Atividade incentivou debate sobre a influência humana na configuração de paisagens antropogênicas na região
Entre 27 de outubro e 10 de novembro de 2025, a comunidade de Boca da Estrada, no Médio Rio Tiquié (São Gabriel da Cachoeira – AM), sediou a oficina de Manejo das Capoeiras e da Sorva. A atividade contou com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e dos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs) do Tiquié, reunindo estudantes, professores, artesãos e lideranças para fortalecer práticas indígenas de manejo e discutir estratégias de uso sustentável das capoeiras e da sorva (Couma utilis) — árvore utilizada na produção dos bancos tukano (kumurõ).
A programação envolveu visitas a capoeiras, identificação de plantas, elaboração de desenhos de perfis das árvores indicadas em categorias de uso e manejo, proporcionando um rico debate sobre a influência da ação humana na configuração de paisagens antropogênicas nesta região.
Manejo das capoeiras
As capoeiras são áreas retomadas pela floresta após o período de uso agrícola. Estas áreas integram ambientes que sustentam o próprio sistema agrícola, uma vez que as plantas cultivadas dependem de solos ricos em fertilidade, que em suma só podem ser restaurados a partir deste processo de reversão da floresta novamente.
Na agricultura indígena do Rio Negro, ao contrário do modelo ocidental, as áreas produtivas não são utilizadas até a sua exaustão: quando a produtividade diminui, a área é deixada para se recuperar, visto que também existe uma série de cuidados que favorecem a regeneração de árvores úteis e funcionais nestes sítios manejados.
Nesse processo a floresta retoma essas áreas, e um conjunto de espécies características de cada estágio de sucessão renasce, cresce e acaba por formar uma nova floresta, revigorando o solo e garantindo roças produtivas ao longo de gerações.
Durante a oficina, os participantes sistematizaram conhecimentos locais e criaram classificações para os estágios de sucessão — das capoeiras novas (Wiakaro Wimaro) às mais antigas, com árvores grossas similares às da mata primária (Buhku Wiakaro).
As conversas destacaram que o manejo cuidadoso, além de evitar a degradação do solo e da própria floresta regenerante, mantém as características do sistema agrícola produtivo e, a depender do tipo de manejo de plantas úteis e funcionais, pode tornar esses ambientes ainda mais ricos.
As visitas às áreas de cultivo também mostraram desafios atuais, entre eles a manutenção de algumas práticas tradicionais que asseguravam a produtividade nestes ambientes após sucessivos ciclos de cultivo. Mudanças de hábitos associadas a novas tecnologias têm levado ao uso excessivo de algumas capoeiras e causado o distanciamento das áreas produtivas em relação às comunidades, levando muitas vezes a uma situação de escassez ou raridade de ocorrência de plantas úteis e funcionais, podendo resultar na degradação de algumas dessas antigas capoeiras, a depender dos cuidados considerados durante o período de cultivo agrícola.
A oficina resultou na avaliação de seis capoeiras em diferentes estágios de crescimento e estados de conservação no entorno da comunidade de Boca da Estrada, onde predominam povos de língua Tukano Oriental e Hüpda.
Algumas destas capoeiras mais antigas apresentavam boas condições de solos e presença de plantas úteis que haviam sido cultivadas e cuidadas pelos antigos donos. Estas foram mantidas nestes ambientes a partir da proteção, plantio de mudas e outros tipos de zelos que favoreceram o seu estabelecimento. Enquanto outras capoeiras apresentavam sinais de exaustão, evidenciados pelas características dos solos e da estrutura e composição de plantas. Conforme observado, ambientes de caatinga amazônica – tattahboa – são mais vulneráveis por apresentar solos mais arenosos e menos estruturados.
Os estudantes registraram cerca de 63 espécies de plantas, sendo posteriormente classificadas em 10 categorias de manejo que, em sua maioria, poderiam favorecer o seu estabelecimento nas áreas de capoeiras após os períodos de cultivo. Entre estas 10 categorias de manejo identificadas e traduzidas com o apoio de AIMAS, alunos e professores estavam: 1. corte, 2. manejo de rebrota, 3. cultivo, 4. dispersão de sementes, 5. corte de casca, 6. proteção, 7. coleta, 8. derrubada, 9. poda de galhos e 10. não manejada.
A proposta da oficina foi sensibilizar os comunitários sobre a importância dos cuidados com o manejo das capoeiras, enfatizando os conhecimentos dos agricultores mais experientes e considerando os limites da resiliência destes ambientes, evitando a degradação dos solos e favorecendo a permanência de plantas que apresentam usos específicos.
Os alunos e professores compreenderam a importância em atribuir categorias às plantas, uma vez que o manejo específico dessas categorias pode definir a sua permanência nestes sistemas, tornando as capoeiras mais diversas e sustentáveis.
Sorva: espécie sensível e central para o artesanato
A discussão sobre o uso da sorva (Couma utilis) na produção dos bancos kumurõ para comercialização retomou antigos debates sobre sua sustentabilidade. A sorva apresenta importância cultural para os povos rionegrinos, principalmente por ser a principal madeira utilizada na confecção dos bancos.
Em oficinas realizadas em anos anteriores, alguns fatores que limitam a sua regeneração e ocorrência em florestas mais antigas já haviam sido identificados, resultando em situações de raridade em algumas localidades ao longo desta região. Segundo estudos realizados pelo consultor Marcus Schmidt junto com a equipe de assessores do ISA na região do Rio Negro, a espécie apresentou situação desfavorável à regeneração natural, requerendo mais atenção e cuidados, aspectos que levaram à elaboração de um plano de manejo, de modo a garantir a sua continuidade entre o sistema produtivo.
Nesse sentido, a oficina de produção de bancos kumurõ e manejo da sorva, além de constituir um encontro de formação de novos artesãos permitiu que os participantes revisassem as estratégias definidas no plano de manejo: o plantio de mudas em roças; o uso de madeiras alternativas; a proteção de mudas regenerantes em capoeiras; e o monitoramento e proteção de matrizes que servem como porta sementes.
Nas iniciativas passadas ligadas ao manejo da sorva, o plantio de mudas já foi experimentado e apesar de algumas experiências positivas não é uma tarefa simples, como relatou o mestre artesão Celestino Azevedo, de Pirarara Poço. Ele conta que fez diversas tentativas até obter sucesso transplantando plântulas pouco enraizadas e geralmente dispersas por animais ao invés de plantar as sementes.
A região carece de um levantamento atualizado das populações de sorva. Apesar de algumas experiências positivas em relação ao plantio não se sabe a situação atual das populações de sorveira no Tiquié, ao que os participantes sugeriram algumas bolsas para jovens pesquisadores, maior envolvimento dos artesãos no plantio e integração da sorva às próprias áreas de roça e capoeiras.
Para a formação dos jovens artesãos foram usados dois pés de sorva, dos quais resultaram mais de 30 bancos. Embora o foco desta oficina tenha sido a produção, os artesãos vêm atualmente discutido com o departamento de negócios da FOIRN os custos e a viabilidade econômica da atividade. Nesse sentido, as estratégias de manejo propostas nas oficinas podem ser uma alternativa interessante no sentido de agregar valor aos produtos e reduzir a pressão sobre o recurso. A sugestão de Marcus Schmidt é de que “toda ação de produção, com finalidades comerciais, deve estar conectada às ações de manejo”.
Integração entre escola, comunidade e território
Os debates da oficina mostraram que o manejo ambiental envolve também a transmissão de conhecimento e o fortalecimento cultural. Benzimentos, narrativas e história de ocupação do território emergiram como parte essencial do cuidado com a roça e com a floresta. Como disse a AIMA Oscarina Caldas, “os benzimentos são como adubo para nós; sem eles, a roça não produz direito”.
Os participantes da oficina contam que os conhecimentos tradicionais devem ser transmitidos nas “Casas de Saber” (vulgarmente chamadas de malocas), motivo pelo qual a comunidade pretende submeter um projeto ao Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN) para a construção de uma dessas casas na área da comunidade.
Artesanato, economia e uso sustentável
Paralelamente à oficina de capoeiras e formação de jovens artesãos aconteceram outras atividades que também mobilizaram as mulheres da comunidade. Elas organizaram uma oficina de cerâmica – já que a feitura dos bancos é uma atividade exclusivamente masculina – e moradores da comunidade de Nova Esperança, vizinha a Boca da Estrada, promoveram uma oficina de cestaria Hüpda, utilizando-se da coleta de cipós e outros materiais.
Uma agenda contínua de cuidado com o território
As oficinas tiveram grande participação da comunidade, envolvendo estudantes, professores e artesãos. Além de evidenciar a demanda por ações integradas, esse tipo de iniciativa demonstrou que as ações de manejo são mais do que eventos pontuais: elas são parte de um processo contínuo de cuidado com a terra, segundo a fala dos professores, alunos e AIMAs, durante as oficinas de manejo e produção.
A Federação dos Povos Indígenas do Pará (FEPIPA), a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará - MALUNGU e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) apresentaram suas perspectivas sobre os possíveis resultados, aprendizados e próximos passos do Sistema Jurisdicional de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (Redd+) Jurisdicional em elaboração no estado do Pará e que visa regular o mercado de crédito de carbono.
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