Manchetes Socioambientais
As notícias mais relevantes para você formar sua opinião sobre a pauta socioambiental
“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
|
Imagem
|
Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
|
Imagem
|
A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
|
Imagem
|
Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
|
Imagem
|
Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
Desastre alerta para a gravidade das mudanças climáticas e suas consequências nas vidas das populações mais vulneráveis. Saiba essa e outras notícias no Fique Sabendo desta quinzena
Bomba da quinzena
O posto de saúde que atende a Terra Indígena (TI) Ribeirão Silveira e as estradas que dão acesso ao território foram atingidos pelas fortes chuvas que levaram à morte de mais de 50 pessoas em todo o litoral norte de São Paulo durante o feriado de carnaval, entre 18 e 21 de fevereiro. A chuva deixou indígenas ilhados, com locais de moradia inundados e alimentos perdidos, mas não houve registros de mortos ou feridos.
Com 9 mil hectares, a TI Ribeirão Silveira tem cinco aldeias e abrange os municípios de São Sebastião, Bertioga e Salesópolis. Lá, vivem cerca de 500 pessoas dos povos Guarani, Guarani Mbya e Ñandeva.
“Foi a primeira vez que vi uma chuva de tamanha proporção. Foram 12 horas de chuvas seguidas. Caiu um pedaço da encosta e uma pedra gigante desceu rodando. Ainda bem que tinha uma árvore no caminho que segurou ela porque, se não, teria atingido uma das casas”, contou ao UOL Serigo Macena, liderança do núcleo Rio Pequeno.
“O estrago é mais material, foi cama, colchão, geladeira, fogão, alimento se perdeu tudo", disse à Folha de S. Paulo o cacique Adolfo Timotio, da Aldeia Indígena Guarani Rio Silveira, que faz parte da TI. "Mas aos poucos tá chegando doação na aldeia, mais alimento, mais roupa". Segundo o cacique, a comunidade indígena já está segura e ninguém segue ilhado.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) está no local para dar assistência à comunidade, colaborando com a distribuição de alimentos e no diálogo com autoridades. A Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (ArpinSudeste), junto à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), lançou um alerta para a situação de todos os indígenas que vivem no litoral norte de São Paulo.
A Prefeitura de Bertioga direcionou um trailer de pronto-atendimento e uma unidade de saúde da família para o bairro da Boraceia, onde fica a TI, para substituir provisoriamente o posto de saúde indígena, mantido pela administração municipal de São Sebastião.
Entre os afetados pelas chuvas, que atingiram principalmente o município de São Sebastião, estão famílias trabalhadoras de baixa renda, que vivem em encostas perigosas, entre a Serra do Mar e a rodovia Rio-Santos, empurradas para essas regiões pela especulação imobiliária e pelo encarecimento das áreas planas e seguras, ocupadas por casas de veraneio, hotéis e mansões. O desastre nos alerta para a gravidade das mudanças climáticas e suas consequências sobre as vidas das populações marginalizadas e em vulnerabilidade. Tal fenômeno social tem nome: é racismo ambiental. Para entender mais, assista:
Extra
Mais de um mês após a declaração de emergência de saúde na Terra Indígena Yanomami (RR), a crise está longe de acabar. Na madrugada da quarta-feira (22), a base federal do Ibama localizada na aldeia Palimiú sofreu ataques de garimpeiros. O local tem a função de barrar a entrada de embarcações clandestinas no território e completou apenas duas semanas de funcionamento.
Garimpeiros armados furaram o bloqueio montado no rio Uraricoera e atiraram contra agentes federais que abordaram uma das embarcações. Os criminosos desciam o rio em sete “voadeiras”, de 12 metros cada, carregadas de cassiterita, metal cuja demanda tem aumentado. O carregamento foi identificado por drones operados por fiscais do Ibama. Após o ataque, os criminosos fugiram.
Em meio à onda de violência praticada por garimpeiros, indígenas pedem proteção contra retaliações – o início do processo de desintrusão na TI Yanomami aumenta o receio de outros povos de que o problema se agrave. Segundo levantamento de grupos indígenas, ao menos 18 líderes da etnia Munduruku estão ameaçados de morte próximo ao alto curso do Rio Tapajós, no Pará. Uma delas é Maria Leusa Munduruku, coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborûn, que precisou deixar sua casa por pressão de criminosos.
Um funcionário do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Vale do Javari e um auxiliar foram amarrados e assaltados por invasores, na quinta-feira pós-carnaval, próximo à sede do município de Atalaia do Norte (AM). Os invasores levaram uma embarcação, dois motores e mais de 3 mil litros de combustível.
O município abriga a maior parte da reserva Vale do Javari, segundo maior território indígena do país, marcado por conflitos como tráfico de drogas e pesca ilegal. Foi nessa região onde Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados, em junho de 2022. Uma comitiva do governo federal desembarcou na região para discutir a segurança na área.
Socioambiental se escreve junto
Um novo projeto quer garantir acesso à água de qualidade na Terra Indígena Yanomami para reduzir a incidência de diarreia aguda e mortalidade infantil por causas relacionadas à desidratação e desnutrição.
Coordenada pelo pesquisador Paulo Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), a equipe vai examinar amostras da qualidade de água de consumo humano e sedimentos nas aldeias de Maturacá e Ariabu, na região de Maturacá, em São Gabriel da Cachoeira (AM).
O projeto, intitulado ‘Nos caminhos das águas, a retomada da saúde Yanomami’, quer desenvolver adequações sociotécnicas (tecnologias sociais) que garantam o acesso à água em quantidade e qualidade adequadas para as comunidades selecionadas na Terra Indígena Yanomami.
O pesquisador pretende ainda desenvolver um mapa falante, com os potenciais fatores de risco de contaminação e pontos disponíveis de fornecimento de água na aldeia, considerando o uso doméstico pelas famílias. A equipe avaliará o manejo dos rios, das águas da chuva, dos dejetos humanos e dos resíduos sólidos.
Assista ao vídeo e Fique Sabendo:
Notícias e reportagens relacionadas
#ElasQueLutam! Comunicadora, ativista e uma das principais artistas visuais indígenas da atualidade, ela leva adiante os saberes do seu povo com criatividade, força e beleza
“Daiara, de origem Nambikwara, quer dizer ‘minha amiga’; e Hori quer dizer ‘desenho, luz, cor e miração [na língua Tukano]'”, conta. “Eu desenho desde antes do que me lembro por mim”.
A arte corre pelas veias de Daiara Hori desde o princípio, como não poderia deixar de ser com um nome tão significativo. Nascida em São Paulo, no início dos anos 1980, ela ainda se recorda do primeiro rabisco: um quadrado em giz de cera, que a mãe fez questão de guardar. “Sempre fui uma pessoa tímida e eu passava meu tempo, na minha solidão, desenhando”, explica. “[É] a imagem que eu tenho da infância: desenhando, em cima de uma árvore ou lendo em algum canto”.
Ela não teria como saber lá atrás, mas essa relação tão íntima e carinhosa com a plataforma só poderia crescer com o tempo. Quase quarenta anos depois, ela se estabelece como uma das mais proeminentes artistas visuais indígenas da atualidade, agora mais conhecida por Daiara Tukano.
“Esse perfil sempre esteve presente na minha vida”, Daiara relembra, contando que, nos primeiros anos da adolescência, era ela quem fazia a capa do jornal estudantil. “No segundo grau, eu me dediquei mais a pintar. Fui experimentar mais técnicas e estudar artes plásticas. É muito gostoso não apenas estudar a história da arte e das artistas, mas principalmente quantas maneiras você tem de brincar com imagem, com som, com corpo, com essas histórias”, conta.
Mais tarde, ela continuou seus estudos na Universidade de Brasília (UnB), onde se formou em Artes Visuais, período de extrema importância para seu crescimento enquanto artista e mobilizadora cultural. “Fui monitora de desenho, anatomia artística, ilustração científica, figurino, iluminação e maquiagem”, recorda.
Fora da sala de aula, também foi presidente do Centro Acadêmico, diretora do Circuito Universitário de Cultura e Arte da União Nacional dos Estudantes (UNE) e coordenadora de artes visuais do Coletivo Palavra, grupo de produção artística urbana e multimídia de Brasília. “[Estava] nesse meio jovem, universitário, da cidade, conhecendo muitas pessoas e aprendendo a fazer junto”, diz.
Mas foi nessa época, também, que Daiara começou a se aproximar da cultura do seu povo, os Yepá Mahsã, ou Tukano, uma das 23 etnias que vivem na região do Rio Negro, no Amazonas. Seu pai tinha muito o que transmitir aos filhos e ela, a primogênita, demonstrou curiosidade e interesse em aprender.
“A gente começou a fazer cerimônias, a virar a noite ouvindo as histórias da criação, ouvindo ele cantar, também tomando o Kahpi”, relembra. “É como se fosse uma graduação dentro da própria cultura. E de repente eu fui me dando conta de quantas histórias eu já conhecia e o quão mais complexas elas eram quando eu parava para pensar sobre elas”.
A experiência com o Kahpi (nome dado pelos Yepá Mahsã ao cipó da ayahuasca), em particular, deu outros rumos para sua arte. A planta é central para a cosmologia Tukano, afinal, foi a partir dela que surgiu a humanidade e todo conhecimento a ela associado: os diversos povos, as diferentes línguas, os cantos, as artes - tudo vem junto ao nascimento do Kahpi, contam os indígenas. Provar a ayahuasca e mirar o mundo sob o efeito dela pela primeira vez abriu todo um universo para Daiara.
“Eu fiquei muito tocada, encantada, chocada. Foi muito revelador ter essa sensação, essa evidência, de como a nossa cosmovisão é real. Não é um mito, não é uma maneira poética de falar as coisas. É aquilo mesmo”, afirma.
A partir de então, ela passou a experimentar com luzes e cores, pesquisar as origens e significados dos grafismos dos povos rionegrinos, observar as tramas das cestarias e padrões das cerâmicas, bancos e malocas e infusionar seu trabalho com os hori, ou mirações, que ela enxerga a partir do Kahpi.
“A miração é uma visão que a gente vê e não vê, é uma visão espiritual, pode ser uma visão do sonho, intuitiva, da imaginação”, explica. Desde 2013, ela desenvolve a série Kahpi Hori, onde busca justamente apreender em tela essas visões, a partir de padrões geométricos, cores vibrantes e feixes de luz.
A cada passo dado, mais claro ficava aquilo que ela já sabia desde pequena: os Yepá Mahsã são um povo que desenha no mundo. “Eu vim de uma panela de ayahuasca cheia de desenhos e essa panela é o Alto Rio Negro”, sublinha. E é através da sua arte que Daiara resgata esse saber e o passa adiante.
“Estou aproveitando para contar essas histórias, mas também para imaginar como é andar nesse mundo”, comenta. “Nós, povos indígenas, precisamos usar todas as plataformas possíveis para fazer a [nossa] valorização. Então, para mim, pintar é uma celebração desse mundo da transformação, esse mundo Tukano”.
Entre prédios e museus
Enquanto conversava com o Instituto Socioambiental (ISA), Daiara preparava uma série de obras para a exposição Amõ Numiã, em cartaz até 11 de março na Galeria Millan, em São Paulo. Ao redor, oito telas verticais tomavam as paredes, do teto ao chão, representando as figuras femininas que são parte das histórias da criação Tukano; matriarcas cujas histórias, segundo a artista, são pouco contadas ou somente em espaços reservados.
“Cada um desses desenhos tem um motivo, uma história,” ressalta, apontando elementos característicos da cultura e ancestralidade do seu povo. “[É importante] celebrar e conhecer profundamente cada um desses significados, para que a gente possa reconhecê-los quando estão ali presentes. Essa é uma maneira de construir uma arte que é Tukano para os Tukano. Não é só para mostrar para o branco – é uma arte que é nossa”.
Ao mesmo tempo, Daiara assina a curadoria da mostra Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação, disponível até 23 de abril no Museu da Língua Portuguesa, também em São Paulo – uma coletânea de áudios, fotos históricas, peças de artesanato, vídeos e estações interativas que convidam a mergulhar no patrimônio linguístico e cultural dos povos originários, reflorestar os pensamentos e ouvir suas palavras com mais respeito.
Leia mais:
Resistências indígenas ocupam Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo
As duas exposições estão entre as mais recentes com a presença de Daiara. Elas ilustram a crescente abertura da cena cultural às vozes e sabedorias indígenas no Brasil, e ajudam a demonstrar uma outra vertente de seu trabalho: o da arte enquanto política.
“Na história da arte do Brasil, a figura do índio é a de um índio morto ou ajoelhado em frente da cruz”, assinala. Ela recorda particularmente da primeira vez que entrou na Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde, em 2020, participou da mostra Vexoá: Nós Sabemos, e viu, com seus próprios olhos, a escultura de Moema, uma menina indígena representada morta na praia, nua e sensualizada. “É um negócio tão grotesco, tão brutal, e ainda sendo celebrado daquele jeito [pelas galerias e museus]”.
Por isso, ela reflete, é tão importante adentrar e dialogar criticamente com espaços que, tradicionalmente, relegaram aos povos indígenas uma imagem de morte, sujeição e colonização.
“Essas narrativas são armadilhas, então, a gente tem que aprender a desarmá-las e também montar armadilhas para os outros caírem na nossa onda”, aponta. “A nossa arte é uma grande armadilha para permitir que o nosso mundo respire. Uma armadilha que convida à nossa cosmovisão, a romper com narrativas eurocêntricas, a ouvir e falar outras línguas, que são as línguas originárias”.
Para além de exibir suas obras em museus e outros espaços clássicos da cena artística brasileira – que também incluem, por exemplo, a 34ª Bienal de Arte de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo (onde assinou a exposição individual Pameri Yukese, Cobra-Canoa da Transformação), e o Museu Nacional da República (onde participou da mostra Brasil Futuro: as formas da democracia) –, Daiara também assina intervenções urbanas de grande porte.
Em 2020, ela se tornou conhecida como a artista indígena a pintar o maior mural de arte urbana do mundo, chamado Selva Mãe do Rio Menino, como parte do Circuito Urbano de Cultura e Arte de Belo Horizonte (CURA). No meio da Avenida Amazonas, a obra apresenta a colorida imagem de uma mãe-floresta carregando seu filho, o menino-rio, no colo, a qual ocupa mais de 1000 metros quadrados da parede lateral do Edifício Levy, o mesmo onde nasceu o Clube da Esquina de Milton Nascimento.
Como o prédio que iria pintar estava localizado em Minas Gerais, estado com um histórico de mineração predatória e onde o crime de Mariana havia poucos anos antes matado o Rio Doce, Daiara quis trazer esse passado como inspiração para o desenho que criaria. “Eu lembro do Ailton [Krenak] falando do Rio Doce como um avô; e eu pensava sempre no meu avô e o imaginava criança, brincando no rio”, diz. “[Então me veio] a figura desse rio, que é avô, também [ter sido] um menino. E esse menino tem mãe, que com certeza é a floresta, porque o rio só brota na floresta”.
E acrescenta: a intervenção mineira foi tão bem recebida que crianças reproduzem seu desenho na escola e a marcam nas redes sociais quando a obra aparece ao fundo em dias de marchas pela Avenida Amazonas. “Não dá para falar daquele prédio sem falar de Mariana, do Rio Doce, da luta do movimento indígena, de outros artistas indígenas também. Então, isso me move muito”.
Num ambiente também repleto de monumentos dedicados aos colonizadores, Daiara marca a ancestralidade indígena na paisagem da cidade – ela também assina o mural Alento, em São Paulo. “Já que não temos como fazer esculturas gigantes com as nossas lideranças, pelo menos pintar prédios nós estamos conseguindo”, ri
Comunicação, militância e arte
Certa vez, o xamã Davi Kopenawa, do povo Yanomami, pegou Daiara pela mão e a apresentou como uma “fruta da nossa luta”. Ela explica a metáfora: “nossos avós foram para a roça, plantaram uma árvore, aí nossos pais cuidaram daquela árvore, e ela deu fruta. Essa fruta deu muito trabalho para manter viva, ter saúde, ter acesso à educação, se munir de armas, mas agora ela está madura”, conta. “Nós somos a fruta da luta de muitas gerações antes de nós”.
Filha de um líder Tukano e uma antropóloga, Daiara nasceu literalmente dentro do movimento indígena. No início dos anos 1980, época de intensa mobilização em favor dos direitos indígenas que antecede a construção da Constituição Federal de 1988, ela já participava, ainda bebê, de encontros e articulações, observando as lideranças e aplaudindo as conversas, mesmo sem saber exatamente o que tudo aquilo significava.
“Tem uma hora em que você começa a entender um pouco mais a dimensão da violência, da dor, que faz com que essas pessoas se conheçam, se reúnam, lutem juntas. E também [como] essa dor, essa violência, deixam marcas nas nossas vidas”, reflete, lembrando de como passou os primeiros anos da infância longe dos pais por conta desses caminhos ativistas e riscos à sua segurança.
Porém, como era de se esperar, essas influências foram essenciais para a sua formação enquanto jovem ativista. “A gente cresce e tenta somar de algum jeito. Eu, pessoalmente, escolho contribuir [por meio] da comunicação, da cultura [e] da arte”, afirma. Ela também completou um Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB, com estudo sobre o direito à memória e à verdade dos povos indígenas e sua relação com o ensino brasileiro.
Após se graduar, Daiara lembra que foi trabalhar como professora de artes em escolas públicas de Brasília. Foi nessa época que sentiu com mais força o peso do racismo. “Eu tinha que ouvir perguntas dos colegas, dos alunos, e todo dia lidar com ignorância, com preconceito”, lembra. “Foi muito chocante. E aí eu sempre ficava procurando como falar com essas pessoas de maneira criativa”.
Na internet, se deparou pela primeira vez com portais criados pelos próprios parentes, para discutir suas pautas – caso da Rádio Yandê, a primeira web rádio indígena do Brasil, pela qual se apaixonou perdidamente. Não só a Yandê era feita pelos indígenas e para os indígenas, ela não se debruçava apenas sobre as pautas de luta e violência, mas também sobre outras expressões culturais, como música, cinema e literatura, tão essenciais quanto.
“Eu era super fã da Yandê, mostrava na escola, e uma vez eu mandei mensagem para eles, elogiando, agradecendo. E alguém me respondeu: ‘a gente também adora o seu trabalho, será que você não quer se juntar à nós?’”, conta.
Ali, Daiara iniciou um caminho de colaboração com a Yandê que duraria seis anos. Em Brasília, virou jornalista e passou a cobrir reuniões das lideranças com órgãos indigenistas e mobilizações na capital. “Eu imprimi um crachá de imprensa, plastifiquei, botei no pescoço e conseguia furar os bloqueios policiais, entrar nos lugares”, recorda. Também se tornou articuladora cultural e apresentadora, organizando espaços de diálogo com parentes que eram músicos, professores, antropólogos, advogados, os quais transmitia ao vivo no Facebook.
Mais tarde, assumiu a coordenação da rádio. Foi nessa época, quando a pandemia de Covid-19 impediu a realização do Acampamento Terra Livre, que ela organizou o Abril Indígena, um mês inteiro de programação sobre os mais variados temas, de saúde à educação, passando por sexualidade, espiritualidade, arte e empreendedorismo.
A experiência com a Yandê, diz Daiara, demonstra a grande proximidade que ela vê entre comunicação, militância e arte. Foi pela rádio, por exemplo, que ela introduziu discussões que a interessavam profundamente, mas com poucorespaldo no movimento indígena brasileiro – como as experiências de resistência de povos em outros países latinos e norte-americanos e temas como apropriação cultural e altos índices de suicídio entre indígenas.
“A estratégia mais eficiente para a gente combater a violência é a cultura, é a arte”, sublinha a artista – que, em 2021, foi indicada ao Prêmio PIPA, o mais relevante das artes visuais brasileiras. “[São elas] que levantam a autoestima dos jovens, que começam a reconhecer seu lugar, a valorizar sua história e a querer construí-la junto com as gerações que vêm antes, para aquelas que vêm depois. A arte é política”, finaliza.
#ElasQueLutam é a série do ISA sobre mulheres indígenas, ribeirinhas e quilombolas e o que as move. Acompanhe no Instagram!
Notícias e reportagens relacionadas
Empossada no início de fevereiro, Joenia assinou Portarias de Restrição de Uso de terras indígenas que estavam desprotegidas
A advogada e ex-deputada federal Joenia Wapichana tomou posse oficialmente como presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ela é a primeira mulher indígena a assumir a presidência do órgão.
Durante a cerimônia de posse, que aconteceu no dia 3 de fevereiro, Joenia assinou 11 portarias: oito de criação ou recomposição de grupos de trabalho para demarcação de territórios, uma para a instituição do grupo de trabalho para acompanhar a situação do povo Yanomami e renovou as Portarias de Restrição de Uso de duas terras indígenas com presença de povos isolados, a Terra Indígena Jacareúba/Katawixi (AM) e a Terra Indígena Piripkura (MT).
Suas ações no comando da Funai simbolizam uma grande mudança na política indigenista brasileira, especialmente levando em conta os últimos quatro anos, que foram de retrocessos para os povos indígenas do Brasil e seus territórios. O órgão enfrentou uma onda de sucateamento e desestruturação, com a diminuição de recursos, paralisação de demarcações e coordenações comandadas por militares e gestores sem experiência em políticas públicas para povos indígenas.
A Funai de Marcelo Xavier, ex-presidente do órgão, também deixou de garantir proteção às terras indígenas com presença de povos em isolamento ou de recente contato. As portarias que protegiam estas terras indígenas, ainda não homologadas, eram renovadas por períodos curtos de três a seis meses, gerando instabilidade nestes territórios e incentivando grileiros a invadirem as terras na expectativa de que a proteção não fosse renovada quando vencesse.
Entre os casos graves de omissão, está o da Terra Indígena Jacareúba/Katawixi, no Amazonas, que estava há mais de um ano com a Portaria de Restrição de Uso vencida. A TI virou terreno de exploração ilegal de madeira, com um crescimento de 209% nos índices de desmatamento ilegal dentro do território somente no último ano.
Já a Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso, tem 22% do território sobreposto a imóveis privados, registrados irregularmente no Cadastro Ambiental Rural (CAR). De agosto de 2020 a agosto de 2022, cerca de 1,3 milhões de árvores adultas foram derrubadas no território Piripkura, como aponta o boletim Sirad-Isolados, do Instituto Socioambiental. Agora, as duas terras indígenas tiveram sua proteção renovada até que sejam homologadas.
Extra
A Justiça Federal determinou que a União e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) apresentem um plano de proteção para a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (RO) em até 90 dias úteis, em conjunto com o Estado de Rondônia e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), desde 2016 são recebidas denúncias de diversos crimes ambientais e invasões dentro da Terra Indígena, praticados por madeireiros, garimpeiros e grileiros. Ainda segundo o MPF, os povos “estão em risco iminente de expulsão de suas terras demarcadas e de morte”. O juiz federal Hiram Armenio Xavier Pereira disse que “sequer o mínimo vem sendo feito na proteção dos direitos indígenas e ambientais”.
De acordo com o boletim Sirad-Isolados, o território Uru-Eu-Wau-Wau, que conta com a presença de povos em isolamento, teve 155 hectares desmatados durante todo o ano passado, o que corresponde a aproximadamente 87 mil árvores adultas derrubadas.
Essa terra indígena está cercada por fazendas, com áreas de pasto e de plantio de soja. Os invasores não respeitam os limites da demarcação e avançam em direção ao interior do território. Além do desmatamento desenfreado causado pela grilagem, o boletim Sirad-Isolados mostrou que esse território também possui requerimentos minerários protocolados na Agência Nacional de Mineração para exploração de diversos minerais.
Isso vale um mapa
A crise humanitária vivida pelo povo Yanomami, no Amazonas, lançou luz sobre o poder arrassador da expansão do garimpo ilegal dentro de terras indígenas. É importante lembrar, ainda, que a TI Yanomami também tem o registro de povos indígenas isolados.
Segundo a análise produzida pelo Mapbiomas, nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a atividade garimpeira em territórios indígenas bateu recorde, tanto em tamanho, quanto em expansão. Em 10 anos, a área de garimpo em terras indígenas sextuplicou: cresceu de 3,2 mil hectares para 19,6 mil hectares. A análise mostra que a expansão do garimpo coincide com a invasão de territórios indígenas e unidades de conservação.
A Terra Indígena Yanomami foi uma das mais afetadas. Em apenas um ano, a atividade garimpeira quadruplicou, indo de 414 hectares em 2020 para 1.556 em 2021. As maiores áreas de garimpo em terras indígenas estão no Pará, nos territórios Kayapó (11,5 mil hectares) e Munduruku (4,7 mil hectares), e no Amazonas e Roraima, no território Yanomami.
Clique aqui para entender mais sobre a catástrofe vivida na Terra Indígena Yanomami e o que o que o garimpo ilegal tem a ver com isso.
Leia também:
Precisamos falar sobre a beleza dos Yanomami
Socioambiental se escreve junto
A exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação está aberta ao público até 23 de abril de 2023, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e convida os visitantes a abrirem a mente e ouvirem as histórias, palavras e vidas indígenas com mais respeito. A exposição tem a artista, comunicadora e ativista Daiara Tukano como curadora.
A mostra se debruça sobre as mais de 175 línguas faladas hoje pelos 305 povos indígenas do Brasil, apresentando obras de mais de 50 profissionais indígenas, entre artistas visuais, fotógrafos, cineastas, comunicadores e pesquisadores. Quem visita a exposição encontra as árvores linguísticas que resistem hoje no Brasil e conhece histórias, cantos e discursos em dezenas de línguas indígenas.
A exposição tem apoio da Unesco, do Instituto Socioambiental (ISA), do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), do Museu do Índio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação
Quando: Até 23 de abril
Onde: Museu da Língua Portuguesa - Estação da Luz, São Paulo
Horário: De terça-feira à domingo, das 9h às 16h30
Ingressos: R$20,00, com entradas gratuitas aos sábados
Assista ao vídeo e Fique Sabendo:
Notícias e reportagens relacionadas
Considerados de recente contato, povos ficam vulneráveis à fome e a doenças enquanto aguardam para retirar documentos e receber benefícios
A indígena Cristina Isabel da Silva, do povo Yuhupdëh, vive com sua família na comunidade Santa Rosa, no Rio Tiquié, região do Alto Rio Negro (AM), mas está em São Gabriel da Cachoeira (AM) há cerca de um mês. Ela viajou até a cidade para retirar documentos de familiares e, ainda, tentar conseguir sua aposentadoria, e está desde então em um acampamento improvisado próximo da área urbana do município, exposta a uma série de riscos. Já foi a diversos órgãos públicos, mas ainda não resolveu suas questões.
Sentada sob uma barraca com lona azul, no acampamento improvisado no sítio chamado Parawary, ela conta sobre as dificuldades que vem passando e da sua preocupação com a família, que está sem se alimentar direito e sujeita a doenças. No total, 11 pessoas, sendo cinco crianças, fizeram juntas uma viagem que durou cerca de duas semanas pelos rios Tiquié, Uaupés e Negro, em canoa com motor rabeta – isso é, de baixa potência.
A situação da família de dona Cristina atinge muitos outros indígenas Hupda e Yuhupdëh – povos da família linguística Naduhupy considerados de recente contato e grandes conhecedores dos caminhos da floresta. Ao menos 800 pessoas estão no sítio Parawary, em condições insalubres, em situação de insegurança hídrica e alimentar. Um emaranhado burocrático acaba alongando o período que os indígenas precisam ficar na cidade para resolver pendências com documentação e benefícios.
Em ação emergencial, a Funai e órgãos como FOIRN, ISA, Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (Dsei-ARN), Cartório e Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e Exército realizaram um mutirão de atendimento a esses povos para tentar acelerar a resolução de pendências que acabam segurando os indígenas na cidade, além da retirada do lixo no entorno dos acampamentos. A mobilização iniciou no sábado, 4 de fevereiro, no Parawary, e será mantida até que a situação seja controlada.
“Estamos mobilizando as instituições para um atendimento emergencial amplo. Há o receio de ocorrerem mortes se não atuarmos”, informa o diretor-presidente da FOIRN, Marivelton Barroso, do povo Baré.
A Federação vem apontando problemas no atendimento oferecido pelas instituições públicas, como falta de pessoal, estrutura e de tradutores de línguas da região. Muitos dos indígenas, inclusive os jovens, não falam o português, dificultando a relação com as instituições.
Além disso, falta material para a emissão de documentos, como cédulas de identidade, que vêm de Manaus. O Estado fornece 400 cédulas por mês para o município, o que não é suficiente para atender a população, principalmente nos momentos de maior demanda.
A questão que envolve a saída dos Hupda e Yuhupdëh de suas comunidades com destino à cidade é recorrente, acentua-se no período de férias escolares e vem se agravando ano a ano, desde 2012, quando passaram a acessar as políticas públicas como o Bolsa-Família. Conforme dados da Funai, houve período em que foram registrados até cinco óbitos de indígenas nessa situação, e com causas violentas, como afogamentos.
Advogada do Programa Rio Negro do ISA, Renata Vieira integra a equipe de ação emergencial para os povos Hupda e Yuhupdëh. Ela explica que as políticas públicas que são pensadas a nível federal muitas vezes não levam em conta a realidade dos povos indígenas, o que acaba contribuindo com a situação de vulnerabilidade.
“É exigida uma série de burocracias, como emissão de documentos de RG, CPF, Título de Eleitor, certidão de nascimento, além de realização de operações bancárias com manuseio de cartões magnéticos para dar entrada ao registro no CadÚnico para acessar o Bolsa-Família ou dar entrada num pedido de salário-maternidade”, detalha. “Como essa burocracia não faz parte da cultura desses povos, os indígenas ficam andando de instituição em instituição com várias limitações para compreender e obter a documentação necessária para resolver as suas pendências. Desse modo, a motivação de vinda à cidade que inicialmente é acessar direitos sociais básicos passa a configurar uma série de violações de direitos humanos”.
Relatório do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) aponta que essa população indígena acampada nos arredores da cidade fica em condições precárias, com crianças e idosos mais suscetíveis ao consumo de bebidas alcoólicas, acidentes fluviais, negligência, abandono, escassez de alimentação, moradia (acampamento) inadequada, falta de água potável e de saneamento básico.
Barracas são armadas principalmente no período de férias, quando as famílias aproveitam o recesso para resolver pendências na cidade 📷Raquel Uendi/ISA e Ana Amélia Hamdan/ISA
A equipe de saúde removeu seis pessoas para a Casa de Apoio Indígena e ao Hospital de Guarnição (HGU), sendo duas crianças, uma mulher que havia acabado de dar à luz a um bebê que já nasceu morto e três idosos com sintomas de tuberculose. Foi registrada a morte de uma adolescente de 16 anos, sendo que a causa está sendo averiguada.
Há ainda registros de desidratação e diarreia. Já foram identificados pelo menos 53 casos de malária. Para evitar que os indígenas retornem às suas casas com a doença – o que poderia levar ao aumento de casos no território indígena – será montada uma barreira sanitária para realização de testes.
O risco se agrava com as famílias circulando em instituições públicas na tentativa de tirar documentos. A indígena Cristina Isabel conta que saiu do Parawary, foi até o centro de São Gabriel e acabou sendo assaltada: os poucos documentos de uma das pessoas da família foram roubados. Ela tentou acionar a polícia, mas não conseguiu, pois tem dificuldades em falar o português.
Conversando na língua Tukano, ela fala da fartura de sua comunidade. “Lá tem farinha, quinhapira, beiju, tapioca, maçoca, manicuera, mingau”, relata, referindo-se a alimentos à base de mandioca e peixe. A farinha que trouxe na viagem para alimentar a família foi trocada por combustível ainda no trajeto.
A família de Maria Conceição Fernandes, Yuhupdëh, e de Januário Araújo Costa, do povo Hupda, moradores de Cunuri, também foi assaltada. Eles viajaram com toda a família para resolver pendências de documentos, usando duas canoas para transportar 11 pessoas. Mas uma das embarcações foi roubada no porto da cidade. Agora, o grupo, que também está vivendo no acampamento improvisado, conta com a ajuda de parentes no retorno a Cunuri, de onde saiu em 14 de janeiro.
Maria Conceição conta que sua família está passando fome. “Se acaba o dinheiro, não há o que fazer, aqui na cidade é o que manda. Na comunidade é diferente, sempre tem algo para a gente se alimentar”, diz.
Casa de apoio
Uma alternativa apresentada durante as reuniões do grupo de emergência foi a construção de casas de apoio em São Gabriel, com estrutura para que essas famílias fiquem instaladas, respeitando suas características culturais.
Outras ações estão em andamento para atender os povos Naduhupy – Hupda, Yuhupdëh e Dâw –, como o Plano de Contingência de Surtos e Epidemias em Povos Isolados e de Recente Contato (PIIRC). Em fase de formulação, este é um importante documento para o planejamento de ações de urgência e enfrentamento conjunto a epidemias e determinantes sociais que impactam negativamente na mortalidade desses indígenas. O PIIRC está previsto na portaria conjunta 4.094/2018 do Ministério da Saúde e Funai e vem sendo construído conjuntamente por órgãos públicos e sociedade civil organizada, em conjunto com a FOIRN e lideranças dos povos Naduhupy.
Conforme o documento, os povos Hupda e Yuhupdëh, bem como os Dâw, sofrem com situações de extrema vulnerabilidade social e epidemiológica, estando expostos ao contágio de Covid-19, malária, tuberculose, dengue, gripe, e aumento no número de morte por suicídio e riscos associados ao consumo de bebida alcoólica no meio urbano.
Também está em elaboração, em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o curso de Licenciatura Intercultural Indígena voltado para esses grupos.
Povos que tradicionalmente ocupavam áreas de interflúvio, os indígenas das etnias Hupda e Yuhupdëh vêm, ao longo dos anos, se fixando em comunidades ribeirinhas e mais próximas à distritos (vilarejos) urbanos, entre elas Santo Atanásio, Boca de Traíra e Vila Fátima. Esse movimento vem sendo acompanhado pelas lideranças dos povos Naduhupy, por antropólogos e órgãos como Funai e FOIRN.
Esses povos são detentores de conhecimentos de como viver, conhecer, caçar e andar na floresta Amazônica. Sabedoria cada vez mais rara e preciosa, principalmente em tempos de emergência climática, quando as ciências dos moradores da floresta sobre como sobreviver dela e, ao mesmo tempo, preservá-la, ganham cada vez mais destaque.
Os indígenas Hupda e Yuhupdëh entrevistados nessa matéria falaram principalmente na língua Tukano e foram traduzidos pelos comunicadores da Rede Wayuri Deise Alencar e Euclides Azevedo, ambos do povo Tukano
Notícias e reportagens relacionadas
Documentos indicarão como os 23 povos que habitam a região querem ser consultados quando algum projeto impactar suas vidas
"Nós, povos e comunidades indígenas do Rio Negro, guardiões da natureza, donos da terra, devemos ser consultados sobre todo projeto que possa nos afetar. Toda e qualquer medida legislativa, executiva e administrativa que possa afetar nossas vidas e territórios da área de abrangência da FOIRN precisa ser consultada, seja de um órgão federal, estadual ou municipal, ou mesmo de empresas privadas. Tudo que ameaça a vida dos animais, o meio ambiente, os patrimônios culturais, como lugares sagrados para as gerações presentes e futuras, deve ter consulta".
É assim, sublinhando o patrimônio do qual cuidam - um território de aproximadamente 13 milhões de hectares, em uma das regiões mais preservadas da Amazônia - que os 23 povos que habitam a bacia do Rio Negro apresentam seu Protocolo de Consulta, aprovado em novembro último, durante a XVIII Assembleia Geral Ordinária da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), na comunidade de Cartucho, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
O Protocolo é um instrumento de defesa do território indígena e da diversidade cultural e modos de vida originários. Através do documento, povos indígenas informam ao Estado e a empresas privadas quem são, como se organizam e como devem ser consultados em caso de projetos que possam impactar seus territórios e modos de vida. A consulta deve ser livre, prévia, de boa fé e culturalmente adequada, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
“[Agora] não vai ter um líder só falando pela terra indígena. Nosso território é de ocupação coletiva e o Protocolo de Consulta vem para ouvir a todos. Vem para garantir direitos coletivos, direito à terra, políticas públicas de acordo com nossos modos de vida e vivência”, diz Marivelton Barroso, do povo Baré, diretor-presidente da FOIRN.
Para dar conta da dimensão geográfica e da diversidade étnica desse território, foram aprovados seis documentos, um geral e outro para cada coordenadoria regional da FOIRN, respeitando as especificidades de cada povo, como a língua falada e o contexto local. São elas: Nadzoeri (Organização Baniwa e Koripako), Diawii (Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Uaupés e Afluentes), Caimbrn (Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro), Caibarnx (Coordenadoria das Associações Indígenas do Balaio, Alto Rio Negro e Xié) e Coidi (Coordenadoria das Associações Indígenas de Iauaretê).
Os povos do Rio Negro escolheram ser consultados em suas comunidades, com respeito às suas línguas. A consulta deve ser feita considerando os calendários tradicionais e épocas das roças e festas, bem como a forma de organização política do território. Os conhecedores indígenas, os Kumuã – como os pajés são chamados na região – também devem ser consultados em determinadas regiões. Atualmente, as pressões e ameaças sobre os territórios indígenas na região vêm principalmente do garimpo ilegal, do turismo ilegal e do narcotráfico.
Diálogos e processos
A construção do Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas do Rio Negro demandou grande esforço para envolver 750 comunidades e sítios em três municípios, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, no Amazonas.
Esse processo foi iniciado em 2019, porém foi suspenso devido à pandemia de Covid-19. Em 2022, foram realizadas assembleias regionais em todas as coordenadorias, com oficinas sobre o direito à consulta prévia, a importância do protocolo de consulta e a metodologia utilizada para a construção dos documentos. Os debates também envolveram a participação e suporte técnico de advogadas e advogados do Instituto Socioambiental (ISA), Observatório de Protocolos Comunitários e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Houve uma grande mobilização na Assembleia Geral para validar e consolidar esse processo dos protocolos regionais, já estabelecidos, e [também] o protocolo geral”, diz Marivelton Baré. Ao menos 17 povos participaram deste momento, entre eles os Baré, Baniwa, Tukano, Yanomami, Desano e Tariano. Marivelton compara o processo de construção do Protocolo de Consulta a um ajuri ou Wayuri, que, na língua indígena nheengatu, significa “trabalho conjunto”.
Maior parte dos povos indígenas do Rio Negro participaram das assembleias regionais e da Assembleia Geral, entre eles Baniwa, Baré, Yanomami, Tukano e Desano | Ana Amélia Hamdan/ISA
Na abertura da Assembleia, a diretora da FOIRN de referência da Coidi, Janete Alves, do povo Desana, reforçou a importância do diálogo e incentivou os povos a falarem em suas línguas. “Não tenham medo. Enfrentamos cachoeiras, banzeiros para estarmos aqui reunidos em coletividade nesse momento histórico”, disse.
A aprovação aconteceu na tarde de 26 de novembro de 2022, em Cartucho, após dois dias de debates e esclarecimentos sobre o protocolo de consulta. O encontro reuniu cerca de 150 pessoas, sendo 100 delegados – 20 de cada uma das regionais – para garantir a representatividade.
“A consolidação desse documento é um marco para nós, os povos do Rio Negro. É uma grande emoção. Essa é uma ferramenta [para] a nossa defesa, a nossa governança. É um instrumento para manter a floresta em pé. Já tivemos experiência de garimpo em terra indígena. Muitas vezes entram sem consultar, desmatam, poluem o rio. E os povos indígenas? Onde vai fazer roça, onde vai pescar?”, questiona Janete Alves.
Ao fortalecer a proteção do território, o protocolo de consulta também protege os modos de vida indígenas. “Sempre tivemos nossas formas de organização, mas agora estamos colocando no papel, aprovando um instrumento de governança para o nosso bem viver, defendendo nossos territórios para nossos filhos, nossos netos”, diz Dário Casimiro, do povo Baniwa, diretor de referência da Nadzoeri.
“Os povos Baniwa e Koripako dominam as técnicas de manejo voltadas para o bem viver, que é estar bem com o próximo, com os parentes, ter convívio social sem conflito. Estar bem de saúde, respeitando um ao outro, fazendo troca de produtos, de conhecimento. Isso é fundamental. O protocolo [vem] para a defesa do território e para continuar o manejo, a reciprocidade, a consideração de parentesco e respeito às lideranças que representam o povo”, completa.
A Coordenadoria Diawii trouxe para o seu protocolo a necessidade da participação dos conhecedores indígenas. “Os especialistas são fundamentais, pois eles vão apontar os perigos de se colocar em risco os lugares sagrados”, explica o vice-presidente da FOIRN e diretor de referência da Diawii, Nildo Fontes. “As pessoas que detêm esse conhecimento passaram longos anos se preparando. Por isso é preciso ter um momento específico de consulta a eles, que são os Yaí, os Kumuã“.
Ronaldo Ambrosio Melgueiro, do povo Baré, participou da Assembleia representando a Caibarnx. A região vem sofrendo com a pressão da mineração e do turismo ilegal. “Qualquer projeto em nossa área vai ter que funcionar de jeito que a gente possa acompanhar. O nosso protocolo de consulta vai chegar até as nossas bases. A gente não quer mineradoras na nossa área”, diz.
Relatos de impactos da mineração também foram compartilhados pelos convidados Dário Kopenawa e Milene Mura, representantes de povos que já aprovaram seus protocolos de consulta.
“Sabemos que tem parentes que defendem a mineração, mas é uma minoria. Garimpo ilegal não é brincadeira, é morte. Derrama sangue e assassina pessoas”, apontou Dário. “Nenhuma liderança pode negociar por vocês. Vocês têm que assumir a responsabilidade sobre o território e para isso têm que ser consultados”, aconselhou. O povo Yanomami vive hoje uma catástrofe sanitária e socioambiental causada pela invasão garimpeira em massa ao território, em especial em Roraima.
Saiba mais:
O que você precisa saber para entender a crise na Terra Indígena Yanomami
Milena Mura comparou o protocolo de consulta a uma trincheira para defender os povos originários dos não-indígenas. “Sempre tivemos táticas para nos defender dos invasores. O protocolo agora é uma delas”, disse. Vivendo em áreas de Autazes e Careiro da Várzea (AM), o povo Mura vem sendo pressionado por empresas interessadas no mineral silvinita, utilizado em fertilizantes.
Contextos rio-negrinos
Advogada e assessora jurídica do Cimi, Chantelle da Silva Teixeira participou de quatro assembleias regionais para construção dos protocolos de consulta no Rio Negro e do encontro geral. Ela destaca algumas especificidades da região que influenciaram na construção do protocolo.
“O primeiro aspecto é a diversidade de povos, línguas, culturas e organizações sociais. Sem contar o tamanho do território que esse protocolo abrange. Foi necessária muita escuta porque a ideia é que as normas que vêm para o papel reflitam a realidade”, explica.
Ela ressalta que o protocolo não cria uma regra nova, mas registra no papel práticas das quais os povos indígenas já se utilizam. “É uma forma de trazer para o mundo jurídico ocidental normas indígenas ancestrais e tradicionais”, avalia.
No caso do Rio Negro, o processo deve respeitar a forma de organização política já estabelecida nesse território. Isso significa que, além da FOIRN, devem ser consultadas as coordenações regionais, as associações de base e as lideranças das comunidades. “Essa é nossa governança”, diz Marivelton Baré.
Há ainda a riqueza linguística da região. Só em São Gabriel da Cachoeira, considerado o município mais indígena do país, são quatro línguas cooficiais: nheengatu, tukano, baniwa e yanomami. Dessa forma, a consulta deve ser feita com o apoio de intérpretes, para que o diálogo seja feito de forma clara, levando em conta inclusive as devidas explicações sobre termos técnicos. O processo deve ser acompanhado por órgãos públicos como a Funai e o Ministério Público.
“A consulta deve ser sem pressão, sendo respeitados os tempos, os calendários tradicionais. Num território de grande diversidade étnica, onde são faladas ao menos 18 línguas, é necessário tomar o devido cuidado com as traduções, para que não haja dúvidas sobre os projetos e seus impactos”, diz Renata Vieira, advogada do ISA.
Antropólogo e assessor do ISA, Renato Martelli adiciona que o Protocolo de Consulta é também um importante instrumento para a implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) do Rio Negro, que têm propostas em áreas como saúde, educação e economia da floresta.
“É um contexto amazônico, com muitas comunidades longínquas e com dificuldades de comunicação. Ainda assim os indígenas são muito articulados e organizados,” complementa a advogada Gisele Jabour, do Observatório de Protocolos Comunitários. “Já têm a vanguarda na construção dos PGTAs e agora consolidaram os protocolos de consulta”.
Mobilização
Teve indígena que saiu de longe para participar da validação do protocolo. Foi o caso de Tuli Melício da Silva, do povo Koripako, um dos delegados da coordenadoria Nadzoeri, que levou uma semana para se deslocar da comunidade Wainambi, no Alto Rio Içana, até São Gabriel da Cachoeira e, depois, até a comunidade de Cartucho.
“Esse é um instrumento que deve ser usado por nós em diálogo com instituições governamentais, respeitando as características de cada povo. A gente vai entender com eles e eles vão entender com a gente: são dois conhecimentos. Se concordar, pronto: pode trabalhar”, disse. “Antes a comunidade ficava isolada, ficava chato um pouquinho. Agora é uma consulta coletiva”.
No total, foram mobilizados uma média de mil representantes indígenas para discutirem e aprovarem os protocolos de consulta de cada regional, bem como o protocolo geral dos povos do Rio Negro. Isso imprimiu legitimidade institucional ao documento como instrumento de defesa e governança interna das Coordenadorias e da própria Federação dos Povos Indígenas do Rio Negro.
Karollyne Gonçalves, de 16 anos, fez parte da comitiva da Caibarnx e ajudou na representatividade dos jovens. Ela mora em Cucuí e viajou cerca de dez horas até São Gabriel da Cachoeira, como integrante da Associação de Desenvolvimento Indígena Comunitário de Cucuí (Adicc). “Eu acompanhei na minha região as discussões sobre o protocolo de consulta. Para trabalharem nos nossos territórios é necessário que nos consultem. Somos os donos do território indígena”, disse.
Ela reforçou a importância da participação dos jovens nos processos de consulta. “Às vezes a gente não entende muitas coisas como os adultos entendem. Temos outro olhar”, disse.
Articuladora do Departamento de Mulheres Indígenas da FOIRN, Belmira Melgueiro, do povo Baré, participou do encontro como uma das delegadas da Caiarnx e ressaltou a necessidade de as mulheres também serem consultadas.
“Temos uma visão diferente do que nos afeta como mulheres. O desenvolvimento educacional dos filhos e dificuldades na geração de renda são questões que nos preocupam. É mais difícil para os homens entenderem certas realidades. A mulher traz um olhar complementar”, disse.
Lucas Matos, do povo Tariano, e integrantes da delegação da Caimbrn, uma das cinco coordenadorias da Foirn: trabalho conjunto para estabelecer processos de consulta livres, prévios e informados | Ana Amélia Hamdan/ISA
Ela destacou, porém, que é preciso um cuidado diferenciado para garantir a participação das mulheres. “Ainda é difícil mobilizar as mulheres das bases, pois estão sempre envolvidas com os filhos, o marido, as roças”, disse.
Morador de Iauaretê e delegado da Coidi, Lucas Matos da Silva, do povo Tariano, resumiu de maneira bem objetiva o momento. “É importante os indígenas entenderem que o ponto inicial do protocolo é o conhecimento sobre o projeto proposto. Depois podemos ou não aprovar o que pode se realizar.”
Novo governo
O debate sobre a consulta aos povos vem à tona sempre que ocorre mudança de governo, quando há trocas de de cargos e, as pastas passam a ser comandadas por pessoas mais alinhadas aos novos representantes eleitos.
No caso das trocas de órgãos relacionados à políticas para os povos indígenas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), é obrigação do Estado consultá-los, respeitando as suas instituições representativas, suas línguas e costumes. O Ministério dos Povos Indígenas, por exemplo, contou com ampla participação dos movimentos sociais para a indicação ao comando do órgão, que ficou com Sonia Guajajara, eleita deputada federal pelo estado de São Paulo em 2022. Da mesma forma, a ex-deputada federal Joenia Wapichana foi a indicada pelo movimento indígena a ocupar a Presidência da Funai e o advogado Weibe Tapeba, ao cargo de Secretário da Sesai.
É comum, portanto, que cada organização de base e cada povo passe a se organizar internamente para realizar as indicações para as nomeações de cargos que sejam importantes para a gestão da política pública indígena e indigenista. Nesse sentido, o protocolo de consulta dos povos do Rio Negro também orienta o Estado e facilita que comunidades exerçam e exijam seu direito à consulta prévia diante de todo e qualquer ato administrativo que afete suas vidas nesta mudança de governo e outras futuras.
Confira abaixo os principais temas que demandam consulta, de acordo com os povos do Rio Negro
Devemos ser consultados sobre quaisquer medidas e projetos que interfiram e afetem nosso território e/ou no modo de viver dos povos da região, todas as políticas públicas que afetem os povos indígenas da região, sobretudo:
1. Projetos de pesquisa e lavra minerária;
2. Obras de infraestrutura: estradas, hidrovias, hidrelétricas, termelétricas, comunicação etc.;
3. Projetos econômicos que gerem impactos sociais e ambientais: pesca comercial, atividades agropecuárias em larga escala, turismo, extração de madeira, piaçava, etc.;
4. Operações militares e obras do Exército nas comunidades indígenas;
5. Políticas de segurança pública;
6. Instalação de instituições de ensino superior dentro dos territórios indígenas;
7. Atuação e/ou instalação de missões religiosas;
8. Pesquisas, acesso e uso do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, patrimônio material e imaterial com ou sem fins lucrativos;
9. Registros e produção audiovisual;
10. Pesquisas acadêmico-científicas;
11. Quaisquer medidas legislativas municipais, estaduais e federal que afetem nossas vidas e nossos territórios;
12. Criação de municípios nos territórios indígenas;
13. Nomeação do Coordenador da Coordenação Regional da FUNAI Alto Rio Negro e do DSEI Alto Rio Negro;
14. Projetos relacionados a serviços socioambientais e mercado de carbono.
Colaborou Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental na bacia do Rio Negro
Notícias e reportagens relacionadas
Cenas de horror dizem mais sobre os napë, os não indígenas, que sobre esse povo
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo
Neste momento em que muito se fala sobre a tragédia yanomami, há quem atribua as causas do sofrimento desse povo ao seu modo de vida. Sugerem que a fome e a doença são produtos da suposta ineficiência do sistema produtivo indígena, não da economia predatória que há anos vem devorando povos e territórios planeta afora. Ignoram que esse mesmo modo de vida garantiu uma existência abundante por séculos, enquanto o extrativismo não indígena é o verdadeiro produtor da escassez — algo que se vê, por exemplo, nos grandes centros urbanos que se pretendem monumentos da civilização ocidental. Como diria Davi Kopenawa, "o povo da mercadoria" está condenado.
Não é difícil notar a contradição no discurso que imputa aos indígenas a culpa por esta tragédia. Basta observar o que acontece nos lugares cotidianamente consumidos pelo garimpo. Onde há garimpo não há prosperidade. Há pobreza e violência, nada mais. Nesses lugares, enquanto a maioria padece de moléstias como a malária ou é envenenada pelo mercúrio, apenas alguns poucos acumulam riquezas, que são ostentadas bem longe das crateras de onde são extraídas.
Em meio à tragédia, é urgente não perder de vista a beleza desse povo. A beleza das festas reahu, das danças de apresentação. Céu azul, corpos pintados de vermelho, o balé das palhas amarelas. Tampouco perder de vista a beleza da floresta e do conhecimento milenar que ajudou a construí-la e torná-la ainda mais bela. Abelhas comendo no jatobá-roxo, os perfumes do fundo da mata, a majestade das sumaúmas e as fantásticas ilhas de pupunheiras e cacauais. Não podemos perder de vista a beleza dos xamãs e de seus espíritos auxiliares, que contribuem para o equilíbrio cósmico. A beleza da língua yanomami e dos seus cantos, que têm a sutileza de haicais e o ritmo dos cantos dos bichos.
Para os inimigos dos povos indígenas, uma forma de extermínio é a destruição dessa beleza. Pois é por meio da beleza que os yanomamis afirmam a sua humanidade no mundo.
Viver com a floresta é uma arte e requer uma sabedoria que não pode ser fabricada em laboratório. Os yanomamis manejam mais de 160 espécies vegetais silvestres comestíveis, conhecem minuciosamente o comportamento de mais de 80 animais de caça, pescam cerca de 50 tipos de peixes, coletam 30 variedades diferentes de mel silvestre, 11 espécies de cogumelos, dezenas de invertebrados e cultivam mais de uma centena de alimentos, com destaque para a banana, a mandioca, a batata-doce, a taioba, o cará, a cana e o milho.
Davi Kopenawa, com sua perspicácia e inteligência fora do comum, há anos vem nos alertando sobre isso, assim como vem lutando para que os napë (os não indígenas) reconheçam a beleza do seu povo, a sua humanidade.
Leiam as suas palavras em "A Queda do Céu". Assistam à poesia dos moradores da serra do vento em "A Última Floresta". Deixem-se apaixonar por esse povo e por sua maneira própria de criar mundos. A aposta de Davi é que o respeito pelo seu povo só pode nascer da admiração, não da pena ou da comiseração.
Um povo cujas crianças podem nomear mais de duzentos tipos de flores durante uma brincadeira é um tesouro. E é desse tipo de tesouro de que o Brasil e a humanidade precisam.
As cenas de horror que circulam hoje, seguramente, dizem mais sobre quem são os napë do que sobre os yanomamis.
Notícias e reportagens relacionadas
Em entrevista à Folha de São Paulo, Antonio Denarium (PP) equiparou os modos de vida dos indígenas aos de “bichos”
A Hutukara Associação Yanomami (HAY) emitiu nota de repúdio às falas do governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), ao jornal Folha de S. Paulo. Nesta segunda-feira (30/01), o veículo publicou uma matéria em que o parlamentar faz afirmações discriminatórias contra o povo Yanomami.
Nota de repúdio da HUTUKARA associação Yanomami.
— Dário Kopenawa Yanomami (@Dario_Kopenawa) January 30, 2023
Sobre a fala do governador DENARIUM a folha de São Paulo. @antoniodenarium .. @JoeniaWapichana .. @GuajajaraSonia pic.twitter.com/0e9kfyP7VO
Em meio à exposição da crise sanitária ao qual os Yanomami foram submetidos pelo crescimento desenfreado do garimpo, Denarium negou a grave desnutrição vivenciada por comunidades yanomami e afirmou que os indígenas têm que “se aculturar [e] não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”.
Diante da fala carregada de preconceitos, a HAY afirma que é preciso repudiar com veemência a visão colonizadora sobre os povos indígenas do país. Além disso, defendeu o direito dos Yanomami de existir na floresta viva, seguindo seus costumes.
Leia a nota na íntegra:
Nota de Repúdio da Hutukara Associação Yanomami sobre a fala do governador Denarium à Folha de São Paulo
É com enorme indignação que lemos a entrevista do governador Antonio Denarium à Folha de São Paulo publicada no dia de hoje, 30 de janeiro de 2023. Enquanto o povo Yanomami vive uma das maiores crises de sua história, que vem sendo denunciada nos últimos anos pela Hutukara Associação Yanomami, o governador Denarium não só nega a realidade, como defende que os povos indígenas “têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”.
Falas desse tom denunciam o grau de discriminação e preconceitos a que o povo Yanomami estão sujeitos. Nossos modos de vida nos são negados como se fossemos primitivos, incapazes, inumanos. Longe de limitar-se ao discurso políticos, esse pensamento se refletiu em políticas de tendência genocida que foram implementadas sistematicamente nos últimos anos para inviabilizar a manutenção da vida dos Yanomami. Facilitar a entrada de milhares de garimpeiros em nossas Terras Indígenas e desorganizar a assistência à saúde básica são a consequência direta desta noção preconceituosa que o governador Denarium compartilha. Este tem sido cúmplice da tragédia, inclusive ao sancionar leis que, inconstitucionais, tinham a intenção de promover a atividade garimpeira e fragilizar a fiscalização da atividade em Terras Indígenas em Roraima.
É preciso repudiar com veemência a visão colonizadora sobre os povos indígenas do país que os reduz a animais, incapazes, ou qualquer subcategoria de sujeitos excluídos de direitos que devam se submeter aos modos de vida da cidade. Políticas assimilacionistas sobre os povos indígenas não são compatíveis com um Estado Democrático de Direito. Somos sujeitos plenos de direitos, e queremos viver bem com a floresta como viviam nossos antigos como garante o Artigo 231 da Constituição Federal.
O povo Yanomami é um dos mais populosos povos indígenas de recente contato no mundo, e detentores de grande conhecimento ancestral sobre a floresta onde vivem. É nosso direito viver na floresta viva segundo nossos costumes, com saúde e vida.
Notícias e reportagens relacionadas
Protagonismo de indígenas em cargos do governo é novidade histórica. Confira as primeiras ações do movimento indígena no Fique Sabendo desta quinzena
Boas novas da quinzena
“Uma novidade histórica do governo Lula é a política indígena, em vez de indigenista, que será implementada a partir de agora”. A colocação de Márcio Santilli, ativista e sócio fundador do Instituto Socioambiental, reflete o início de um novo momento na política brasileira e na luta socioambiental, marcado pelo protagonismo dos povos indígenas na defesa de suas vidas e seus direitos.
Sonia Guajajara, que já presidiu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), tomou posse como Ministra dos Povos Indígenas, pasta que terá o advogado Eloy Terena como secretário executivo e braço direito de Guajajara. A Funai, que irá integrar o novo Ministério, passa a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas e também será chefiada por uma mulher indígena, a ex-deputada federal Joenia Wapichana. O Ministério da Saúde também ganha representação indígena pela primeira vez. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) será dirigida pelo advogado Weibe Tapeba.
Leia também:
Sonia Guajajara: demarcando terras, demarcando telas!
Joenia Wapichana: a voz indígena na Casa do Povo!
São muitas novidades que colocam em evidência como a política se reinventa para abrir espaço à atuação protagonista dos povos indígenas!
Como primeiro ato da nova política indígena, uma instrução normativa que flexibilizava a exploração de madeira em terras indígenas, permitindo que não-indígenas participassem do manejo, foi revogada. A norma havia sido criada no final do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e apresentava um plano de manejo que podia atender a interesses de madeireiras, que vinham pressionando por isso.
Na mesma semana, a Sesai e a Funai também agiram, enviando uma missão de cerca de 10 dias à Terra Indígena Yanomami (RR e AM) para fazer um diagnóstico sobre a situação da saúde dos indígenas e, a partir daí, traçar as ações para enfrentar a crise sanitária vivida na região. Nos últimos anos, os Yanomami passaram por diversos problemas de acesso aos atendimentos de saúde, agravados pela invasão garimpeira ao território. Profissionais de saúde relatam falta de segurança e vulnerabilidade para continuar os atendimentos.
A visita tomou grande e necessária proporção. O presidente Lula também foi à Terra Yanomami no sábado, 21 de janeiro, junto com um comitê, do qual também participaram Sonia Guajajara, Joenia Wapichana, Weibe Tapeba, a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, o Ministro da Justiça, Flávio Dino e a primeira-dama Janja Silva.
A ida do comitê lançou o olhar da grande imprensa, do governo e dos brasileiros para a situação catastrófica dos Yanomami. A emergência sanitária e socioambiental na terra indígena tem suas raízes na década de 1970, durante a Ditadura Militar, mas se agravou ao extremo ao longo do governo de Jair Bolsonaro.
Em meio à essa crise, Lula exonerou 11 coordenadores de saúde indígena do Ministério da Saúde, enquanto Guajajara demitiu 43 militares que estavam alocados na Funai e que vinham tomando ações contrárias à missão de assegurar direitos aos povos indígenas. Lula também decretou estado de Emergência em Saúde de Importância Nacional e instituiu um Comitê Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária dos Yanomami.
E ainda na primeira semana de trabalho, o Ministério e a Funai mostraram que irão acompanhar de perto e apurar casos de violência contra indígenas, que cresceram nos últimos anos. Um gabinete de crise foi criado por Sonia Guajajara para investigar casos de violência contra povos indígenas que lutam pela demarcação de terras no sul da Bahia. A portaria foi assinada em caráter de urgência depois que 2 líderes indígenas do povo Pataxó foram assassinados a tiros na cidade de Itabela.
Baú socioambiental
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) está celebrando 50 anos de história. Essa é uma das organizações indígenas mais antigas do país. Na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), um dos locais sagrados que simboliza a luta dos povos originários do estado, mais de dois mil indígenas de 11 etnorregiões (Serras, Raposa, Surumú, Baixo Cotingo, Serras, Amajari, Murupú, Tabaio Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi) se reuniram entre os dias 16 e 19 de janeiro.
A organização teve seu marco inicial na década de 1970, quando um pequeno grupo de indígenas decidiu fazer a primeira Assembleia de Tuxauas, na comunidade Barro, na região Surumú. Desde então, os encontros passaram a ser anuais.
Durante estes 50 anos, a luta pelo território da Raposa Serra do Sol foi o momento mais emblemático para o movimento, no qual muitas vidas foram perdidas. O processo de demarcação da terra indígena se iniciou na década de 1970, junto à construção do CIR. Foram quase 30 anos até a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pela homologação e demarcação, que ocorreu em 2008.
Foi em uma das assembleias do Conselho que Joenia Wapichana foi escolhida coletivamente como candidata a deputada federal, tendo sido a primeira mulher indígena a ser eleita para o cargo. Wapichana foi a primeira advogada indígena da história a se pronunciar no plenário do Supremo Tribunal Federal durante a batalha jurídica pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Atualmente, o CIR representa 261 comunidades e defende os direitos de mais de 70 mil indígenas de 10 povos. A organização atua em diversas áreas como saúde, segurança, educação, cultura, gestão ambiental e desenvolvimento sustentável.
Leia também:
Conselho Indígena de Roraima celebra 50 anos exaltando resistência coletiva e Raposa Serra do Sol
Socioambiental se escreve junto
Neste mês de janeiro, a Agência Pública promove a 2ª chamada da 15ª edição de seu programa de microbolsas para repórteres indígenas de todo Brasil.
Interessados podem inscrever pautas investigativas para realizar reportagens sobre as ameaças e agressões às terras indígenas e as comunidades que nelas vivem. As 5 propostas vencedoras ganharão uma bolsa de R$ 7.500 para produzir a reportagem, com mentoria e edição da Pública. As inscrições devem ser feitas até o dia 31 de janeiro de 2023 por meio deste formulário.
“Estamos em busca de pautas que abordem diferentes aspectos dessas ameaças às terras e povos indígenas, como: invasões dos territórios; roubos e destruição do patrimônio natural nas terras indígenas; corrupção, ações e omissões do poder público e de setores empresariais relacionadas a esses crimes; violências praticadas contra populações indígenas em luta por seus direitos territoriais; testemunhos e informações inéditas que comprovem a autoria de ações de esbulho e violência registradas na história recente etc”, afirma o regulamento.
Durante a 1ª chamada, que aconteceu no ano passado, foram selecionados comunicadores indígenas do Amazonas, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Assista ao vídeo e Fique Sabendo:
Notícias e reportagens relacionadas
Exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação convida visitantes a mergulhar na memória, na luta e no espírito do patrimônio linguístico e cultural dos povos originários
Na parede do primeiro andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, um texto da artista, ativista e comunicadora Daiara Tukano demarca a potência da palavra e o enorme patrimônio que a diversidade linguística brasileira constitui. “Terra é viva, língua é memória, palavra tem poder, palavra tem espírito”, escreve. “Nossas línguas são território. Com as palavras desenhamos mundos, criamos alternativas para reflorestar os pensamentos. Precisamos ouvir as boas palavras para que elas possam nos mover”.
É justamente isso que propõe a exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação, aberta ao público até 23 de abril de 2023: convidar os visitantes a abrirem a mente e ouvirem as histórias, palavras e vidas indígenas com mais respeito. Confira o vídeo:
“Fundamental é entender que o conhecimento, o pensamento, nasce da diversidade,” sublinha Daiara, curadora da mostra. “Nós estamos em um único planeta, enfrentando [uma das] maiores extinções em massa da história, as mudanças climáticas… [Tudo] depende de a gente aprender a pisar [no mundo] de uma maneira diferente, acreditar na vida e permitir a existência dos povos indígenas”.
A mostra se debruça sobre as mais de 175 línguas faladas hoje pelos 305 povos indígenas do Brasil, resistentes a cinco séculos de apagamento das culturas e cosmovisões originárias. Estima-se que, antes da chegada dos portugueses, havia neste território mais de cinco milhões de habitantes, que falavam aproximadamente mil línguas diferentes. Mais do que isso, mergulha nos múltiplos universos e formas de vida que tendem a se perder toda vez que uma língua desaparece.
Florestas de línguas, artefatos, imagens históricas e obras exclusivas apresentam aos visitantes os universos e saberes indígenas 📷 Ciete Silvério
Nhe’ẽ Porã marca o lançamento no Brasil da Década Internacional das Línguas Indígenas, declarada pela ONU para os anos de 2022 a 2032. A exposição tem apoio da Unesco, do Instituto Socioambiental (ISA), do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), do Museu do Índio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Quem visita Nhe’ẽ Porã encontra obras de mais de 50 profissionais indígenas, entre artistas visuais, fotógrafos, cineastas, comunicadores e pesquisadores – nomes como Denilson Baniwa, Tamikuã Txihi, Jaider Esbell, Paulo Desana e a própria Daiara Tukano, que, além de pensar todo o espaço expositivo, também adicionou uma pintura original ao corpo da mostra.
O acervo inclui artefatos, petróglifos e peças de artesanato, imagens e documentos históricos, entrevistas em vídeo e estações interativas onde é possível conhecer as árvores linguísticas que resistem hoje no Brasil e ouvir histórias, cantos e discursos em dezenas de línguas indígenas.
Há, ainda, peças criadas exclusivamente para a exposição, como uma animação que mostra a queda no número de línguas faladas no país entre 1492 e os tempos atuais em razão do massacre cometido pelos colonizadores, conflitos entre etnias e impactos de obras de infraestrutura, narrado por Daiara; além de mapas que registram a distribuição geográfica das línguas indígenas não só no Brasil, mas em todo o continente americano.
“[A exposição] não foi feita para se ver uma vez só”, pontua Daiara. “Ela é feita para se descobrir, para ter várias abordagens e vai provocar a todos. Toda vez que você voltar, vai achar outros caminhos para navegar, aprender e pensar”.
Muito além dos objetos expostos, a mostra se estrutura ao redor de árvores, constelações, pássaros e até um rio de palavras, que percorre toda a área, sobe pelas paredes, dá voltas e deságua em uma chuva linguística que, por sua vez, alimenta novamente o rio. “Demos um jeito de transformar um espaço quadrado em um circular, que atravessa uma série de narrativas e memórias”, Daiara adiciona.
Nada é isolado; cada áudio, imagem e artefato é contextualizado em relação aos tempos históricos, momentos políticos e tensões sociais. “Não é apenas falar em sons de palavras, estamos falando de pensamentos e como eles se expressam de várias formas”, a curadora avalia.
Chamam atenção, por exemplo, a exploração das diferentes plataformas onde os povos indígenas elaboram e registram narrativas sobre si e o mundo, do livro ao Youtube, bem como a reflexão sobre a relação da língua portuguesa, imposta pelos colonizadores, diante das línguas indígenas.
Em vídeo falado todo em yanomami, o xamã Davi Kopenawa resume: “a língua de vocês é doce, mas também é uma epidemia”.
As boas palavras - significado de Nhe’ẽ Porã em Guarani Mbyá - não necessariamente são agradáveis. “A gente fala de tristeza, de violência, de dores, lutos e mentiras”, diz Daiara. A exposição, porém, vem para compartilhar as vivências indígenas e marcar a existência e importância de lideranças históricas e da nova geração de guerreiros e guerreiras através do mais rico – e frequentemente esquecido – patrimônio: suas línguas e cosmovisões.
“Boas palavras são aquelas que curam”, a curadora finaliza. “[Esperamos] que elas possam ser recebidas profundamente no coração”.
Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação
Quando: Até 23 de abril
Onde: Museu da Língua Portuguesa - Estação da Luz, São Paulo
Horário: De terça-feira à domingo, das 9h às 16h30
Ingressos: R$20,00, com entradas gratuitas aos sábados
Notícias e reportagens relacionadas
Lideranças contaram história da demarcação da Terra Indígena para os mais jovens, refletiram sobre os retrocessos no governo Bolsonaro e apontaram caminhos para o futuro
À beira do Lago Caracaranã, localizado no município de Normandia, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cerca de dois mil indígenas de 11 regiões de Roraima se reuniram para celebrar os 50 anos de “união, luta, resistência e conquistas” do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Com duração de quatro dias, de 16 a 19 de janeiro, a festa contou com a presença de importantes lideranças, conhecedoras da história dos 50 anos de atuação do CIR – uma “biblioteca viva”.
Líderes indígenas das 11 coordenações que já passaram pelo CIR relembraram a intensa disputa com fazendeiros invasores, casos de violência e a luta pela retomada da terra. Finalmente, exaltaram a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, demarcada em 1998 e homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 15 de abril de 2005, durante seu primeiro mandato.
Os indígenas de Roraima também refletiram sobre os desafios vividos nos últimos quatro anos com o governo de Jair Bolsonaro (PL) e se propuseram a traçar novas metas com a chegada do terceiro governo Lula.
Edinho Batista, atual coordenador geral do CIR, afirmou que, entre as prioridades, estão a discussão da proteção dos territórios, a produção sustentável em comunidades indígenas e o fortalecimento do uso de energias renováveis – em contraposição ao impacto negativo de grandes hidrelétricas.
“Temos propostas para enfrentar a mudança climática, pois é uma questão que prejudica o mundo inteiro. Temos a esperança de salvar o planeta através das demarcações de Terras Indígenas e proteção das florestas e para isso, claro, é preciso revogar todas as portarias e decretos de Bolsonaro que facilitam as invasões”, explicou.
No primeiro dia de seu terceiro mandato, Lula assinou uma série de decretos e medidas que retomam políticas públicas socioambientais. Saiba mais
Resistência de longa data
Com 42 anos, Edinho é mais jovem que a própria organização e afirma ser filho das políticas feitas pelo CIR, como o “Vai ou racha” e “Uma vaca para o índio”. (entenda estas políticas abaixo)
“Eu não tenho a idade da organização, mas sinto que há uma raiz profunda que ninguém nunca pode arrancar. Sinto que é uma árvore que cresce para dar sombra para outras populações e gerações que temos pela frente”, descreveu.
Segundo ele, há outros “campos de batalha” onde o movimento indígena de Roraima pode aportar. “Os povos indígenas têm uma contribuição histórica, que pode ser usada para ajudar a reconstruir o país após esses quatro anos no escuro com políticas que tentavam exterminar a nós, os indígenas”, declarou.
Edinho classificou como “desafio” viver sob as políticas do governo Bolsonaro e afirmou que as ameaças serviram como “uma injeção, um impulso para combater a política genocida”.
O período de 2019 a 2022 também preocupou Jacir de Souza, tuxaua macuxi que coordenou o CIR entre 2001 e 2005. Durante seu mandato, ele chegou a percorrer outros países expondo a crise na Raposa Serra do Sol e explicando a diversas autoridades a necessidade de demarcação. Nos últimos quatro anos, ele temeu pelos povos de outras terras.
“Antes mesmo do Bolsonaro entrar em campanha, ele já dizia que se ganhasse não demarcaria nenhuma Terra Indígena. E, com ele, as pessoas se sentiram liberadas para garimpar ilegalmente. Esses quatro anos não teve nada de bom para os povos indígenas, só invasões, como aconteceu com a Terra Yanomami com mais de 30 mil garimpeiros. Aqui, na Raposa Serra do Sol, como já fazíamos o trabalho de impedir a entrada, conseguimos evitar as invasões”, explicou.
Com o fim do governo Bolsonaro, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e nomeação de Joenia Wapichana como presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Jacir espera que outras terras sejam demarcadas e percebe que tem “indígenas trabalhando para indígenas dentro do governo”.
A insegurança de viver em uma terra sem demarcação também foi lembrada por Desmano de Souza, líder macuxi que foi vice-coordenador do CIR de 1997 a 2000. Filho de indígenas brasileiros, ele nasceu na Guiana Inglesa (hoje Guiana). Mas, aos 14 anos, seu pai retornou a Roraima após sofrer perseguição política no país vizinho. Ele descreve que fugiu de uma guerra e, ao chegar na Raposa Serra do Sol, em 1969, se deparou com um novo cenário de guerra dos fazendeiros contra os seus parentes indígenas.
“Em 1969 ainda não estava tão agressiva a situação como se tornou a partir de 1987. Eu lembro que quando cheguei, os fazendeiros já não nos deixavam mais fazer nossos retiros e nem ser vizinhos deles. Quando esquentou a luta dos fazendeiros contra o meu povo, eu já era adulto e participei mesmo com alguns dos meus irmãos me dizendo para não me envolver”, relembrou.
“Vem, liderança, vem festejar”
Durante os intervalos nas falas de lideranças do CIR, era possível visitar tendas com artesanatos à venda, comprar comida produzida pelos indígenas e se refrescar no Lago Caracaranã. No entanto, as apresentações de canções autorais de forró dominavam as atenções dos presentes na festa. Os indígenas dançavam e cantavam sobre orgulho da própria cultura, paz e com mensagens de militância indígena.
“Eu vi os jovens dançando e fiquei pensando: ‘o que seria aqui, no Lago Caracaranã, se não tivesse sido feita a demarcação?’. Como nós ganhamos, aproveitem, jovens, dancem e brinquem”, disse Desmano durante seu discurso.
“A portaria já foi assinada / Renan Calheiros é quem assinou / É a vitória do povo indígena (…)/ Vem, liderança, vem festejar”, cantavam os indígenas um trecho de uma das canções, que fala da demarcação da Raposa Serra do Sol em 1998.
À época, Renan Calheiros era ministro da Justiça e assinou o documento declarando a terra como posse permanente dos povos indígenas. A medida se tornou uma longa batalha judicial com o governo de Roraima e o Supremo Tribunal Federal (STF), que só chegou a uma decisão em 2009, cinco anos após Lula assinar a homologação.
“Vai ou racha” e “Uma vaca para o índio”
Lideranças de comunidades indígenas em torno do CIR começaram a realizar grandes encontros anuais para tomadas de decisões a partir de 1971, ano da primeira Assembleia dos Tuxauas, que ocorreu na comunidade do Barro, na região do Surumú. Seis anos depois, em 1977, acontece a histórica assembleia do “Vai ou Racha”.
Nela, as lideranças decidiram abolir bebidas alcoólicas das comunidades e fortalecer a defesa de suas terras. A decisão ocorreu após anos de conflitos pelo território da Raposa Serra do Sol, que a cada dia se tornavam mais violentos e sangrentos.
Muitos indígenas foram expulsos de suas próprias casas ou foram assassinados tentando defender o direito de permanecer na terra. Abolir o álcool era crucial para manter os indígenas sóbrios e evitar que invasores os manipulassem.
Já em 1980, o projeto “Uma vaca para o índio” chega às comunidades para incentivar a criação comunitária de gados. O modelo, que propõe uma rotatividade de animais nas comunidades, funcionou tão bem que segue em marcha até os dias de hoje.
De acordo com a secretária-geral do movimento de mulheres do CIR, Maria Betania Mota de Jesus, a criação comunitária de gado é o principal projeto na linha de sustentabilidade, sendo, inclusive, replicado por povos indígenas de outros estados.
“As pessoas dizem que ‘tem muita terra para pouco índio', mas não tem, a verdade é que há muitos indígenas para pouca terra. Nós vamos, cada vez mais, falar sobre como os povos indígenas precisam ser ouvidos”, falou.
“Este ano de 2023 já chega com muitas mudanças. As nossas lideranças são estratégicas e por isso há muitas organizações de outros estados que têm o CIR como referência”, disse, fazendo referência à troca de governo e à atuação do CIR.
Uma das lideranças de mulheres do povo Macuxi, Maria Betania afirmou que os últimos quatro anos foram um desafio, mas pontuou que o mandato de Joenia Wapichana (Rede) como deputada federal foi essencial e estratégico para proteger homens e mulheres indígenas.
“Graças a Deus, havia uma mulher indígena para nos representar nesses quatro anos de governo Bolsonaro. Com muita força e capacidade, ela soube criar estratégias e trazer pessoas para o nosso lado. Não foi fácil para o Bolsonaro, porque ela fez a diferença lá e foi uma referência para todas as mulheres do Brasil. Joenia Wapichana mostrou como o povo indígena é unido”, exaltou Maria Betania.
Com Lula como presidente do Brasil, ela afirma que não é “hora de os indígenas cruzarem os braços”, mas sim de poder participar e acompanhar de perto as tomadas de decisões que os envolvem nos próximos anos.
O aniversário do CIR contou com os povos da Raposa, Surumú, Baixo Cotingo, das Serras, Amajari, Murupú, Tabaio, Wai Wai, Alto Cauamé, Serra da Lua e Yanomami. Além disso, parceiros do Conselho estiveram presentes durante a celebração.
Carregando