular ou coletiva. Mas, ele sabia refletir sobre as dificuldades do povo dele e falar sobre elas para as pessoas. Foi isso que aprendi convivendo com Américo.”
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Bruno Marques Antropólogo (Museu Paraense Emílio Goeldi) e membro do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd'äh, Dâw e Nadëb)
"Serenidade, força, humor e uma extrema inteligência. Américo Socot era meu amigo, mas começo esta memória falando da importância dele como liderança Hupd’äh.
Conheci Américo quando ele já morava nas proximidades de São Gabriel da Cachoeira, em algum momento entre 2013 e o começo de 2014. Neste tempo, começaram os deslocamentos massivos de famílias Hupd’äh, no período das férias escolares, para a cidade em busca de documentação e acesso a benefícios governamentais. Ficavam acampados em Parauari, próximo ao porto Queiroz Galvão, e sofriam toda a sorte de problemas acarretados pela precariedade das instalações na cidade, pela dificuldade das instituições locais em acolher as famílias, pela exploração dos comerciantes e das instituições bancárias. Américo se destacou no apoio às instituições locais e aos seus parentes Hupd’äh neste processo, colocando-se como uma forte voz de denúncia do que estava ocorrendo. Além do mais, esse processo transformou a visibilidade do povo no contexto político local e mesmo além.
Os Hupd’äh passaram a se colocar diante das instituições locais de forma mais direta, pautando demandas em diferentes áreas, como saúde, educação e direitos sociais, buscando se inserir em agendas locais e nacionais – como, por exemplo, o Acampamento Terra Livre 2023, em que Américo esteve presente. Américo Socot foi a liderança Hupd’äh de maior destaque nesse processo político que se estendeu pelos últimos 10 anos. Há, entretanto, outras lideranças do povo que também colocaram seus esforços, muitas das quais também já não estão mais entre nós – e muitas dessas tendo falecido de modo semelhante ao que ocorreu com Américo. Não cabe listar nomes, mas gostaria que essa memória pessoal que faço de Américo fosse também, de certa forma, uma homenagem a outros amigos Hupd’äh que faleceram nos últimos anos.
Américo, eu e outros colegas participantes do que viemos a chamar de CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd’äh, Dâw e Nadëb) nos aproximamos nesse contexto. Em 2015, seguimos para outras empreitadas, sobretudo o trabalho de elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Alto Rio Negro (FOIRN, FUNAI e ISA). Trabalhamos intensamente por anos, e Américo deu o tom e o método de trabalho com seus parentes no processo de consulta e elaboração conjunta, além de se destacar como liderança nas assembleias gerais do movimento indígena.
Américo colocava suas críticas a todos os atores e instituições que trabalham na região, mas sempre em um horizonte agregador. Ele soube, com paciência, dedicação e muita inteligência, lentamente fazer alianças, abrindo os espaços possíveis em um terreno nem sempre fértil, para dizer o mínimo. Américo, em sua serenidade, era profundamente altivo, que ninguém se engane, e que todos respeitem. “Respeito” era uma palavra, uma ideia, uma necessidade constantemente reforçadas por ele em suas falas.
Sempre que Américo Socot pegava o microfone em eventos públicos, falava, dentre outros assuntos e pautas específicos, de basicamente duas coisas: denunciava o que os parentes Hupd’äh estavam vivendo nas descidas para a cidade de São Gabriel da Cachoeira e falava dos conhecimentos da terra, dos caminhos, dos benzimentos na relação com a floresta. A força dos conhecimentos dos Hupd’äh na relação com a terra era sempre seu solo discursivo. Américo nos ensinou uma filosofia que relacionava s’ah sap (“terra cortada”, Terra Demarcada) e s’ah bi’id ta’ (“terra cercada com benzimento”). Política e xamanismo seguiam juntos nos conhecimentos e na vida.
Um tradutor cultural, como se costuma dizer. Uma coisa é traduzir palavras, outra é traduzir conceitos, ideias, mundos. E, nisso, ele era genial. Lembro de sentarmos por horas conversando sobre leis específicas, projetos etc. e Américo sempre me deixando impressionado com as construções que criava em língua Hup para traduzir aos seus parentes. Com ele, certamente aprendi sobre a língua Hup, mas talvez, em meio a isso, tenha aprendido algo mais profundo, que é a percepção do que jamais conseguiria aprender, o que está além, o que define o limite de ser um não-Hup.
Nesses dias em que procurávamos o corpo de Américo no Rio Negro, o que mais me lembrei foi da risada calma, a ironia sutil e as palavras inspiradas. Ele caminhava devagar, mas estava sempre andando... entre parentes, instituições, afins… era, em si, uma rede. Eu, um aliado, ele um líder, e, em algum momento desta última década, nos tornamos amigos, ou “amigão” como ele costumava me chamar. Nos ensinou muito, e cabe a nós que tivemos a sorte de conviver e aprender com essa pessoa gigantesca seguir seus passos na medida dos nossos limites.
Nesse momento de luto, é de um amigo – um “amigão” – que me despeço com a serenidade que tanto admirava nele. Guardo a memória alegre de uma viagem recente que fizemos no igarapé Japu. Era um dia de caxiri em Boca do Traíra, nos sentamos em um fim de tarde tranquilo para comer ipadu com parentes dessa comunidade. Américo tocava cabeça de veado, um instrumento de sopro que o haviam presenteado pouco antes. Ríamos e conversávamos. Gosto de pensar que, em algum lugar, esse momento permanecerá.
Kä’ tomou o rumo de seus ancestrais.
Amán ã́h hipãh tëg! Naw ham, nɨh báb’!"
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Danilo Paiva Antropólogo, professor universitário e membro do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd'äh, Dâw e Nadëb) *Depoimento enviado por áudio e transcrito
"Américo Socot foi um grande amigo, um grande homem, um grande professor. Conheci Américo em 2007. Ele foi a primeira pessoa Hupd’äh que eu conheci. Ele e o pai dele, Henrique Brasil. É uma dor imensa a morte dele. Eu convivi durante muitos anos com ele. Morei na casa do Américo e da Isabel, vi os filhos deles crescerem. Conheci as terras da família, do clã, a serra da Cutivaia, de onde ele veio com o pai, quando era criança ainda, para morar em Taracuá Igarapé. Esse era o território onde eles sempre iam abrir roças, pescar e caçar.
É difícil agora pensar em rumos da luta por direitos do povo Hupd’äh sem ele. Américo foi a grande liderança do povo Hupd’äh e o primeiro conselheiro distrital de saúde dos Hupd’äh. O primeiro a ocupar uma cadeira no Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena) representando os Hupd’äh e Yuhupdeh. O Américo também foi representante dos Hupd’äh na Funai. Ele foi um dos assessores para a elaboração dos planos de gestão territorial e ambiental dos Hupd’äh. O Américo foi um grande homem. Uma pessoa com uma capacidade imensa de trabalho, de diálogo com pessoas de outras etnias, pessoas Tukano, Desano, etc. E também no diálogo com pessoas não indígenas.
Tive o prazer de acompanhar o Américo na primeira viagem dele a Brasília, onde também estavam Domingos Barreto (Tukano), André Baniwa e o antropólogo Henrique Junio Felipe. Falamos com a Funai sobre os primeiros problemas que o povo Hupd’äh vinha passando já por conta das idas de centenas de pessoas todos os anos para a cidade de São Gabriel em busca de benefícios sociais, de documentos e também por conta das situações de epidemia. Epidemias de desnutrição, de suicídio, de malária, de gripe e de coqueluche.
Foram muitos anos de luta em que pude acompanhá-lo. Américo também foi um dos fundadores do Coletivo de Apoio aos Povos Hupd’äh, Yuhupdeh, Dâw e Nadëb. E ele era, enfim, uma grande luz que iluminava todo o nosso trabalho, de muitos de nós indigenistas e lideranças indígenas. E é por isso que essa homenagem é tão importante. Pude fazer várias viagens junto com Américo, várias caminhadas. Tive o prazer de apresentar minha filha pra ele, a Rosa, na nossa última viagem, e de vê-los brincando com bolinha de gude. Imagens muito bonitas. Ele era uma pessoa muito sensível, muito doce, muito acolhedora. Sempre pronto para ensinar as primeiras palavras na língua Hup para todos nós e de ensinar os sentidos do mundo Hup. E sempre pronto para engajar a gente nessa luta, na luta que ele animava e protagonizava. Então, com muita emoção e muita tristeza, deixo essa mensagem para homenagear meu grande amigo que se foi."
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Denivaldo Cruz da Silva Coordenador Técnico Local (CTL) - Funai Alto Rio Negro
Falar do Américo Socot é falar da luta do povo Hupd’äh, sem demagogia. Entrei na Funai em 2015 e nesse mesmo ano conheci o Américo. Primeiramente, nas triagens no beiradão do Parawari, onde ficavam os Hupd’äh que se deslocavam das comunidades distantes para a cidade em busca de acesso aos documentos básicos e benefícios sociais. Me lembro exatamente o ano que ele ainda ficou diretamente na Funai como colaborador e então pude conhecê-lo melhor como pessoa e como liderança.
Participamos de várias reuniões juntos e ele sempre falava 'pelos meus parentes', com a fala mansa, no seu tempo, cada palavra dita com sabedoria, com experiência adquirida ao longo dos anos convivendo com outras etnias, e, principalmente como alguém que sofreu na pele a discriminação. Aprendi muito com meu amigo ouvindo suas palavras nas reuniões, nas realizações dos PGTAs e nas caminhadas. Uma característica específica e muito importante que tento colocar em prática: ter paciência e ouvir. Para fazer uma atividade com o povo Hupd’äh tem que ser 'no tempo deles', coisa que muitas vezes nós das instituições no ativismo do dia a dia acabamos atropelando.
A última viagem realizada com Américo e Danilo Paiva para a realização da oficina de audiovisual com jovens Hupd’äh, acabamos dividindo a equipe e nos encontramos em Barreira Alta. Ele estava feliz, pois via os jovens interessados, alegres querendo aprender coisas novas. É importante eles 'aprenderem a como divulgar nossas coisas', dizia ele. Ele me contou também que um velho pajé Hupd’äh tinha lhe repassado conhecimento até contra o suicídio.
Enfim, para falar do Américo seria um livro, com essas palavras encerro meu depoimento. Se foi meu amigo Américo, levando seus conhecimentos e seus sonhos. Só nos resta continuar a luta para que o povo Hupd’äh tenha em seu futuro um bem-viver em suas comunidades como era o sonho do Américo. Vá com Deus meu amigo!
OBS: Estamos agora em uma atividade de mutirão de documentação na região do rio Papuri para o povo Hupd’äh e como Américo nos faz falta!”
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Pattie Epps Linguista norte-americana
"Sempre lembro da primeira vez que cheguei no Rio Tiquié, em julho de 2000, quando conheci o Américo. Tinha chegado no Brasil só duas semanas atrás e quase nem falava Português. Chegamos na beira do Rio Tiquié, depois de três dias de viagem debaixo da chuva, e lá era o Américo, pescando na beira perto do caminho para Taracuá Igarapé.
Lembro muito bem essas primeiras semanas que passei em Taracuá Igarapé, como ele me acolheu como capitão da comunidade, como a gente era quase da mesma idade, como conversamos num português que para nós dois ainda era bastante limitado naquela época, que logo passou para conversas na língua Hup, depois dos meses e dos anos. Lembro como ele me apresentou naquela primeira visita ao pai dele, o Seu Henrique, que chegou a ser uma pessoa de referência muito importante para mim, e a Isabel, que sempre me acolheu com muito carinho, e os filhos deles, que eram tão pequenos quando cheguei lá pela primeira vez, e que agora são adultos.
Através dos anos, o Américo sempre estava lá quando cheguei na região, ou no Rio Tiquié ou em São Gabriel; sempre passamos momentos lindos de conversa, de trocar conhecimentos, e nesses últimos anos, de lembrarmos juntos do querido pai dele. Conversamos sobre os conhecimentos incríveis dos Hupd’äh, os benzimentos, o território entre os Rios Tiquié e Japu, a floresta linda. Sempre fiquei impressionada com as contribuições dele ao povo Hup, com o caminho importante que ele desenvolveu em representar os Hupd’äh em São Gabriel e até no Brasil. E sempre contava em ver ele de novo. Americoan hipãhãy bɨg, hot ɨdɨy bɨg, ãh bab’."
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Rafael Moreira Doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional, membro do Laboratório de Antropologia da Arte, Memória e Ritual (LARME/UFRJ/IFCS) e do CAPYHDN (Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh, Hupd'äh, Dâw e Nadëb)
"Náw yùh.
Se fosse o caso de pensar numa palavra equivalente a dizer adeus na língua hup, idioma falado pelos Hupd´äh do Alto Rio Negro, confesso que passaria vários dias sem encontrar uma resposta precisa. Sabe, aquele adeus, de quem espera nunca mais ver um ente querido! Pois bem, não tenho forças e nem vontade de me expressar assim sobre Américo Socot, indígena nascido na comunidade de Taracuá Igarapé, falecido no final do mês de julho na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Para ele, meu velho amigo, prefiro simplesmente dizer nàw yúh, expressão que os Hupd´äh utilizam quando querem agradecer alguém, dizer muito obrigado.
Conheci Américo, por volta de 2014, ainda durante o meu mestrado. Nesta ocasião, ele sempre andava de um lado para o outro buscando ajudar seus parentes que viajavam até a cidade, querendo aposentadoria, salário maternidade, bolsa família ou só passear. Muitos morreram na cidade, sem abrigo e atendimento das instituições, passando fome e sendo humilhados. Apesar do esforço do Américo para dialogar com o governo municipal e federal, em busca de melhoria para seu povo, ele perdeu vários irmãos em condições trágicas, antes dele vir a falecer nas perigosas cachoeiras do Rio Negro.
Num dos últimos registros que recebi do Américo, escuto ele pedindo para sua filha, Carmem, gravar sua voz no celular: 'Rafael, boa tarde! Ni am? Amán mensagem nó´ tëg!'. Falando um pouco de língua hup e português, eu entendi que ele dizia algo assim: 'Rafael, boa tarde! Tudo bem? Tenho mensagem para você!'. Infelizmente, as notícias não eram tão boas. Um parente dele tinha acabado de falecer. E ele estava com outros parentes acampados em sua casa, num pequeno sítio à margem do Rio Negro, que esperavam receber benefícios sociais. Faltava comida e, por isso, ele me dizia: 'Inìh amigo, àm! Amàn ajuda tukúy àn!', 'Você é nosso amigo, quero sua ajuda!' Fiz o que pude para ampará-lo, uma vez que em outras ocasiões ele fez de tudo para me acudir.
Lembro que, durante o meu trabalho de campo de doutorado, eu fui saber, no mês de abril de 2018, que o barco do “senhor Noventa” viajaria desde São Gabriel da Cachoeira até Iauaretê. Neste povoado multiétnico na fronteira da Colômbia, logo embarcariam mercadorias e comerciantes. Eu resolvi então conversar com Nenê, dono da embarcação que sairia de São Gabriel da Cachoeira, a fim de garantir uma passagem. Eu era o único antropólogo e esperava chegar em Iauaretê e depois prosseguir para um pequeno afluente, o igarapé Cabari, que é o local onde nasceu Isabel Salustiano, esposa do Américo.
No dia da viagem, acordei de madrugada. Pedi uma lotação na rua e estava tudo escuro. Enquanto descia com minha bagagem, um carro em alta velocidade tirou tinta do veículo e um passageiro cambaleante, vindo de alguma festa, logo saiu. Chovia um pouco e eu entrei na lotação. Cheguei ao barco do Nenê um pouco antes do amanhecer. Amarrei, então, minha rede para dormir. 'Saímos daqui meia hora', ele avisou. Baixei minha adrenalina, fiquei tranquilo e cochilei.
Tendo passado poucos minutos, o barco começou a afundar em função do peso da carga e danos na balsa. Os passageiros, entre eles, mulheres grávidas, crianças e velhos, desamarravam suas redes e corriam para terra firme, perto da margem do rio. Na proa, Nenê desamarrava a balsa com pressa. No entanto, fiquei aguardando no barco, imaginando que em último caso pularia na água e tentaria nadar. Decisão pouco prudente, certamente, uma vez que muitas pessoas morrem afogadas nas cachoeiras e redemoinhos que se formam no Rio Negro.
Felizmente, o barco não afundou e logo algumas canoas começaram a rodeá-lo. Uma delas vinha com Américo Socot, remando. Este indígena vivia justamente numa comunidade na beira do rio, onde os passageiros buscaram abrigo. Ainda sem acreditar naquela situação, escutei Américo me chamando. Eu entrei na sua canoa e ele me contou que estavam circulando notícias sobre o acidente e as mercadorias flutuando na água.
'Perdeu tudo, Rafael!', sorriu Álvaro Socot, um filho do Américo. Ao escutá-lo, não pude fazer nada senão sorrir copiosamente com ele e assistir aos tonéis com gasolina e caixas de isopor com fardos de frango congelado dos comerciantes descendo rio abaixo. Estes perseguiam, numa lancha, outros indígenas que cruzavam o rio. Estes fugiam em embarcações variadas, carregando tudo que boiava no caminho. 'Castigo de Deus, domingo não pode trabalhar', sumarizou Américo, lembrando o dia do ocorrido.
Tendo passado essa cena de filme ou de uma típica crônica do Pozzobon, as coisas se acalmaram. Américo, então, me convidou para pernoitar na sua casa e aguardar a chegada de uma nova embarcação, que levaria posteriormente os náufragos até Iauaretê. Peguei minha mochila e fui descansar. Mais tarde, retornei até a beira do rio para conversar sobre o barco com Nenê e saber sobre os meus pertences. Perdi ali alguma coisa, como um tonel com gasolina, mas tive certeza desde então que tinha conquistado um nobre amigo na minha vida. Por isso, com imenso carinho, nàw yúh Américo!"
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Coordenador do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) em debates sobre gestão territorial e ambiental dos povos do Rio Negro|Juliana Radler/ISA
OBS: As buscas por Américo Socot no Rio Negro contaram com uma rede de apoiadores e instituições que trabalhavam com Américo, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Funai, a Foirn e o DSEI-ARN. A todas as pessoas amigas que se envolveram nas buscas e ao apoio à família, gratidão pela generosidade e empenho voluntário nesta missão. Um homem generoso que dedicou grande parte do seu tempo de vida ao bem comum e a ajudar as pessoas do seu povo, recebe de nós que vimos sua luta e caminhamos com ele, nosso profundo sentimento de admiração e respeito pela sua força e coragem.
Américo Socot em sua última viagem de trabalho feita para o rio Tiquié|Álvaro Socot/Rede Wayuri
Américo Socot em Brasília durante mobilização nacional indígena (ATL)|Dulce Morais/ISA
Liderança do Rio Negro dialogando pelo bem comum e pelos direitos indígenas, em Iauaretê, Vila Fátima|Juliana Radler/ISA
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Morzaniel Ɨramari, primeiro cineasta Yanomami e diretor do filme, disse que vai levar à Itália a luta dos Yanomami contra o garimpo ilegal e o Marco Temporal
Cineasta Morzaniel Ɨramari Yanomami durante conferência Rio+20|Cláudio Tavares/ISA
A força do cinema Yanomami vai ser destaque no 80º Festival de Veneza, na Itália, que acontece de 30 de agosto a 9 de setembro.
A mostra paralela Giornate degli Autori vai dedicar o dia 4 de setembro ao primeiro cineasta Yanomami, Morzaniel Ɨramari, e a produções recentes do cinema Yanomami.
Este ano, a parceria da mostra com a associação cultural Isola Edipo e a Fundação Cartier, celebram o Cinema Yanomami com o título "Eyes of the forest" e apresentando três curtas: Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando, Yuri u xëatima thë – A Pesca com Timbó e Mãri Hi - A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari.
Morzaniel anunciou que pretende usar a oportunidade para fazer um apelo ao público internacional para a luta por direitos dos Yanomami.
“Também vou falar da luta que temos hoje contra os invasores e o Marco Temporal. Falarei sobre as necessidades de saúde e educação do meu povo, mas também falarei de coisas boas, como o fato de ainda existir a nossa cultura tradicional. Vou falar sobre tudo isso contando a história da árvore dos sonhos e como nossos xamãs sonham”, disse ao ISA.
O cineasta yanomami ganhou os prêmios de Melhor Fotografia e Prêmio do Júri no Festival de Gramado neste ano. Além disso, o filme de Morzaniel venceu o Festival É Tudo Verdade 2023 na categoria Melhor Documentário de Curta-Metragem Nacional, e está qualificado para concorrer ao Oscar na categoria Melhor Documentário em Curta-Metragem.
A obra tem a participação do xamã e liderança Yanomami Davi Kopenawa, que fala sobre o conhecimento do seu povo sobre os sonhos.
Aida Harika, Roseane Yariana e Edmar Tokorino são os responsáveis pelos outros dois filmes. Além de estarem entre suas primeiras produções, também são os primeiros filmes com mulheres Yanomami na produção e que farão sua estreia em um Festival de Cinema Internacional.
Todas as três produções foram feitas no Watorikɨ, na região do Demini. Eles foram produzidos pela Aruac Filmes durante as filmagens de A Queda do Céu, livremente inspirado no livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert. A direção do longa, que está em fase de finalização, é assinada por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.
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Aida Harika Yanomami e o xamã Edmar Tokorino Yanomami, trabalhando nas edições do filme Uma Mulher Pensando|Aruac Filmes
Oficinas e prêmios
Em 2022, a Aruac organizou junto à Hutukara Associação Yanomami e ao Instituto Socioambiental (ISA) uma oficina de montagem audiovisual que ensejou a produção dos três curtas que estarão no Festival de Veneza.
“O objetivo da iniciativa deste ano é destacar a visão direta e íntima de cineastas da comunidade Yanomami, uma das populações indígenas mais conhecidas da Amazônia e sua crescente importância no cenário cinematográfico internacional. Um ato político devolvendo à floresta seus olhos, corpos e vozes para conscientizar sobre a situação Yanomami atual e a necessidade urgente de proteger seu território e seu modo de vida”, afirma a Aruac Filmes.
Os filmes são uma produção da Aruac Filmes com coprodução da Hutukara Associação Yanomami e produção associada da Gata Maior Filmes.
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Relatório faz balanço do primeiro semestre da Emergência Yanomami
Associações Yanomami e Ye’kwana apontam urgência por melhor coordenação do governo federal e mais ações em saúde e proteção territorial
Resgate de criança na Terra Indígena Yanomami após governo decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, em janeiro|Antonio Alvarado
“Nós, lideranças do Papiú, gostaríamos de denunciar o retorno de garimpeiros em nossa região. Apesar das autoridades e do presidente Lula já terem limpado a floresta, os garimpeiros continuam voltando, por isso mandamos essas palavras. Apesar de existir a demarcação, eles estão voltando pelos rios. Nós queremos que vocês, de fato, retirem estes invasores”.
Seis meses após o governo federal decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami, a devastação da floresta começa a desacelerar, mas os Yanomami e Ye’kwana seguem sofrendo com os efeitos do garimpo ilegal em seu território, conforme o alerta acima, de indígena do Papiú, incluído no relatório Nós ainda estamos sofrendo: um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami.
Lançado nesta quarta-feira (02/08) por três organizações indígenas — Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME) e Urihi Associação Yanomami —, o documento usa dados e relatos dos indígenas para fazer um balanço das ações nos últimos seis meses, ressaltando o que vem dando certo e também expondo falhas nas ações, como a ausência de uma coordenação do governo federal e problemas nas áreas de saúde, proteção territorial, desintrusão e segurança alimentar.
Ao final, o relatório propõe um caminho de diálogo com as comunidades e associações e conclui com uma série de propostas para fortalecer a proteção territorial e aprimorar os planos de recuperação sanitária das regiões mais afetadas. O relatório contou com o apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA) e pode ser acessado na íntegra no link.
Durante a gestão de Jair Bolsonaro, o desmatamento na maior Terra Indígena do Brasil quase sextuplicou. De acordo com os dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal, promovido pela Hutukara, de outubro de 2018 até dezembro de 2022 a área impactada pela atividade ilegal cresceu mais de 300%, conforme noticiado. A devastação do garimpo ilegal chegou a 5053,82 hectares, o que atingiu 60% da população do território.
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Dados de desmatamento de outubro de 2018 a dezembro de 2022|Hutukara
As ações do novo governo fizeram o garimpo ilegal na Terra Yanomami desacelerar, embora a devastação continue crescendo. No primeiro semestre deste ano, a área afetada pela atividade ilegal aumentou 219 hectares, o que representa 4% de incremento ao total acumulado em dezembro de 2022.
“Com efeito, o que se observou na maioria das regiões foi a estabilização de grande parte das cicatrizes, com sinais de alterações recentes bastantes pontuais. Em nenhuma das regiões o incremento observado superou a ordem de 50 hectares, sendo os maiores aumentos absolutos verificados nas regiões de Kayanau, Waikás, Alto Mucajaí e Auaris, respectivamente”, explica trecho do relatório da Hutukara.
Embora o governo tenha comemorado ,em junho, o fim de alertas de garimpos na Terra Yanomami — após o monitoramento da Polícia Federal ficar 30 dias sem novos alertas — isso não significou o fim da exploração ilegal.
As chuvas que iniciam em abril e têm pico em junho, por exemplo, dificultam o sensoriamento remoto. Além disso, garimpeiros podem estar atuando em áreas que já foram desflorestadas. No mesmo mês da comemoração, a Hutukara recebeu relatos de que garimpeiros estavam se movimentando pelos rios Apiaú e Couto Magalhães.
O relatório avalia que, entre as ações do governo para alcançar a estabilização, as focadas no “estrangulamento logístico” foram as mais eficazes, especialmente as que controlavam e bloqueavam as formas de acesso ao território.
Em 30 de janeiro, o governo federal criou a Zona de Identificação de Defesa Aérea (Zida). No entanto, a medida se sustentou por apenas seis dias, devido à pressão exercida por parlamentares de Roraima que estão associados ao garimpo ilegal.
De 6 de fevereiro a 6 de abril, exatos dois meses, o governo fez a manutenção de três “corredores humanitários” aéreos abertos a fim de levar a uma saída espontânea dos criminosos. O balanço aponta que esta medida reduziu custos das ações de combate, mas também favoreceu os “donos de garimpos” que puderam retirar parte do seu equipamento sem maiores prejuízos. Segundo o relatório, há rumores de que alguns desses “empresários” estejam esperando o enfraquecimento da fiscalização para retornar a operar no território.
O relatório demonstra também como traficantes de pessoas usaram a flexibilização do controle do espaço aéreo, a partir do caso de uma adolescente que foi resgatada de um prostíbulo no rio Couto Magalhães. Pilotos de avião, barqueiros e motoristas que fizeram o transporte dos criminosos foram igualmente favorecidos com a medida, havendo relatos de que garimpeiros chegaram a pagar até R$15 mil pela saída.
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Área total degradada pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami|Hutukara
Mesmo com o total controle do espaço aéreo e fechamento dos “corredores humanitários”, há relatos de que aeronaves estão partindo da Venezuela para garimpos fronteiriços, mas que ainda estão dentro da Terra Indígena Yanomami. Parte dos invasores moveu as bases logísticas para Santa Elena de Uairén e atuam na Bacia do Caura, e na cabeceira do Metacuni, próximo à comunidade Sanöma de Hokomawë.
Bases de proteção
Assim como a estratégia de “estrangulamento logístico”, o relatório da Hutukara aponta que o governo precisa aprimorar as bases de proteção em todo o território. Desde que as ações começaram, as equipes de fiscalização estão concentradas nos rios Uraricoera e Mucajaí. Dessa forma, outros rios importantes que também dão acesso à TIY ficaram vulneráveis, como o Catrimani, o Apiaú e o Uraricaá.
Em novembro do ano passado uma estrada clandestina com aproximadamente 150 km de extensão foi identificada passando pelos rios Apiaú e Catrimani. Com a rota, a logística garimpeira era facilitada pelo meio terrestre. Mas apesar disso, a região não foi ainda alvo de operações.
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Sobrevôo em dezembro de 2022 captou ações de garimpeiros no Rio Catrimani, afetado pelo garimpo na Terra Indígena Yanomami|Valentina Ricardo
Os órgãos que atuam nesta fiscalização foram esvaziados durante a gestão de Bolsonaro, deixando poucos agentes para cobrir toda a área necessária. Além disso, somente em 21 de junho deste ano, quase ao fim dos primeiros seis meses de ação emergencial, o governo designou às Forças Armadas o papel de atuar nas ações preventivas. Antes, o Exército atuava apenas como apoio logístico.
“Caso, o envolvimento das Forças Armadas na execução de ações preventivas e repressivas dentro da TIY tivesse sido planejado desde o início, talvez tivesse sido possível ampliar a capacidade das Bapes e inclusive planejar a instalação de novas estruturas em outros pontos estratégicos”, aponta trecho do documento.
Durante o período de transição e início do novo governo, fotos de Yanomami doentes e desnutridos tornaram-se virais nas redes sociais e foram importantes para chamar a atenção do governo federal ao problema e dar início à Espin. No entanto, seis meses após a visita do presidente a Roraima, a Saúde ainda carece de estruturação.
Segundo apurou o relatório, há ainda muitas regiões desassistidas, enquanto em Surucucu há uma concentração de profissionais. Os polos de regiões sensíveis continuam com equipes incompletas ou com tamanho incompatível com a demanda. Há regiões que seguem dependentes de missões de saúde esporádicas, que duram sete dias e não tem prazo para serem repetidas.
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Evolução de casos de malária na Terra Yanomami|Hutukara
Dessa forma, atendimentos que deveriam fazer parte da rotina, como pesagem de crianças, pré-natal, vermifugação e tratamento de malária, se tornam impossíveis para os Yanomami que vivem nas regiões mais remotas.
Os excessivos casos de malária ainda são um problema na Terra Indígena. De janeiro a julho de 2023, houve 12.252 casos, o que representa 80% do total registrado em 2022.
“É impossível em uma aldeia, com cem pessoas com sintoma de malária, uma equipe de duas pessoas em missão fazer qualquer outra coisa que não testar a população e tratar os mais graves”, declarou uma profissional da saúde que pediu para não ser identificada.
A solução atual tem sido remover os pacientes em estado grave para o Centro de Referência em Surucucu, que já no dia da inauguração operava com 90% da capacidade.
Embora tenham sido realizados até julho mais de oito mil atendimentos, os Yanomami se queixam que os profissionais da Força Nacional do SUS raramente se deslocam para realizar ações de saúde nas comunidades.
Por outro lado, os profissionais de saúde ainda vivem com o sentimento de insegurança devido à persistência de invasores garimpeiros no território. “Isso faz com que os os vetores de produção da crise sanitária não sejam combatidos na sua raiz”, aponta o documento.
Considerando experiências bem sucedidas na Saúde, o ideal seria criar um cronograma para realizar as estabilização aos poucos:
Recuperação da infraestrutura logística e de atendimento;
Aumento das equipes de saúde trabalhando no território, com aumento da frequência das visitas nas aldeias
Aprimoramentos no sistema de vigilância epidemiológica, para encurtar o tempo de resposta entre surtos epidêmicos e tratamentos;
Recuperação do papel dos profissionais indígenas como peças-chave nas equipes de saúde.
Distribuição de cestas básicas
Em fevereiro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) elaborou uma nota técnica estimando a necessidade de entregar 12.692 cestas de alimentos por mês para combater a fome e a desnutrição na Terra Indígena Yanomami. Dessa forma, mais de 50 mil cestas básicas seriam entregues durante o primeiro semestre. No entanto, as Forças Armadas, responsáveis pela logística, só conseguiram entregar 50% do previsto.
A fome e a desnutrição não chegam a ser problemas em todo o território Yanomami, mas com a expansão do garimpo ilegal, que afeta os recursos naturais e organização econômica das famílias, somada à desassistência sanitária e ao efeitos dos e os fenômeno climático La Niña, houve um aumento de comunidades sofrendo com estes problemas.
Comunidades mais isoladas ficaram praticamente desassistidas da ajuda humanitária do governo federal. As cestas eram arremessadas no ar e a distribuição ficava concentrada em pistas de pouso com grande capacidade de armazenamento, conforme relatos dos próprios yanomami.
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Pedro e Natanael, indígenas Yanomami, carregam suprimentos no Surucucu, Terra Yanomami (fev/2023)|Fernando Frazão/Agência Brasil
Em Kayanau, por exemplo, onde 83% das crianças da região estavam com baixo peso ou muito baixo peso em 2022, certas comunidades ficaram desassistidas. Já em Auaris, as cestas foram estocadas no pelotão de fronteira e demoraram a ser entregues, o que fez a carne perecer.
“É importante que o atendimento com cestas básicas seja garantido com alguma periodicidade e com um cronograma acordado com as comunidades, considerando que uma cesta dura em média dez dias para uma família Yanomami, e que cultivos de ciclo curto, como o milho, necessitam de pelo menos 90 dias para serem colhidos”, explica o relatório.
Recomendações
Por fim, o relatório recomenda que para seguir com a operação de forma mais assertiva e garantir a estabilização da saúde, sensação de segurança, proteção territorial e segurança alimentar, o governo deveria considerar alguns pontos, dos quais destacamos:
- Aprimoramento dos mecanismos de diálogo do governo com as organizações indígenas;
- Fortalecer a articulação entre as ações setoriais e planejar o desenvolvimento das ações de maneira integrada, através de uma coordenação operacional e intersetorial da emergência Yanomami;
- Desenvolvimento de planos de ação regionalizados para regiões sensíveis que combinem em um único cronograma ações de neutralização do garimpo, apoio emergencial, promoção à saúde, reocupação das UBSIs com apoio de forças de segurança, e desenvolvimento de atividades de recuperação socioeconômica das comunidades;
- Garantir a manutenção do controle do espaço aéreo por tempo indeterminado e reforçar o monitoramento nas zonas de fronteira;
- Intensificação das operações de combate ao garimpo nos núcleos que ainda persistem, com a destruição total do maquinário utilizado na extração de ouro e da cassiterita e aplicação das respectivas sanções administrativas;
- Inutilização de todas as pistas de pouso clandestinas e aeronaves apreendidas no interior da TIY;
- Reforço das bases de Proteção já instaladas (Walopali, Serra da Estrutura e Ajarani), conclusão com urgência da BAPE do Uraricoera, e criação de novas bases nos rios Apiaú, Catrimani e Uraricaá;
- Promoção de patrulhas periódicas nas calhas de rio que dão acesso à TIY, e destruição de equipamentos e estruturas auxiliares à logística garimpeira;
- Apoiar o reassentamento de comunidades afetadas pelo garimpo que manifestam o interesse de mudar-se para um novo local por não ter condições mínimas de permanência, com apoio logístico, ferramentas, infraestrutura para atendimento à saúde e acompanhamento próximo durante sua instalação;
- Priorizar investimentos em infraestrutura para reforma e construção das UBSIs e reforma e manutenção de pistas de pouso;
- Reocupação das UBSIs fechadas com apoio de forças de segurança;
- Redimensionar o quadro de profissionais de saúde atuando no território, buscando fortalecer o número de profissionais nas regiões sensíveis;
- Criação de uma força tarefa especial para o combate à malária em todo o território;
- Estudar mudanças no modelo de contratação de recursos humanos na saúde indígena;
- Promoção de ações específicas de combate à desnutrição infantil com acompanhamento dos pacientes com deficit nutricional e implementação de um plano de combate às causas da desnutrição infantil e reforço das equipes EMSI com nutricionistas;
- Fomentar parcerias e cooperações técnicas com organizações especializadas em saúde que possam subsidiar soluções práticas capazes de responder à crise sanitária na Terra Indígena Yanomami.
“As associações Yanomami estão abertas ao diálogo com o governo sobre esta Emergência. Este assunto foi tratado no IV Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, pois nossos povos querem seguir conversando, seguimos abertos ao diálogo”, disse o diretor da Hutukara, Maurício Ye’kwana.
O IV Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwana ocorreu de 10 a 14 de julho na comunidade de Maturacá, no Amazonas. O evento contou com a participação de 353, sendo mais de 200 lideranças yanomami e dezenas de representantes do governo federal. Durante os cinco dias de reunião, saúde, educação, segurança alimentar e proteção territorial foram os principais temas de uma ampla e democrática escuta do governo.
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Adeus a Braz França Baré, liderança da luta por direitos indígenas no Rio Negro
Ex-diretor da Foirn faleceu em Manaus (AM), aos 76 anos. Veja homenagens a um dos responsáveis pela demarcação das Terras Indígenas do Alto e Médio Rio Negro
Braz de Oliveira França, do povo Baré, durante visita ao ISA em SP|Claudio Tavares/ISA
"Se nossos antepassados nos vissem agora e lhe perguntássemos por que eles há 500 anos viviam livres, certamente responderiam: 'Nós não éramos índios!'" - Braz de Oliveira França, do povo Baré (1946-2023)
Faleceu na quinta-feira (27/07), em Manaus (AM), Braz de Oliveira França, do povo Baré, presidente/fundador da Associação das Comunidades Indígenas do Baixo Rio Negro (ACIBRN), de 1988 a 1990 e presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) entre 1990 e 1996.
Braz também foi coordenador-geral do convênio do DSEI/FOIRN (2002-04) e ocupou o cargo de administrador-adjunto da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), entre 1999 e 2002.
Braz foi um dos responsáveis pela demarcação das Terras Indígenas do Alto e Médio Rio Negro. Nesta época, foi fundada grande parte das associações indígenas filiadas à Foirn e se estabeleceu uma rede de comunicação via radiofonia, além de um levantamento exaustivo e inédito de informações socioambientais da região.
"Nossa bandeira era a proteção da selva amazônica", disse em 2003, em reportagem da Folha de SP, ao comentar esse período.
Sua trajetória foi de grande dedicação aos direitos indígenas e estabeleceu as fundações para uma das maiores organizações indígenas do país. Numa série de escritos onde ele relembra seus trabalhos e mobilizações, Braz abre com a seguinte afirmação:
"O movimento indígena no Rio Negro nasceu junto com os primeiros habitantes tradicionais desta terra, hoje chamada de Brasil. Sempre que uma família aumenta o número de seus integrantes, quando promove eventos de Dabucuri, Adabi, Kuriamã, ou faz trabalhos conjuntos entre uma e outra família ou grupo, já se pratica o movimento."
O Instituto Socioambiental (ISA) lamenta profundamente o falecimento de Braz e se solidariza com sua família, amigos e parceiros.
Leia abaixo as homenagens:
Abrahão França, irmão de Braz e ex-presidente da Foirn:
"Foi meu irmão que me ensinou muitas e muitas coisas dentro do movimento. A prova disso é que toda minha trajetória dentro da Foirn foi a convite dele. Eu também não sabia o que era movimento organizado, mas a gente chegou lá a convite dele, me deu oportunidade. É uma coisa que eu não vou nunca me esquecer, pela minha trajetória política, indo a ser presidente também, toda essa situação foi graças ao Braz ter me levado, ter me ensinado e ter confiado. Braz sempre foi um pai tranquilo, sempre manteve a tranquilidade, ele não tem um passado de briga. O que eu posso dizer é 'mano, tu já contribuiu na terra. Agora a tua parte é lá, pra onde todos nós vamos'. É isso, o Braz me ensinou muito, ele não vai ficar só na memória da família, mas de todo o movimento. O Braz tem um legado, não de iniciar o movimento, mas de estruturar. E como irmão, eu não podia negar isso".
Marivelton Baré, atual diretor da Foirn:
“Braz França, do povo Baré, era uma liderança muito inteligente e visionária, com uma visão de futuro, uma preocupação coletiva com os povos indígenas do Rio Negro, pela federação, a Foirn, a qual ele presidiu duas vezes, em mandatos consecutivos. Foi o principal coordenador de todo o processo de fortalecimento da política do movimento indígena no Rio Negro estrutural da Foirn. Ele que articulou e mobilizou para a demarcação das cinco Terras Indígenas na região do Alto e Médio Rio Negro e mais tarde teve esse processo de consolidação. Sempre acompanhou todas as discussões, assim como também coordenou o convênio da ação indígena, também foi administrador regional da Funai, da administração regional do Rio Negro, ele continua acompanhando toda a luta e ascensão do movimento indígena. Marca a história de um legado de alguém que muito fez pelos povos indígenas e que esse legado será honrado nos trabalhos e nas representações que temos de levar adiante, nunca nos esqueceremos. Braz foi uma pessoa excepcional e merece todo o reconhecimento, a valorização e sempre ser lembrado e homenageado. Especialmente pra mim, foi um professor, foi um parente que sempre me orientou, aconselhou, e também tem uma forte presença nessa gestão que eu comando à frente da Foirn. Estou no meu segundo mandato enquanto diretor, presidente, e muita coisa vem desse trabalho conjunto que a gente sempre fez. Fiquei bastante abalado, bastante triste, não é fácil receber uma notícia dessas".
Márcio Santilli, filósofo, fundador do ISA e ex-presidente da Funai:
“O Braz teve um papel muito importante na demarcação das Terras Indígenas do Rio Negro, que haviam sido retalhadas e reduzidas durante o governo Sarney. Ele mediou, junto ao movimento indígena, os ajustes necessários para garantir o apoio militar aos limites atuais das terras demarcadas”.
Aloisio Cabalzar, antropólogo e assessor do programa Rio Negro do ISA:
“Braz França não foi o primeiro presidente da FOIRN, mas foi aquele que tomou para si o trabalho de torná-la uma organização forte, à altura dos desafios que os povos indígenas do Rio Negro enfrentavam no início dos anos 1990. Com sua seriedade e determinação, a FOIRN se consolidou, congregando um número cada vez maior de associações indígenas das várias regiões e dos três municípios (São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos), construiu sua sede e obteve seus primeiros recursos que permitiu uma atuação mais abrangente. No começo, Braz trabalhou voluntariamente, sem mesmo uma renda para se sustentar, e as condições para viajar numa região tão extensa eram precárias. Pouco a pouco, foi obtendo apoios para a luta pelo reconhecimento dos direitos teritoriais, que culminou com a demarcação de cinco Terras Indígenas contíguas do Médio e Alto Rio Negro, entre 1997 e 1998. Nesse período, ele não era mais presidente da FOIRN, mas coordenou os trabalhos locais de demarcação. Braz se manteve atento e participando do movimento indígena até recentemente, sempre muito firme e rigoroso, era referência como liderança e sempre contribuía nas assembleias da FOIRN, defendendo a história do movimento indígena e os direitos indígenas”.
Márcio Meira, antropólogo e ex-presidente da Funai:
"Hoje eu fiquei muito triste, muito impactado, com a notícia do falecimento do querido companheiro Braz de Oliveira França, indígena Baré da região do Rio Negro. Uma pessoa muito querida, que eu conheci em 1990 quando pela primeira vez fui ao Rio Negro fazer pesquisa de campo. Depois, nós viajamos muito na região, inclusive para fazer demarcações de Terras Indígenas na região do Médio Rio Negro. O Braz França foi, talvez, a liderança mais importante naquele momento de rearticulação da Foirn, de consolidação da Foirn e de consolidação da principal questão daquele momento, que era a demarcação das Terras Indígenas do Alto Rio Negro e Médio Rio Negro. Braz França, infelizmente, nos deixa de forma muito abrupta e precoce, ele que estava na sua casa, aposentado mas levando sua vida, com sua família. Ele se foi, mas a sua obra permanece, vai permanecer pro futuro, para as gerações futuras, que devem sempre lembrar da enorme contribuição que ele deixou como legado do seu trabalho como dirigente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro na década de 1990. Eu fui testemunha dessa atuação dele e tive uma relação muito próxima dele em todo esse período. Portanto eu queria transmitir aqui minhas condolências, meus sentimentos à família do querido Braz, seus irmãos, sua mãe, não sei se sua mãe ainda está viva, e a todos os indígenas e homens e mulheres da região do Rio Negro que hoje estão sentindo certamente a sua falta. Um forte abraço a todos de sentimentos por essa imensa perda no dia de hoje".
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Bráz França Baré, ex-presidente da Foirn, durante gravação de vídeo|Paulo Desana/Dabakuri
José Bessa, historiador e professor na UERJ/UNI-RIO:
“Braz França Baré. Três vezes amigo em três contas diferentes no Facebook com eventuais trocas de mensagens. Mil vezes amigos na vida com troca de afetos. No dia 4 de novembro de 2003, tivemos uma longa conversa. Anotei tudo num caderninho. Vou organizar a entrevista para publicá-la na íntegra. Ele falou sobre sua trajetória pessoal, militância, movimento indígena, FOIRN, escola indígena, língua Nheengatu, parcerias com o ISA, projetos de piscicultura, necessidade de alternância no poder.
Nascido no Curicuriari, em 18 de outubro de 1946, falante de Nheengatu como língua materna, ele escrevia nessa língua, usando um alfabeto próprio, “que só eu mesmo entendo”. Com duas filhas, uma delas adotiva, pergunto:
- Braz, elas falam Nheengatu?
- Claro que falam, senão eu não seria o pai delas.
Carla Dias, antropóloga do Programa Rio Negro do ISA:
“Pela sua dedicação, visão de futuro, coragem, força mobilizadora e crítica, Braz é uma liderança de referência no Rio Negro. Quando eu cheguei para conhecer e trabalhar no Rio Negro fiz uma viagem com ele e Brunihilde (uma importante parceira do ISA e da FOIRN), aprendi muito com os dois. Nessa viagem (nos idos de 2006) me impressionava como Braz nos provocava a refletir sobre os modos de vida não indígenas e nossas contribuições para um futuro digno a toda humanidade, a partir da valorização dos saberes ancestrais dos povos indígenas. Anos mais tarde, na época da elaboração dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das Terras Indígenas do Rio Negro, vi o Braz provocar a relfexão de jovens lideranças indígenas, homens e mulheres, e convidá-los a se engajar em um plano de futuro que considerasse o conhecimento ancestral e o diálogo com o governo Brasileiro na sustentação de uma vida indígena contemporânea e em constante transformação:
'Os nossos ancestrais sempre nos ensinaram como devemos viver bem, em plena harmonia com outros seres viventes dessa terra mãe. É preciso aliar isso às ferramentas atuais sem deixar que estas desconsiderem esses ensinamentos. ... O tempo passa e o mundo se transforma, a sociedade se moderniza. Temos que acompanhar esses ciclos da evolução. Por conta dessas situações é que existem essas políticas, esses PGTAs. Não é que ele vai nos ensinar a ser índio. É para que possamos entender o que o governo pensa e saber dialogar com ele'. (Braz França).
Que a memória e o legado de Braz continuem a provocar críticas e mobilizar transformações!”
Renato Martelli, antropólogo e assessor do programa Rio Negro do ISA:
“Sempre fiquei impressionado com a capacidade do Braz de tocar diretamente em assuntos que muitos evitavam. Ao meu ver, conseguir fazer isso na etiqueta rionegrina sem gerar conflitos, é uma arte. Acho que tal coragem e respeito vinha por falar de acordo com o que fazia. Afinal, Braz estruturou uma federação indígena com mais de uma dezena de etnias diferentes com os pés no chão, muitas vezes vendendo produtos de seu sítio para garantir que o movimento não parasse. Sua história reflete em muito a própria história da Amazônia, ele estudou com padres, foi trabalhador em frentes de expansão, se formou liderança e defendeu os direitos indígenas. Tudo isso sem esquecer os ensinamentos que seus ancestrais e território lhe passaram. Braz conhecia de legislação, de movimentos sociais, da mitologia Baré, conhecia cada pedra do alto rio Negro e, principalmente, era um mestre em fazer. Espero que suas palavras e feitos ecoem para muitas gerações de lideranças, guardarei elas com o maior carinho.”
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