Deputada indígena Célia Xakriabá foi alvo de preconceito em sessão realizada de madrugada, no último dia do semestre legislativo. Presidente Lula tem 15 dias úteis para sancionar ou vetar projeto
Com apoio do centrão, de ruralistas e bolsonaristas, o plenário da Câmara aprovou, na madrugada desta quinta-feira (17/07), o que é considerado o maior retrocesso ambiental no país desde pelo menos os anos 1980.
O texto principal do projeto de lei (PL) 2.159/2021 foi aprovado por 267 votos a 116 (veja como votou cada parlamentar). O PT, PSOL, Rede, PRD, PDT, a maioria e o governo orientaram contra. O PSB não orientou sua bancada. Todos os demais partidos, oposição e minoria defenderam a proposta. A votação foi conduzida pelo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).

O projeto foi aprovado pelo Senado em maio. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem agora até 15 dias úteis para vetar ou sancionar a nova lei. Não há informação de quando exatamente ele irá fazer isso.
O PL acaba com o licenciamento ambiental como é conhecido hoje, abrindo caminho para uma desregulação em larga escala da política ambiental no país.
A votação pode colocar na berlinda a pretensão do Brasil de ser protagonista nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas a pouco mais de quatro meses da COP 30, conferência internacional sobre o assunto que irá receber representantes de todo mundo em Belém (PA).
"A aprovação de um projeto que amplifica as possibilidades de devastação ambiental somada aos ataques racistas e de silenciamento de uma parlamentar indígena que atravessaram durante toda a sessão, demonstraram a que o Congresso Nacional está disposto: à destruição, e não a um projeto de nação ambientalmente equilibrada que respeite sua pluralidade de povos e sua diversidade. A judicialização é certa, mas já perdemos enquanto povos brasileiros, sociedade e democracia", lamentou Alice Dandara de Assis Correia, advogada do Instituto Socioambiental (ISA).
Ouça: quais são os impactos do PL da Devastação?
“É uma tragédia para nossa política ambiental, um dia que lembraremos para sempre: a marca do descontrole ambiental no país”, disse Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
“O presidente Lula, com certeza, vai vetar esse PL da devastação”, afirmou o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ). Ele e o presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, Nilto Tatto (PT-SP), pediram mais mobilização contra o projeto num vídeo postado nas redes sociais após a votação.“Precisamos do apoio da sociedade para fazer com que o presidente Lula tenha as condições para vetar o projeto”, acrescentou Tatto.
Apesar de grande oposição da sociedade civil, de movimentos sociais, cientistas, procuradores e da área socioambiental do governo, ministros como os da Agricultura, Carlos Fávaro, de Minas e Energia, Alexandre Silveira, dos Transportes, Renan Filho, e da Casa Civil, Rui Costa, manifestaram apoio ao texto nos últimos meses.
Desrespeito e preconceito
A deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) foi desrespeitada e alvo de manifestações preconceituosas de parlamentares ruralistas e bolsonaristas após criticar duramente o projeto. A parlamentar queixou-se várias vezes a Motta de que suas questões de ordem não estavam sendo respondidas e que teve sua vez de falar desconsiderada.

Os deputados Coronel Fernanda (PL-MT), Kim Kataguiri (União-SP) e Rodolfo Nogueira (PL-MS) mencionaram de forma irônica um “pavão”. Célia estava usando um cocar, como faz em geral. Kataguiri também usou a palavra “tribo” para se referir a deputada e a comunidades indígenas. Já o deputado Sargento Gonçalves (PL-RN) referiu-se a ela como “índia”. Ambas as palavras são pejorativas.
A deputada aproximou-se de Kataguiri para responder aos ataques e foi cercada por outros parlamentares. Diante da situação, pouco depois deixou o plenário.
“Durante a votação do PL da Devastação, fui atacada de forma racista por parlamentares que zombaram do meu cocar, tentando me deslegitimar enquanto parlamentar e mulher indígena”, afirmou hoje pela manhã em um post no Instagram.
Assista ao vídeo:
“Infelizmente, essa não foi a primeira nem a segunda vez que sou alvo desse tipo de violência dentro do Congresso Nacional. O que me indigna é perceber como o racismo segue sendo naturalizado nesses espaços de poder. Durante os ataques, o presidente da Casa se manteve em silêncio. Não aceitarei isso calada”, continuou.
Ao final da sessão, o presidente da Câmara disse não concordar com “nenhum tipo de violência, seja ela física, seja ela de gênero, seja ela política”, mas não repreendeu os ataques direcionados especificamente a Célia nem se solidarizou com a parlamentar.
‘PL da Devastação’
Apelidado de “mãe de todas as boiadas” e “PL da Devastação” em virtude da amplitude de suas possíveis consequências, o projeto dá ao governo a possibilidade de estabelecer ritos simplificados e acelerados para liberar obras e atividades econômicas de grande impacto ambiental, sem nenhum critério previamente definido, com base em pressões políticas, a chamada Licença Ambiental Especial (LAE).
Também banaliza a dispensa de licenças e a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), o chamado autolicenciamento, tornando exceção o licenciamento convencional, com análise de impactos prévios e controle dos órgãos ambientais. Pelo procedimento, o empresário pode tirar uma licença preenchendo um formulário na internet e se comprometendo de “boa-fé” que irá seguir algumas regras (saiba mais no quadro ao final do texto).
O Supremo Tribunal Federal (STF) já têm decisões contra algumas das determinações do PL, como a LAC para empreendimentos de médio porte e a dispensa de licenciamento para a agropecuária. Isso foi ignorado pela maioria dos deputados. Há risco, portanto, de uma eventual nova lei ser questionada na Corte.
Insegurança jurídica
Integrantes da bancada ruralista, como o próprio relator, deputado Zé Vítor (PL-MG), admitiram que vários dispositivos da nova lei deverão ser alvo de ações judiciais, mas se recusaram a exclui-los do texto. A atitude vai contra um dos principais argumentos do grupo: a de que a nova legislação traria mais segurança jurídica.
“A gente está muito apreensivo“, disse o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Rodrigo Agostinho, em entrevista à reportagem do ISA. “Identificamos mais de 40 pontos muito complicados no PL e que vão causar insegurança jurídica, inclusive no setor empresarial”, complementou.
Ele reforça o argumento de que os principais problemas do licenciamento no país são os estudos mal feitos pelas empresas e a desestruturação dos órgãos ambientais. Agostinho informa que no órgão hoje há apenas 200 servidores para analisar mais de 4 mil processos.
“O que nós estamos propondo é uma atualização, uma racionalização dos processos de licenciamento ambiental”, defendeu. O que não há espaço é para burocracia e para questões ideológicas e subjetivas”, disse Zé Vítor. Ele negou as principais críticas feitas ao projeto, como a de que ele vai provocar mais desmatamento e de que vai enfraquecer os controles sobre empreendimentos de impacto socioambiental significativo, como a construção de barragens de rejeitos minerais.
Análise produzida pelo ISA mostrou que 85% dos empreendimentos de mineração seriam autorizados por licenças simplificadas, segundo o texto aprovado agora. Outra análise da organização mostrou que cerca de três mil áreas protegidas seriam ameaçadas e uma extensão do tamanho do Paraná pode vir a ser desmatada se nova lei não for vetada.
Manobras
Motta foi criticado por seguir em ritmo acelerado com a votação de um tema tão complexo e controverso até cerca de 3h30 da manhã, num plenário já esvaziado, depois de mais de 10 horas de debates e votações de outras matérias.
A votação também foi facilitada por manobras regimentais do deputado. Ele autorizou que os parlamentares pudessem votar de casa em todas as sessões da semana, reduzindo a possibilidade de debate e o desgaste na discussão de pautas polêmicas, como é o caso do licenciamento ambiental.
A medida não é comum, sobretudo na última semana do semestre legislativo, quando se acumulam matérias mais controversas para votação que em geral exigem presença física no plenário. Na sexta (18), começa um recesso legislativo “branco” (informal) até o início de agosto.
Outra medida temporária de Motta que reduziu a possibilidade de debate foi a redução do número de destaques (emendas que podem ser apresentadas em plenário) dos maiores partidos, o PT e o PL, de quatro para dois. De acordo com Motta, a ideia seria ajustar a prerrogativa à configuração dos blocos partidários formados para a última eleição da Mesa da Câmara.
Já no início da noite, duas notícias esquentaram o clima no plenário. A primeira foi a da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes de derrubar a decisão do Congresso que suspendeu o decreto do governo que aumentou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A segunda foi a de que o presidente Lula decidiu vetar o aumento no número de deputados federais de 513 para 535, deixando o ônus político de derrubar o veto com o Legislativo.
O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE) disse que tentou negociar até o início da noite, junto com a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, o adiamento da votação para agosto, para que a negociação dos pontos mais controversos do PL do licenciamento ambiental pudesse prosseguir. “Não foi possível por várias razões, tanto pela questão de conteúdo, cuja negociação não foi concluída, como pelos fatos que se sucederam hoje”, afirmou.
A votação foi iniciada pouco antes da meia noite. Partidos de esquerda apresentaram uma lista de questões de ordem para tentar paralisar a votação, questionando tanto as condições da sessão (como a possibilidade de votação remota quanto o horário avançado), quanto a inconstitucionalidade de vários dispositivos. Motta rejeitou uma a uma. Diversas entidades empresariais, como Fecomercio, PNBE e Firjan, também defenderam o adiamento da votação, sem sucesso.
Quais os principais pontos do novo relatório do PL do Licenciamento e suas consequências?
Licença especial A proposta estabelece um rito simplificado para “atividades ou empreendimento estratégicos” definidos pelo Conselho de Governo, ainda que a iniciativa "seja utilizadora de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente". O texto diz que o rol dessas atividades será definido por decreto posterior. Com a medida, qualquer autoridade licenciadora poderia conceder a LAE mediante condicionantes determinadas por ela própria.
Mata Atlântica O PL permite que áreas de mata primária, secundária e em estágio médio de regeneração – justamente as porções mais maduras e estratégicas do bioma – possam ser suprimidas sem análise prévia dos órgãos ambientais estaduais ou federais. A mudança abre brechas para que qualquer município, mesmo sem estrutura técnica, plano diretor ou conselho de meio ambiente, possa autorizar o desmatamento dessas áreas. A decisão retira garantias históricas de proteção e ameaça diretamente os 24% restantes da cobertura original da Mata Atlântica, especialmente os 12% restantes de florestas maduras.
Autolicenciamento A Licença por Adesão e Compromisso (LAC), pela qual qualquer pessoa consegue automaticamente a licença ambiental preenchendo um formulário na internet, torna-se a regra, e o licenciamento convencional, com análise prévia do órgão ambiental, a exceção. O problema é que a autorização não vai valer apenas para empreendimentos de pequeno porte e potencial poluidor, mas também para os de médio porte e potencial poluidor.
Dispensa de licenças A proposta concede de antemão isenção de licenciamento para 13 atividades e empreendimentos econômicos, como agricultura, pecuária, “manutenção e ao melhoramento da infraestrutura em instalações preexistentes”, sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário.
Estados e municípios A proposta concede poder quase ilimitado para esses entes da Federação criarem sua própria lista de isenções de licenciamento. Isso pode gerar confusão regulatória, insegurança jurídica e uma “guerra ambiental” entre quem libera mais e flexibiliza mais para atrair investimentos.
Áreas protegidas Terras Indígenas e territórios quilombolas cuja regularização não foi concluída não seriam consideradas para efeitos do licenciamento de empreendimentos e atividades econômicas que os impactem. As Unidades de Conservação só serão consideradas se o impacto for direto. No caso dos quilombos, mais de 80% dos territórios com processos de titulação abertos não seriam levados em consideração para impactos de licenciamento, pois não contam com seus territórios titulados. Cerca de 32% dos territórios indígenas com processos de reconhecimento iniciados podem ser afetados.
Condicionantes O PL pretende isentar empreendimentos privados de cumprir as chamadas “condicionantes ambientais”, jogando a conta dos seus impactos para a população e os cofres públicos. As condicionantes previstas no licenciamento são as obrigações de prevenção, redução e reparação de impactos socioambientais.
Renovação automática O PL permite a qualquer pessoa interessada renovar automaticamente sua licença apenas preenchendo uma declaração na internet, sem nenhuma análise dos órgãos ambientais. Se as condicionantes não forem cumpridas, o empreendedor não precisa dar satisfação a ninguém.
Bancos O PL impede que os bancos sejam punidos por crimes e danos ambientais cometidos por empreendimentos e empresas que eles financiam. Isso ameaça a norma que proibiu crédito bancário para desmatadores.