Na última sexta-feira (13/09) o estado de São Paulo perdeu uma de suas grandes figuras na luta e resistência das comunidades negras rurais quilombolas. Jaime Maciel de Pontes, 59 anos, foi uma importante liderança do Quilombo Cangume, no município de Itaóca, e de todas as comunidades quilombolas da região paulista do Vale do Ribeira.
Agricultor e articulador político, Jaime dedicou a vida à busca pelos direitos coletivos dos territórios quilombolas, em especial do Quilombo Cangume, sua comunidade, onde vivia e deixa esposa, filhos, netos e bisnetos, e também a mãe, Dona Antônia de Pontes, a mais velha Griô do quilombo, com 90 anos de idade.
E embora tenha trilhado uma trajetória de luta e obtido diversas conquistas para sua comunidade, Jaime retornou à ancestralidade sem vivenciar a maior delas: ver seu território, enfim, titulado.
Jaime chegou a acreditar que poderia ver este direito materializado quando, no mês de maio, o governo federal convidou a Associação do Quilombo Cangume para ir até Brasília presenciar a assinatura do decreto que daria início ao último passo para a titulação definitiva do quilombo, ato que ocorreria durante o evento Aquilombar.
"O maior sonho dele era ver a titulação do território, o resultado de tudo o que ele correu atrás e lutou por toda a vida. Mas, infelizmente não chegou a alcançar", lamenta o primo e atual coordenador da Associação do Quilombo Cangume, Odair Dias dos Santos.
"Nós perdemos um grande companheiro. O Jaime correu muito atrás dos direitos dos quilombos, do nosso território. Ele buscava recursos e todas as maneiras para chegar onde chegamos hoje: no reconhecimento do território, da nossa identidade quilombola. Estamos todos muito abalados.”
Mas a luta e a resistência de Jaime de Pontes seguirão reverberando.
O Instituto Socioambiental se solidariza com sua família, amigos e com o movimento quilombola neste triste momento.
Descanse em paz, Sr. Jaime.
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Jaime Maciel de Pontes na 12ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, em 2019|Cláudio Tavares/ISA
Liderança do Quilombo Cangume faleceu sem ver o sonho da titulação realizado|Anna Maria Andrade/ISA
Jaime descarrega caminhão com alimentos na 12ª Feira de Trocas de Sementes e Mudas dos Quilombos do Vale do Ribeira|Claudio Tavares/ISA
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Elementos da mística da abertura da 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
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Malvina Silva, do Quilombo Nhunguara, mostra plantas tradicionais na feira|Júlio César Almeida/ISA
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Visitantes puderam conhecer a variedade do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
A morosidade e a falta de interesse político na titulação de territórios quilombolas deram a tônica da abertura da 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
Como já é tradição, a feira ocorreu neste mês de agosto, no município paulista de Eldorado, onde as comunidades da região receberam comitivas de outros municípios e estados para compartilhar saberes, debater com a sociedade e questionar o poder público acerca da ineficiência na execução de políticas públicas e no cumprimento da Constituição na garantia da regularização fundiária dos quilombos no Vale do Ribeira e em todo o país.
Para além da cobrança pela garantia de direitos e pelo estrito cumprimento da lei, como ocorre todos os anos a Feira também celebrou a riqueza cultural quilombola, com apresentações culturais de música, dança, capoeira e poesia.
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Seu Hermes Modesto Pereira, do Quilombo Morro Seco|Júlio César Almeida/ISA
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Apresentação do Quilombo Morro Seco na 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais |Júlio César Almeida/ISA
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Grupo dançou fandango, dança introduzida pelos portugueses, mas aquilombada por seus praticantes no Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
E exibiu parte da diversidade produtiva das comunidades a partir da venda de produtos in natura e processados e da oferta de mudas e sementes crioulas, habilmente conservadas ao longo de gerações, como uma maneira de manter vivas as variedades de alimentos e espécies medicinais que são cultivadas na região desde a Diáspora e que tiveram seus usos aprimorados no decorrer dos séculos.
Dois outros assuntos dominaram as discussões em encontros temáticos organizados pelas comunidades do Vale do Ribeira em momentos de trocas e debates. Um deles foi a implementação da Resolução nº 08/2012 do Ministério da Educação que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Que, embora tenha sido publicada em 2012, segue distante de ser implementada pelos municípios, como no caso de Eldorado, cujas autoridades insistem em evasivas e isenção de responsabilidade.
O outro foi a emergência climática que assola o planeta e que atinge, de maneira mais incisiva e desproporcional, povos e comunidades tradicionais (PCTs), como é o caso das comunidades quilombolas. Estas vivem mudanças severas em seus territórios e possuem menos recursos e poder político para ações de mitigação e adaptação.
Numa demonstração prática de como as mudanças climáticas têm ocorrido de maneira mais acelerada e contundente, Eldorado atingiu a temperatura de 35ºC no sábado, dia 17, dia da venda e troca de produtos, em pleno inverno. O que surpreendeu os participantes vez que, tradicionalmente, o dia de feira é um dia frio e chuvoso, como foi no ano passado e nos anos anteriores.
Racismo impede avanço em titulações
“A péssima situação das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira – e de todo o estado de São Paulo – no acesso à terra só reforça que a escravidão nunca acabou de fato. Os governos, tanto estadual quanto federal, estão muito ruins em resolver os problemas de quem ajudou e segue ajudando a construir este país.”
A fala é do articulador da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), André Luiz Pereira de Moraes, liderança do Quilombo André Lopes, localizado em Eldorado.
“Estamos perdendo nossa identidade, o nosso sustento. E sabemos que esta morosidade é uma estratégia para que um dia a história quilombola se acabe. Já que não podem queimar os quilombos, eles fazem isso. Só os métodos que vão mudando ao longo do tempo. A estrutura estatal oprime as comunidades, sempre indo contra os nossos direitos. Todos os territórios do Vale do Ribeira vivem conflitos: ou com terceiros ou com o Estado. Assim, as pessoas vão deixando seus territórios, especialmente os mais jovens. Isso é a opressão que nunca acabou.”
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André Luiz Pereira de Moraes, liderança do Quilombo André Lopes e articulador da Eeacone, critica demora nas titulações: "estamos perdendo nossa identidade"|Júlio César Almeida/ISA
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Seminário "Titulação de Territórios Quilombolas - Pelo direito de semear o presente e o futuro" abriu a programação|Júlio Cesar Almeida/ISA
A morosidade à qual André se refere foi contabilizada e resultou em números alarmantes. Segundo levantamento da Terra de Direitos, no ritmo em que o Estado opera historicamente, seriam necessários 2.708 anos para finalizar a titulação dos 1.857 quilombos com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Isso sem levar em conta os dados apresentados pelo Censo 2022, que dão conta da existência de 7,6 mil comunidades quilombolas no Brasil, estabelecidas em mais de 8,4 mil localidades, que passam por longos processos de reconhecimento antes da abertura dos trâmites junto ao Incra.
“Eventos como este são fundamentais para que a gente some esforços no sentido de cobrar que Executivo e Judiciário assumam compromissos coletivos junto às comunidades para que as titulações dos territórios quilombolas aconteçam em um prazo razoável, como diz a Constituição Federal”, pontua a assessora jurídica da Eaacone, Rafaela Santos, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, em Iporanga.
“Sem o território titulado nós continuamos num estado de alerta e insegurança constantes, por razões que vão desde os conflitos fundiários e as invasões, até o etnocídio, a dizimação de um povo. Não dá para esperar milhares de anos para que isso aconteça. Isso tem que acontecer logo.”
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (Constituição Federal – Artigo 68 – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias)
Aos presentes, Oriel Rodrigues, reforçou que abandonar a luta nunca será uma opção para os quilombolas do país. “Todos os direitos que adquirimos são fruto de muita luta. Nada nos foi dado, em momento algum. É por isso que trabalhamos com esperança, esperança na luta de homens e mulheres que nunca esmoreceram.”
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Oriel Rodrigues, do Quilombo Ivaporunduva e integrante da Rede Nacional de Advogados Quilombolas|Júlio César Almeida/ISA
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Rafaela Santos, advogada, assessora jurídica da Eaacone e jovem liderança do Quilombo Porto Velho|Júlio César Almeida/ISA
Oriel é integrante da Rede Nacional de Advogados Quilombolas (Renaq) e uma das lideranças do Quilombo Ivaporunduva, localizado em Eldorado, o único território quilombola da região que é integralmente titulado e registrado.
“A nossa luta mais importante é pela garantia da terra. Muitos tombaram pelo caminho. Mas nós não iremos, em momento algum, fraquejar”, asseverou, recordando o marco de um ano do assassinato de Mãe Bernadete, morta a tiros em seu próprio território no dia 17 de agosto de 2023, em meio a uma vida dedicada à luta pela titulação.
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RTC (Relatório Técnico-Científico|Fonte: Itesp
“Estas lutas históricas parecem lutas invisíveis, porque o Estado não as reconhece. Mas são lutas árduas, trabalhosas e complexas. E nós temos a certeza de que vamos vencer. Nós estamos aqui por um mundo melhor, mais justo e igualitário. O Estado precisa se organizar mais. Se precisar, pode aprender com a gente”, complementou Luiz Francisco Melo, liderança do Quilombo Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos, localizado em Agudos (SP).
Também participaram do encontro o representante do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), Ronaldo Pereira Muniz, promotor de Justiça regional de Direitos Sociais do Vale do Ribeira; o representante da Defensoria Pública da União (DPU), defensor regional de Direitos Humanos em São Paulo, Érico Oliveira; e o representante da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP), Andrew Toshio, responsável pelas demandas coletivas de comunidades tradicionais da região do Vale do Ribeira.
Servidores da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão estadual que possui dentre suas atribuições a de “reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e a regularização de suas áreas”, foram convidados e estiveram presentes, acompanhando o debate. Já o Incra não enviou representantes.
Guardiões da floresta x injustiça climática
A injustiça climática e o protagonismo de povos e comunidades tradicionais na mitigação dos efeitos causados pelos extremos do clima também ganharam espaço para debate durante a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
“Nós somos pioneiros. Aprendemos o abecedário lá atrás. Nossos mais velhos já sabiam de tudo e nos ensinaram. Mata virgem, capoeira, nascentes, rios... todo o cuidado com a floresta faz parte do modo de vida quilombola. E esta também é nossa luta. Quando protestamos contra as barragens no Rio Ribeira de Iguape sempre é este o nosso intuito. Não é por acaso que nossa região é o pulmão do estado”, diz Maíra da Silva, bióloga e pesquisadora, coordenadora da área de Combate ao Racismo Ambiental do Instituto de Referência Negra Peregum, articuladora da Eaacone, quilombola do Quilombo Ivaporunduva.
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Maíra da Silva, do Quilombo Ivaporunduva, articuladora da Eaacone e do Instituto de Referência Negra Peregum|Júlio César Almeida/ISA
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Integrantes da Mesa "Emergência Climática e restauração ecológica - o que isso tem a ver com a gente?"|Júlio César Almeida/ISA
No entanto, ainda que cultivem um modo de vida sustentável que, ao longo dos últimos 400 anos, preservou o maior remanescente de Mata Atlântica do país, os territórios quilombolas têm sofrido com as variações do clima que afetam diretamente seus modos de vida atrelados a ciclos de roça cada vez mais imprevisíveis. Assim pontua o coordenador da Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, Nilzo Dias, representante do Quilombo André Lopes.
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"A gente sempre soube quando plantar. Mas agora está difícil", diz Nilzo Dias|Júlio César Almeida/ISA
“A gente sempre soube quando plantar. Mas agora está difícil.
Não conseguimos mais fazer como nossos mais velhos fizeram e nos ensinaram.
Nestes dias as lavouras de feijão secaram no frio. Era para estar fazendo só calor, mas fez dias de muito frio. Secou.
É difícil porque não conseguimos prever nem controlar. Seguimos o que sempre fizemos e acontecem estas coisas.”
Kátia Penha, liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e do Quilombo Divino Espírito Santo, localizado na região de Sapê do Norte no estado do Espírito Santo, apontou como a realidade vivida no Vale do Ribeira é semelhante à de seu território e aos demais territórios pelo Brasil.
“Como diz meu pai: o tempo está destemperado. Lá, como aqui, mais da metade de floresta preservada está em territórios de PCTs. E, também como aqui, lá ninguém mais consegue se basear pelo ciclo lunar. Nosso estado foi devastado pelas plantações de eucalipto e pela exploração de petróleo e gás.”
E conclama: “Este modo desenvolvimentista tem que parar de recair sobre nós!”.
Ciro Brito, analista de políticas climáticas do Instituto Socioambiental (ISA), é enfático: “Tudo isso está atrelado ao racismo”.
Brito explica que, embora os negacionistas utilizem do argumento raso de que o meio ambiente não pode ser racista, numa tentativa de descredibilizar a pauta, existe uma relação direta entre a vulnerabilidade e a exposição de populações racializadas às consequências da crise climática.
“As comunidades que têm relação com o meio ambiente sofrem mais com as mudanças climáticas por causa do racismo estrutural. Porque não têm seus territórios garantidos ou vivem nas baixadas e periferias, em contextos de cidades. Essas populações ficam mais vulneráveis às consequências das mudanças climáticas.”
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Kátia Penha, liderança da Conaq e do Quilombo Divino Espírito Santo: “este modo desenvolvimentista tem que parar de recair sobre nós!”|Júlio César Almeida/ISA
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Ciro Brito: "comunidades que têm relação com o meio ambiente sofrem mais com as mudanças climáticas por causa do racismo estrutural"|Júlio César Almeida/ISA
O que quilombolas e especialistas enfatizaram, entretanto, é que para além de vítimas, os povos e comunidades tradicionais são a grande solução para a crise climática e suas intempéries.
Brito recorda que, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), estamos na década da restauração ecológica e destaca como esta ação é fundamental no enfrentamento à questão do clima.
“Para combater esta crise, segundo a ONU, são necessárias soluções baseadas na natureza. E a restauração é uma das mais importantes soluções neste sentido, porque captura carbono durante o seu crescimento e em sua preservação. O Vale do Ribeira não é a região mais degradada. Ao contrário, vocês estão em um santuário, vocês são líderes de combate às mudanças climáticas. E a iniciativa da Rede de Sementes oferece uma solução importantíssima e de extrema relevância.”
Educação não sai do papel
Uma conquista de décadas de luta do movimento negro, no ano de 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639 tornando obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares no Brasil.
“O conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, diz o texto oficial.
Quase mais dez anos de luta depois, em 2012, o Conselho Nacional de Educação considerou um recorte quilombola por meio da Resolução nº08, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.
E agora, em 2024, a luta pela implementação destes dispositivos segue a mesma, vez que, como aponta o movimento, há um abismo entre as normativas legais e a efetivação do direito nos territórios.
“É uma vergonha que o município que tem a maior concentração de quilombolas do estado de São Paulo não tenha implementado até hoje a Resolução nº08”, questiona a educadora, doutora em educação, Márcia Cristina Américo, residente no Quilombo São Pedro, em Eldorado.
Mas não só os desafios, como também os acúmulos e a riqueza da Educação Quilombola foram o terceiro tema em discussão durante a 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
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Luiz Ketu e Márcia Cristina Américo, lideranças do quilombo São Pedro e autores de livros sobre a cultura quilombola|Júlio César Almeida/ISA
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Oficina "Educação quilombola - território de saberes" começou com mística de integração afetiva e muitos abraços|Júlio César Almeida/ISA
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Grupos foram formados para aprofundar os pontos trazidos pelos educadores e participantes|Júlio César Almeida/ISA
O debate partiu de um pensamento do escritor, filósofo e professor quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo: “Eu vou falar de nós ganhando, por que pra falar de nós perdendo eles já falam”.
E assim todos discutiram a importância da sabedoria tradicional na educação das crianças quilombolas: a beleza do fazer roça, das garrafadas, do conhecimento das ervas medicinais, a história de seus territórios e comunidades, os modos de vida de seus quilombos, a importância da roça na manutenção da vida e da cultura, as brincadeiras e a alimentação tradicional nas escolas.
Tudo o que hoje não é abordado em uma sala de aula que parece estar descolada da realidade de suas crianças, mantendo um currículo não-condizente com o que de fato importa no aprendizado dentro das comunidades.
“O que os professores enviados para os territórios pregam é que as crianças precisam estudar para ‘serem alguém’ e não precisar fazer roça. Mas o quilombola é aquele que faz a roça. A lógica não pode ser descolar estas crianças do território, mas sim despertar nelas o olhar para a riqueza cultural que há dentro de suas comunidades e todas suas possibilidades”, reforça Américo.
Liderança do Quilombo São Pedro, Aurico Dias resume: “Nossa intenção nunca foi desbravar a natureza, mas sim preservar a natureza”.
Tradição, fartura e resistência
Depois de um dia de discussões, o dia seguinte foi dedicado à celebração, com a venda e troca de produtos e apresentações culturais de comunidades quilombolas não só do Vale do Ribeira, mas também de outras regiões do estado.
Dia de celebrar a riqueza cultural dos quilombos e a diversidade produtiva que representa a fartura cultivada e colhida pelas mãos quilombolas de diferentes gerações. Logo cedo, começou a ser preparado o almoço tradicional quilombola, com uma ampla variedade de produtos do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola.
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Temperos da roça tradicional quilombola para a mesa dos participantes da 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais|Júlio César Almeida/ISA
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Palmito, um dos alimentos cultivados no Sistema Agrícola Tradicional dos Quilombolas do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
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Preparo do almoço tradicional quilombola começou cedo e envolveu lideranças de diversas comunidades do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
Já na Praça Nossa Senhora da Guia, no centro de Eldorado, no canto de Elvira Morato, do Quilombo São Pedro, ao lado do Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim, a representatividade, a luta:
“Ontem foi o seminário
Na cidade de Eldorado
Os quilombos se reuniram
Com várias entidades
Pra discutir os direitos
Das nossas comunidades
Vamos, vamos trabalhar
Sem punição
Quilombo está garantido
Na lei da Constituição
Nossa Feira de Sementes
Ela é muito importante
Os quilombos trazem aqui
Os produtos lá da roça
Os produtos pra vender
E as mudas para troca”
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Elvira Morato, liderança do Quilombo São Pedro, abraça o esposo na apresentação com o Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim|Júlio César Almeida/ISA
Para Osvaldo dos Santos, liderança do Quilombo Porto Velho, este momento da Feira de Sementes “traz várias importâncias: a troca de saberes e das sementes e mudas para a manutenção do conhecimento, a inserção dos jovens nesta tradição, a reunião de amigos que às vezes só se encontram nesta ocasião e o reforço da sintonia entre os territórios que reforçam suas conexões para a celebração e para a luta”.
Santos ressalta que toda a família se envolve neste momento de apresentação dos produtos durante a Feira e conta levou cerca de 15 variedades para venda, sendo alguns deles processados: a farinha de mandioca, a rapadura e a taiada (uma espécie de rapadura com gengibre, cana-de-açúcar e farinha de mandioca), a cocada, o mel e a apressada (um bolinho à base de polvilho, rapadura e ovos).
Outra liderança do Quilombo Porto Velho, Vanilda Donato entende a Feira de Sementes como um momento estratégico em diversas frentes.
“Esta feira é uma educação para as nossas crianças na luta das comunidades. Mostra que estamos preparando um solo bom. É uma das maiores organizações das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. Reunimos não só as populações dos territórios, mas também grandes parceiros que estão com a gente nesta estratégia de fortalecimento.”
“Assim, mantemos a tradição e, mais do que isso, mantemos os quilombolas em seus territórios, que é o que busca nossa luta”, reforça Laudessandro Marinho da Silva, do Quilombo Ivaporunduva.
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Leonila Pontes (ao centro), do Quilombo Abobral Margem Esquerda, apresenta seu livro de poesia "Mulheres não podem esperar"|Júlio César Almeida/ISA
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Laudessandro Marinho da Silva, liderança do Quilombo Ivaporunduva, recebe visitantes em seu estande|Júlio César Almeida/ISA
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Mel de abelhas, farinha de mandioca e diversos outros produtos levados por Vandir dos Santos do Quilombo Porto Velho|Júlio César Almeida/ISA
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Todos os anos, em agosto, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira trazem sua luta e diversidade para Eldorado|Júlio César Almeida/ISA
Assessora técnica do ISA, Raquel Pasinato recorda que a Feira nasceu antes de o Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SATQ) ser reconhecido Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2018. E considera que hoje ela se tornou um forte instrumento para sua salvaguarda.
“A Feira representa a manutenção da agrobiodiversidade desse sistema secular e ancestral quilombola e contribui para manter esse sistema vivo e biodiverso para produzir alimento que nutre corpos e mentes das comunidades e de quem acessa essa fartura alimentar compartilhada pelos quilombolas do Vale do Ribeira.”
A 15ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira foi uma realização do Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça); das Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira; da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone); da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale); da Rede de Sementes do Vale do Ribeira; do Instituto Socioambiental (ISA) e da Associação Slow Food do Brasil, com apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo por meio do Programa de Ação Cultural (ProAc).
Também apoiaram o evento o Sesc Registro; as Prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaoca; a Iniciativa Verde; a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Registro;e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
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Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira apresenta sua 15ª edição
Encontro reunirá festividades e compartilhamento de saberes com oficinas e debates com a sociedade e o poder público nos dias 16 e 17 de agosto, em Eldorado (SP). Programe-se!
Toda a riqueza cultural e a diversidade produtiva derivadas de um acúmulo histórico de saberes e vivências serão o centro da próxima Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, que apresenta sua 15ª edição nos dias 16 e 17 de agosto na cidade de Eldorado (SP).
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Representantes do Quilombo Porto Velho, em Iporanga (SP), comercializam seus produtos tradicionais como rapadura, taiada e farinha de mandioca na 14ª Feira, em 2023|Claudio Tavares/ISA
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Quilombolas do Sapatu fazem apresentação da dança Nhá Maruca, na 14ª edição da Feira |Claudio Tavares/ISA
O evento já se tornou tradição no calendário cultural paulista por reunir diferentes públicos ao redor do protagonismo da pauta quilombola, especialmente daquelas comunidades localizadas nesta porção do sul do estado.
Como é de ocorrer na agenda política de uma população detentora de uma trajetória de lutas e conquistas, a feira se divide entre momentos de festividade e compartilhamento de saberes, mas também de formação e de debate com a sociedade e com o poder público.
E é esta a programação do primeiro dia, que será aberto com o seminário temático “Titulação de territórios quilombolas - pelo direito de semear o presente e o futuro”, que irá propor uma discussão acerca de uma pauta crucial para o movimento quilombola: a titulação de seus territórios, que sofre com um processo deliberada e inexplicavelmente moroso por parte dos governos estadual e federal. Nítido exemplo da manifestação do racismo institucional.
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Participantes do seminário “Culturas perenes e a sustentabilidade dos manejos nos territórios quilombolas”, durante a 14ª Feira|Claudio Tavares/ISA
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Dona Elvira Morato, do Quilombo São Pedro, canta com o Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim, na 14ª edição da Feira|Claudio Tavares/ISA
Além disso, ainda haverá oficinas sobre educação quilombola e a relação entre a mitigação dos eventos extremos exacerbados pela emergência climática e a restauração ecológica, especialmente no bioma da Mata Atlântica.
Já o dia seguinte é dedicado à celebração e aos encontros entre as comunidades, que promovem apresentações culturais, realizam a troca de mudas e de sementes crioulas - aquelas sementes tradicionais que foram preservadas com o passar dos anos, e também realizam a venda dos produtos típicos da região, que cultivam e beneficiam nas comunidades.
Todas as atividades da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira são abertas ao público e gratuitas.
Patrimônio Cultural do Brasil
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Paisagem do Quilombo Praia Grande, localizado em Iporanga (SP), resume integração das comunidades quilombolas com a floresta, a partir de suas residências e de áreas de cultivo de espécies nativas|Fellipe Abreu/ISA
Em razão de suas manifestações festiva, de incidência política e de troca de saberes, a Feira é reconhecida como uma importante ação para a salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional (SAT) das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, reconhecido em 2018 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural do Brasil.
De acordo com o Iphan, o SAT é o conjunto de experiência acumulada que se manifesta em dinâmicas ecológicas, no manejo e no repertório de conhecimentos que remontam gerações ancestrais e que foram transmitidos por meio da oralidade e de vivências práticas. Em suma, diz do modo de vida quilombola a partir de suas trocas, do sentir e do criar que estão conectados ao fazer da roça.
A 15ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira é realizada pelo Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça), pelas Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), pela Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), pela Rede de Sementes do Vale do Ribeira, pelo Instituto Socioambiental (ISA) e Associação Slow Food do Brasil, com apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo por meio do Programa de Ação Cultural (ProAc).
Também apoiam o evento o Sesc Registro; as Prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaoca; a Iniciativa Verde; a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Registro;e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
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Serviço
15ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira
Dias 16 e 17 de agosto, em Eldorado (SP)
Programação
Dia 16 (sexta-feira)
Local: Salão Paroquial na Praça Nossa Senhora da Guia de Eldorado (SP)
Credenciamento e café de abertura
8h30 às 9h30
Seminário: Titulação de territórios quilombolas - Pelo direito de semear o presente e o futuro
9h30 às 12h
Oficinas Temáticas:
14h às 16h30
Educação Quilombola - território de saberes
Emergência Climática e restauração ecológica - o que isso tem a ver com a gente?
10h às 13h e 14h às 17h
Atividades infantis:
Ancestralidades Brincantes - com Cia. Amoras
16h30
Café de encerramento do dia
Dia 17 (sábado)
Local: Praça Nossa Senhora da Guia de Eldorado
9h às 14h
Feira
Trocas de Sementes e Mudas
Venda de Produtos da Roça
Apresentações Culturais
Almoço Tradicional Quilombola
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OIT recomenda que Brasil titule o território quilombola de Alcântara (MA)
Medida inédita responde denúncia sobre descumprimento da consulta livre, prévia e informada para a instalação do Centro de Lançamentos de foguetes. Veja linha do tempo do caso
Centro da cidade de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendou que o Brasil titule os territórios quilombolas do município de Alcântara, na costa maranhense, e siga em relação ao caso o que está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta livre, prévia e informada sobre projetos e medidas que afetem povos indígenas e comunidades tradicionais (saiba mais nos boxes logo abaixo).
É a primeira vez na história que a organização faz recomendações sobre comunidades quilombolas no Brasil. A medida é resultado da denúncia apresentada, em 2019, contra as violações dos direitos dessas populações e o descumprimento da Convenção 169 por parte do governo brasileiro na implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na década de 1980. Naquele momento, mais de 300 famílias, de 32 comunidades, foram expulsas de suas casas.
Desde essa época, o governo tenta ampliar a base aeroespacial, o que pode afetar outras centenas de famílias. Ao longo de quatro décadas, uma série de planos foi apresentada com esse objetivo e o Estado brasileiro também cometeu outra série de violações dos direitos dos quilombolas (saiba mais na linha do tempo no quadro ao final da reportagem).
A denúncia foi apresentada pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Alcântara, em nome das comunidades quilombolas, do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e da Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila).
O que é a Convenção 169 da OIT?
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002 e entrou em vigor em 2003. A norma é um importante instrumento para povos indígenas e comunidades tradicionais, por assegurar o direito à consulta livre, prévia e informada sobre qualquer medida que afete essas populações, levando em consideração seus modos de vida e cultura. Tendo ratificado a Convenção, o país tem de respeitar o tratado e as determinações de seus órgãos, mas, na prática, não é obrigado a cumpri-las porque não há mecanismos institucionalizados para isso.
“O Estado brasileiro possui um histórico de não cumprimento de decisões internacionais, quer seja no âmbito da ONU, como é o caso da OIT, quer seja no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Estado não diz que não vai cumprir, mas, na prática, não cumpre. Ou, quando cumpre, cumpre pela metade. E nós vamos nos mobilizar para cobrar o cumprimento dessas recomendações”, promete o quilombola e cientista político Danilo Serejo.
“Espero que o governo faça a titulação, que nenhum empreendimento venha para dentro do território, sem que antes nos consulte. Feita a titulação, teremos segurança jurídica para discutir com qualquer empresa que venha se instalar aqui dentro”, diz a presidente da Atequila, Valdirene Ferreira.
“A recomendação é extremamente importante para fazer com o Estado o que a gente vem tentando fazer, que é construir um processo pedagógico para que ele entenda que é obrigado, que não é simplesmente [dizer] ‘ah, não vou fazer consulta’. É um dever tanto de fazer a consulta, quanto de titular os territórios quilombolas”, aponta a assessora jurídica da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Vercilene Dias.
Segundo o assessor jurídico do ISA Fernando Prioste, as recomendações da OIT são um precedente importante para as políticas de reconhecimento dos territórios de populações tradicionais como um todo. "Em função de seu ineditismo, o informe poderá auxiliar povos indígenas e comunidades tradicionais, em todo o país, a fazer com que o Estado respeite direitos como o de acesso ao território e de consulta livre, prévia e informada”, analisa.
Pescadora na Comunidade de Vista Alegre, território quilombola de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
O território quilombola de Alcântara (MA)
O município de Alcântara está localizado na costa de São Luís (MA) e concentra a maior população quilombola do país. De acordo com o Censo 2022, são quase 10 mil pessoas e mais de 3 mil famílias moradoras da região. O território ainda não teve seu procedimento de reconhecimento formal concluído. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) expediu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das etapas iniciais do processo, indicando uma área de quase 80 mil hectares. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
Promessa de solução de Lula
Em junho, dias depois da OIT publicar seu informe, o presidente Luís Inácio Lula da Silva disse que o governo comunicaria em breve uma solução para o conflito em Alcântara.
"Estamos perto de concluir um acordo que a gente vai resolver, de uma vez por todas, o quilombo aqui em Alcântara. Está tendo um acordo com a FAB [Força Aérea Brasileira], com a Advocacia-Geral da União, acho que vamos contemplar todo mundo e vai viver em paz aquela região, com as pessoas podendo pescar no mar sem atrapalhar os foguetes e sem o foguetes atrapalharem a gente", afirmou Lula à rádio Mirante News FM, de São Luís. Ele esteve na capital maranhense para participar do anúncio de investimentos federais no estado.
“Em Alcântara a gente tem um princípio que é não abrirmos mais mão de nenhum centímetro de terra do nosso território para a base espacial. Nós não negociamos mais isso. Isso pra gente é ponto pacífico. Então o estado brasileiro vai ter que titular Alcântara em algum momento. Espero que o presidente Lula tenha coragem para fazer isso agora”, aponta Serejo.
Em nota enviada à reportagem do ISA, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que analisa três propostas de conciliação que estão em “estágio avançado”. “A AGU está confiante de que um acordo será firmado nos próximos meses, para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) possa, então, implementar o processo de titulação do território quilombola”, diz o texto.
O órgão coordena o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado, em abril de 2023, para resolver o problema. “Na condição de coordenadora do GTI, a AGU tem como missão a compatibilização dessas duas políticas públicas — a titulação de terras quilombolas e o funcionamento do Programa Espacial Brasileiro —, sem que uma inviabilize a outra” , continua o texto. Ainda de acordo com a nota, o relatório do GTI está sendo fechado neste momento.
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Em cerimônia de anúncios de investimentos no Maranhão, Lula disse que acordo para solucionar a situação do CLA nos territórios quilombolas estaria próximo | Ricardo Stuckert / PR
Governo tenta retomar conversas
Em outra nota enviada ao ISA, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) afirmou que irá retomar, no próximo dia 17, o diálogo com as organizações das comunidades quilombolas. A conversa contará com a presença do Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, Ronaldo dos Santos, e representantes da Controladoria-Geral da União (CGU).
A iniciativa acontece após as organizações quilombolas retirarem-se do GTI, em janeiro, por discordarem da condução dos trabalhos. O colegiado foi criado logo depois de um pedido de desculpas histórico feito pelo governo brasileiro às comunidades quilombolas na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no início de 2023. A manifestação reconheceu a responsabilidade do Estado pelas violações dos direitos dessas populações, inclusive a omissão na titulação de seus territórios.
De acordo com ex-integrantes quilombolas do GTI, o governo não definiu sua posição em relação ao tamanho da área destinada à expansão do CLA e não apresentou informações sobre os impactos socioambientais e econômicos que ela causaria às comunidades. De acordo com o plano mais recente, a expansão da base aeroespacial poderia alcançar 12 mil hectares e expulsar cerca de 800 famílias.
Os quilombolas também argumentam que falta paridade na composição do GTI. O grupo era formado por 13 representantes do governo e apenas 4 representantes das comunidades, que não conseguiam participar ativamente das reuniões por causa do difícil acesso à internet.
“Como o Estado brasileiro não apresentou estudos técnicos e econômicos que justificassem a necessidade de expansão do Centro de Lançamento, nós não tivemos dados nem coisas concretas e materiais para continuar a negociação. Por essa razão, nós nos retiramos do grupo”, conta Serejo, um dos representantes quilombolas no GTI. Ele explica que o encontro do dia 17 não tem caráter formal e ainda não é possível prever quais serão seus desdobramentos. “Não há diálogo formal instituído ou retomado com o governo”, reforça.
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Pescador na comunidade de Iguaiba, território quilombola de Alcântara | Ana Mendes / Imagens Humanas
As recomendações da OIT
- O Comitê confia que se tomem as medidas necessárias, incluindo o marco do Grupo de Trabalho Interministerial, para assegurar que, segundo o disposto no artigo 23 da Convenção, as comunidades quilombolas que sejam deslocadas durante as fases I e II da implantação do CLA, possam realizar suas atividades tradicionais e de subsistência, incluindo a pesca;
- O Comitê pede ao governo que tome sem demora as medidas necessárias para levar a cabo, de acordo com a legislação nacional vigente, os estudos de impactos social, espiritual e cultural, e sobre o meio ambiente que a expansão do CLA teria sobre as comunidades quilombolas de Alcântara, em cooperação com as mesmas, em conformidade com o artigo 7, 3) da Convenção;
- Embora observe que o governo tomou medidas para desenhar um processo de consulta para as comunidades quilombolas que seriam afetadas pela expansão do CLA, o Comitê solicita ao Governo que tome todas as medidas necessárias para realizar um processo de consulta, desenhado com a participação das instituições representativas das comunidades quilombolas para cumprimento do artigo 6º da Convenção. O Comitê sublinha a importância de dar às comunidades tempo suficiente para levarem a cabo os seus processos internos de tomada de decisão e de lhes fornecer todas as informações relevantes em tempo útil;
- Consequentemente, o Comitê insta o governo a que, de acordo com o artigo 16 da Convenção, caso a transferência de comunidades quilombolas seja decidida excepcionalmente, esta só deverá ser realizada com consentimento, dado livremente e com pleno conhecimento dos fatos, das comunidades quilombolas afetadas. Caso não seja possível obter o seu consentimento, a transferência e realocação só deverão ocorrer após a conclusão dos procedimentos apropriados estabelecidos pela legislação nacional, nos quais as comunidades quilombolas tenham a possibilidade de serem efetivamente representadas. Neste caso, as referidas comunidades deverão receber em troca terras cuja qualidade e estatuto jurídico sejam pelo menos iguais às das terras que ocuparam anteriormente, e que lhes permitam satisfazer as suas necessidades e garantir o seu desenvolvimento futuro.
Linha do tempo
1983 - Centro de Lançamento de Alcântara foi criado com o objetivo de executar e apoiar atividades espaciais, provas científicas e experimentos relacionados com a política nacional de desenvolvimento espacial. Na época, um acordo foi estabelecido entre o Ministério da Aeronáutica e as famílias quilombolas que seriam afetadas pela implementação do CLA, no qual o ministério se comprometeu a atender as reivindicações relacionadas ao reassentamento, o que, segundo os denunciantes, não foi cumprido.
“Quando o Centro de Lançamento foi pensado para Alcântara, uma das coisas que foram faladas é que aqui havia um vazio demográfico, sendo que no município tinham mais de 200 comunidades. Então se pra eles era um vazio demográfico, isso significa que as comunidades quilombolas tradicionais não existem. Aos olhos deles não existimos”, comenta a coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), Dorinete Serejo.
1986 a 1988 - 312 famílias de 32 comunidades são retiradas de suas terras e reassentadas em sete agrovilas. Além de não terem recebido assistência técnica agrícola, as comunidades sofreram alteração de seus costumes e práticas e, até hoje, estão privadas de condições adequadas de vida, com falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social.
“Uma vez que se tira alguém da sua comunidade, sem o seu consentimento, não tem nenhuma orientação, e colocam longe de tudo, inclusive de onde tiram seu meio de sobrevivência, que é o mar e igarapés, os seus direitos já estão sendo violados”, pontua a presidente da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), Valdirene Ferreira.
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Centro de Lançamentos de Alcântara (MA) | Valter Campanato/Agência Brasil
1991 - Governo decide ampliar para 62 mil hectares a área expropriada destinada ao CLA. A decisão, novamente, não considerou as famílias afetadas para fins de compensação.
2001 - Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), Justiça Global, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União denunciam a situação para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
2004 - Governo estabelece Grupo Executivo Interministerial para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, envolvendo educação, trabalho, saúde, moradia, infraestrutura e participação em benefícios das comunidades quilombolas. As propostas se consolidaram em um plano de ação, que, segundo organizações denunciantes, não foi cumprido.
2006 - Procuradoria-Geral da República e governo federal firmaram acordo estabelecendo que o Incra deveria, em 180 dias, dar continuidade à titulação definitiva das terras ocupadas pelas comunidades de Alcântara. O processo foi iniciado em novembro de 2006 e deveria ser concluído em 31 de outubro de 2007. Porém, somente um ano depois, em novembro de 2008, o Incra publicou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das fases iniciais do procedimento de titulação. O RTID identificou 78,1 mil hectares pertencentes às comunidades quilombolas. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação solicitou a instalação de uma câmara de conciliação e arbitragem para analisar a sobreposição da expansão do CLA ao território o quilombola. Após quatro anos sem resolução, o caso foi arquivado.
2007 - Governo contratou empresas privadas que iniciaram trabalhos de prospecção e demarcação do perímetro da área de expansão da base aeroespacial dentro das terras das comunidades Mamuna e Baracatatiua. As comunidades não foram consultadas e as ações não foram autorizadas pelo IBAMA.
2008 - Lideranças de Alcântara denunciaram o Estado à OIT, por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, devido a mais um descumprimento da Convenção 169. A denúncia veio após uma ação arbitrária no território decorrente do Projeto Alcântara Cyclone Space, resultado de um Acordo de Cooperação Tecnológica entre Brasil e Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e depredaram roças das comunidades de Mamuna e Baracatatiua na tentativa de implantar outros três sítios de lançamento de aluguel.
2010 - Ministério da Defesa elaborou um plano de implantação de novos sítios de lançamento na zona de expansão do CLA. O plano incluía um cronograma de expansão entre 2015 e 2020 e propunha a instalação de sítios de lançamento ao longo de toda a costa de Alcântara. Também previa o deslocamento de 226 famílias durante a fase III e de 337 durante a fase IV. De acordo com os denunciantes, a expansão impactaria as áreas de uso coletivo para agricultura, pesca e utilização de recursos naturais.
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Em 2017, o governo tinha intenção de firmar Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os EUA para realizar lançamentos na base espacial. O então Presidente Michel Temer visita do CLA | Marcos Corrêa / PR
2019 - Governo Bolsonaro firmou Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos, com finalidades comerciais. O acordo ignorou recomendação da CIDH, feita na segunda audiência sobre o caso (2019), para realizar estudo e consulta prévia com as comunidades quilombolas.
2020 - Em meio à pandemia de Covid-19, o governo determinou novas remoções, que afetariam pelo menos 800 famílias, para a realização do projeto. Os despejos foram suspensos pela justiça e após o Senado dos Estados Unidos vetar o uso de dinheiro do país para remoção das comunidades quilombolas. Brasil revogou a resolução.
2021 - Governo expediu títulos individuais de propriedade a 67 residentes quilombolas das agrovilas. A emissão de títulos individuais descumpre o que está previsto no Decreto 4.887 de 2003, que estabelece o procedimento de titulação coletiva de terras ocupadas por quilombolas.
2023 - Governo brasileiro pediu desculpas às comunidades quilombolas de Alcântara e estabeleceu Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para resolução do caso.
2024 - Lula afirma que o governo está prestes a concluir um acordo para resolver de vez a situação entre a Força Aérea Brasileira (FAB) e as comunidades quilombolas de Alcântara.
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Kerexu Mirim e Luiz Ketu levam saberes indígenas e quilombolas ao palco principal d’A Feira do Livro
Mesa debateu contribuições para a educação antirracista e contou com tarde de autógrafos com os autores de ‘Roça é Vida’ e ‘Na companhia de Dona Fartura’
Tatiane Klein, pesquisadora do ISA, Luiz Ketu, liderança do Quilombo São Pedro e Kerexu Mirim, liderança da Terra Indígena Tenondé Porã, conversaram sobre educação antirracista e saberes ancestrais em mesa n'A Feira do Livro| Júlio César Almeida/ISA
Na tarde de terça-feira (02/07), os autores Kerexu Mirim, liderança da Terra Indígena Tenondé Porã, em São Paulo, e Luiz Ketu, liderança do Quilombo São Pedro, em Eldorado (SP), levaram saberes indígenas e quilombolas para o palco principal d’A Feira do Livro. A mesa “Saberes ancestrais na sala de aula” teve mediação de Tatiane Klein, pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA) e trouxe reflexões importantes sobre o direito à educação diferenciada e das experiências nas escolas indígenas e quilombolas como caminhos para uma educação antirracista.
Foi reverenciando seus ancestrais que Luiz Ketu, tataraneto de Bernardo Furquim – fundador da comunidade onde vive – deu início à roda de conversa. "Falar do lugar de atuação, de vivência, é falar primeiramente desse lugar de ancestralidade, desse lugar de território de onde eu venho, de onde que eu conto as minhas histórias e conto um pouco da minha experiência", afirmou.
O Quilombo São Pedro, localizado entre as cidades de Eldorado e Iporanga, no Vale do Ribeira, foi fundado entre 1825 e 1830, mas apenas em 2022, quase 200 anos após sua fundação e mais de 130 anos após a abolição formal da escravidão, os moradores conquistaram o título definitivo do território coletivo.
Kerexu Mirim, por sua vez, destacou o processo de retomada que seu povo, Guarani Mbya, vive. Ela explica que, atualmente, na Terra Indígena Tenondé Porã, das 14 aldeias, 12 são áreas retomadas e que o caminho para assegurar e recuperar o acesso ao território e ao modo de vida guarani ainda está sendo percorrido. “Além de retomar o território, também foram retomadas as práticas do cotidiano guarani e a revitalização da casa de reza, dos cantos, dessa conversa das crianças com os mais velhos que foi perdida por causa do espaço pequeno”, explicou.
“Para a gente foi e está sendo muito importante essas retomadas, e a gente também está conquistando, de pouquinho em pouquinho, antes da demarcação, para poder assegurar um pouco da mata que resta aqui em São Paulo e que está segurando esse calor também que faz”, afirmou.
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Kerexu Mirim mostra livros sobre seu povo e família à venda na tenda do ISA n'A Feira do Livro, que acontece em São Paulo|Júlio César Almeida/ISA
Educação diferenciada
Sobre a educação escolar quilombola, Luiz Ketu destacou a morosidade e os entraves que existem na criação de normativas específicas para garantir a educação diferenciada. “O racismo rege essa base estrutural, então ele também vai estar presente nos espaços de poder justamente para a manutenção de uma certa hegemonia. E isso também acontece na educação”, pontuou.
Ketu, que é doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), também trouxe a importância da presença quilombola nos espaços de produção de conhecimento, como as universidades, para que haja provocações às estruturas vigentes.
Citando a pedagoga Nilma Lino Gomes, a liderança quilombola também lembrou do papel educador do movimento quilombola – seja por meio das associações locais em territórios quilombolas ou de organizações nacionais –, como a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), que cumprem o papel de demandar do Estado a garantia dos direitos da população quilombola, principalmente no âmbito da educação.
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O futuro é quilombola! Luiz Ketu, liderança do Quilombo São Pedro (SP) e autor quilombola, assina painel n'A Feira do Livro| Júlio César Almeida/ISA
“O movimento traz essa proposta: se a escola é esse modelo que a gente tem hoje de sentar-se na cadeira, ficar ali, se ele não se deslocar para olhar para fora da janela, a gente não vai ter avanço. Então, se o aluno ou aluna tem uma série de conhecimentos que estão ali todos os dias no espaço no território e isso não está em sala de aula, a gente tem um problema sério: ou temos uma falta de informação ou temos um projeto que começou lá antes de 1500 e que ainda está pautado em vigor com isso”, argumentou.
Na mesma direção, Kerexu Mirim, em sua experiência como professora, compartilhou algumas das questões que têm norteado as discussões sobre educação diferenciada em seu território, como qual tipo de pessoa se deseja formar: “Uma frase que a gente sempre ouve é: ‘você tem que ir para escola para ser alguém na vida’, mas a gente já é alguém”, assinalou.
“É tudo voltado para dinheiro. A gente não quer isso, então a gente usa a disciplina da matemática plantando milho, plantando mandioca, colhendo, então para isso que vai servir a matemática. Não é só para contar dinheiro. Para a gente é assim, o que é levado para a nossa escola Guarani é voltado para nossa realidade”, completou.
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Kerexu Mirim: “Uma frase que a gente sempre ouve é: ‘você tem que ir para escola para ser alguém na vida’, mas a gente já é alguém”| Júlio César Almeida/ISA
Escrever, sem abandonar a tradição oral
Outro aspecto destacado por Kerexu Mirim foi a desvalorização do conhecimento dos anciãos de seu povo, geralmente transmitidos aos mais novos por meio da oralidade e da memória. “A escola veio com essa ideia bem fechada de um lugar de conhecimento, como se os nossos e as nossas antepassadas, nossas mães e nossos pais, não tivessem conhecimento”, criticou.
Para ela, que é filha de um dos pioneiros da literatura nativa no país, o escritor guarani Olívio Jekupé, a escrita se tornou um poderoso instrumento para registrar e valorizar os conhecimentos tradicionais, sem substituí-los. “Hoje [a escrita] é nossa ferramenta de luta. Que a gente e a escola precisam ter, esses livros, esses registros, em português e em Guarani também”, defendeu.
É o que também ressaltou Luiz Ketu, falando da importância da oralidade na transmissão desses conhecimentos agregados ao longo de tanto tempo. Ele, que é um dos autores dos livros Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola e Roça é vida, destacou que o registro desses saberes por meio da escrita foi assumido como uma missão coletiva, por ele e por outros pesquisadores quilombolas, como Márcia Cristina Américo, Viviane Marinho Luiz, Laudessandro Marinho da Silva, que compartilham a autoria com ele e acompanharam o evento.
As duas obras, disponibilizadas ao grande público pela primeira vez n’A Feira do Livro, trazem informações sobre o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) e suas contribuições. Reconhecido em 2018 como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o SATQ consiste em uma série de conhecimentos e práticas tradicionais, que engloba a roça de coivara – um sistema baseado no uso intermitente de pequenas áreas de floresta, com uso para plantação por três anos e períodos de repouso para que o solo e a vegetação se regenerem.
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Da esquerda à direita: Viviane Marinho Luiz, Laudessandro Marinho da Silva, Márcia Cristina Américo e Luiz Ketu| Júlio César Almeida/ISA
Nesse sistema, os quilombolas do Vale do Ribeira desenvolveram o manejo de cerca de 83 espécies florestais e mais de 70 variedades agrícolas, ajudando a conservar parte dos remanescentes de Mata Atlântica no país. Para isso, todos os anos realizam a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas.
Organizada pelo Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça), composto por 19 Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira e parceiros, o evento previsto para agosto chega em sua 15ª edição neste ano, valorizando os saberes tradicionais quilombolas.
Finalizando a conversa, Tatiane Klein destacou a relevância dos autores quilombolas e indígenas compartilharem em seus livros temas tão complexos, mas tão pouco conhecidos e valorizados, como forma de combate de um racismo epistêmico que coloca os saberes de uns em posições diferentes dos saberes de outros.
“Como o Davi Kopenawa sempre fala em seus livros, ele teve que colocar o pensamento dele em ‘peles de papel’ para que chegasse aos não indígenas. E esse não é um movimento que só o Davi vem fazendo. Inúmeras comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas estão fazendo esse esforço para transmitir o que são os modos de vida, para garantir a existência desses modos de vida, a persistência desses modos de vida e acho que a gente só tem a agradecer por estarem fazendo isso“, concluiu.
Na sexta-feira (05/07), o tema volta À Feira do Livro em um bate-papo sobre a obra Diários yanomami: testemunhos da devastação da floresta no Auditório Armando Nogueira. A mesa terá a participação de Darysa Yanomami, Mozarildo Yanomami, Corrado Dalmonego e Hanna Limulja para discutir a obra bilíngue, que é resultado de uma pesquisa intercultural e reúne relatos dos próprios Yanomami sobre os impactos da invasão garimpeira na maior Terra Indígena do Brasil, durante o governo Bolsonaro.
“Brasil indígena, passado e presente”
No domingo (30/06), às 17h30, aconteceu o bate-papo “Brasil indígena, passado e presente”, com a historiadora Luma Prado, do ISA, e a educadora Poty Poran T. Carlos, da Terra Indígena Jaraguá. Na conversa, a educadora do povo Guarani trouxe a importância dos não-indígenas entenderem a sociodiversidade de povos indígenas. “Cada etnia tem um jeito de viver e de ser”, defendeu.
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Poty Poran, educadora Guarani, com a historiadora Luma Prado, do ISA, em conversa n'A Feira do Livro| Júlio César Almeida/ISA
Poty Poran ainda destacou a necessidade de combater as visões estereotipadas dos indígenas. “Se os portugueses não usam mais caravelas, por que indígenas não podem ter acesso à tecnologia, sem deixar de ser indígenas para isso? “, questionou.
Luma Prado, por sua vez, também apontou a problemática de discutir a temática indígena apenas na efeméride do Dia dos Povos Indígenas, em abril. “Precisamos preencher a história do Brasil com a história dos povos indígenas também na sala de aula”, concluiu.
Poty Poran, educadora indígena, em mesa n'A Feira do Livro|Júlio César Almeida/ISA
Publicações expostas no estande do ISA n'A Feira do Livro|Júlio César Almeida/ISA
Mesa de autógrafos com os autores quilombolas|Júlio César Almeida/ISA
Mesa de autógrafos com os autores quilombolas|Júlio César Almeida/ISA
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Catrapovos garante alimentação saudável para crianças e geração de renda em territórios quilombolas
Iniciativa tem incidência inédita no município de Iporanga (SP), onde a merenda escolar será fornecida pelas próprias comunidades, com alimentos frescos e condizentes com seus hábitos alimentares tradicionais
"Adoramos": os irmãos Salomão Gabriel, 4 anos, e Hermógenes Miguel, 10 anos, experimentam a nova merenda escolar, feita com produtos de sua própria comunidade|Fellipe Abreu/ISA
"O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é um eixo fundamental para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional no país, calcado no emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis [...].”
O direito a uma merenda escolar que respeite a cultura e os hábitos alimentares saudáveis das crianças brasileiras é uma diretriz do Pnae, determinada pelo Ministério da Educação (MEC) por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Seus objetivos são múltiplos. Além da garantia da segurança alimentar e nutricional, a oferta de uma merenda escolar adequada tem por fim ainda a contribuição para a aprendizagem e o rendimento escolar dos estudantes, atuando como uma ferramenta para o desenvolvimento biopsicossocial das crianças que acessam a rede pública de ensino do país.
No entanto, entre determinação e realidade há um abismo. Estudo feito pelo Observatório de Alimentação Escolar (ÓAÊ), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra que, entre 2015 e 2019, 61% dos municípios brasileiros não atenderam ao limite de alimentos ultraprocessados na merenda escolar determinado pelo FNDE.
O contexto se torna ainda mais alarmante ao se considerar que a merenda escolar é a principal refeição para milhões de crianças brasileiras. Recorte do estado do Rio de Janeiro reflete esta realidade. Para a maioria (56%) dos estudantes da região metropolitana da capital fluminense, a alimentação feita na escola representa a principal refeição do dia. Os dados são da pesquisa "Conta Pra Gente Estudante - Grande Rio", divulgada em 2023 pelo ÓAÊ em parceria com a Ação da Cidadania.
O caso Yanomami
Se este cenário apresenta uma realidade delicada para as crianças que vivem na zona urbana e têm relativo contato com alimentos industrializados fora do ambiente escolar, o contexto se torna ainda mais agravado nas escolas localizadas em zonas rurais, principalmente naquelas situadas em territórios de povos e comunidades tradicionais.
Foi justamente assim que, em uma visita técnica à Terra Indígena Yanomami no ano de 2016, o Ministério Público Federal (MPF) constatou a relação entre a má nutrição das crianças e a alimentação fornecida pelas escolas locais. “Escassa, inadequada e descontextualizada, com muitos itens industrializados e enlatados, sem qualquer relação com a produção local e com a cultura da comunidade”, conforme consta em sua avaliação.
Ao analisar a situação, o MPF compreendeu que o fornecimento de alimentos para aquelas escolas consumia mais recursos em transporte e armazenamento do que com a compra de alimentos, de fato. Em razão das longas distâncias e da dificuldade de transporte, as comidas não chegavam ou já se encontravam vencidas ao chegar. Em contraponto, a produção local não era aproveitada na alimentação escolar.
Diante disso, foi montada uma comissão composta por instituições dos governos federal, estadual e municipal, movimentos e lideranças de comunidades tradicionais e organizações da sociedade civil numa tentativa de superar o desinteresse governamental e os entraves da legislação e fomentar a alimentação tradicional nestas escolas.
Ali nascia Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), berço do que viria a ser a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil, instituída em 2021 e que tem por objetivo replicar a iniciativa iniciada no estado do Amazonas em todo o país. Atualmente já existem 16 Comissões instaladas em 15 estados da federação e outras quatro em fase avançada de criação.
Como resultado foi editada uma nota técnica que considera que a produção tradicional de alimentos pelos povos e comunidades tradicionais possuem modos próprios de controle de qualidade e conservação e se dedicam ao autoconsumo, o que adequa determinadas burocracias sanitárias e permite sua compra direta pelo poder público.
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O arroz que fornece para a escola da comunidade, Camilo de Matos colheu da roça que alimenta sua família durante o ano todo|Fellipe Abreu/ISA
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Catrapovos contribui para a valorização do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira|Fellipe Abreu/ISA
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Camilo de Matos, do Quilombo Praia Grande, transporta os alimentos produzidos pelo rio Ribeira de Iguape|Fellipe Abreu/ISA
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Camilo de Matos chega até a escola pela manhã com os produtos frescos que colheu em sua roça|Fellipe Abreu/ISA
Iniciativa chega aos territórios quilombolas
Agora em 2024, desde sua criação, pela primeira vez uma Chamada Pública contemplou comunidades e escolas em territórios quilombolas com a compra de alimentos tradicionais pela Catrapovos no estado de São Paulo.
Ao todo, 179 crianças quilombolas serão beneficiadas pela iniciativa em oito escolas localizadas em sete comunidades: Quilombo Bombas, Quilombo Maria Rosa, Quilombo Nhunguara, Quilombo Pilões, Quilombo Piririca, Quilombo Praia Grande e Quilombo Porto Velho. A chamada pública ainda prevê o atendimento a 61 alunos não quilombolas da rede municipal de educação com o fornecimento de alimentos frescos.
Segurança alimentar, cultura e geração de renda
As questões nutricional e social são o foco da iniciativa. No entanto, ela abarca outro ponto fundamental para o desenvolvimento das comunidades, o econômico. Coordenadora da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Praia Grande, Edilene Geralda de Matos reforça a importância de todos estes pilares.
“Para nós é uma satisfação muito grande operar a merenda por meio da Catrapovos Vale do Ribeira/SP em nossa comunidade. Esta é uma importante possibilidade de geração de renda que se abre para nós e, mais do que isso, é fundamental para manter nossa própria tradição, porque é da cultura do povo quilombola produzir seu próprio alimento. E ainda temos a garantia de que as crianças vão comer nossos alimentos tradicionais e saudáveis, livres de veneno.”
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A merendeira Regianí Afonso separa os alimentos recebidos dos agricultores quilombolas|Fellipe Abreu/ISA
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Com o acompanhamento da nutricionista Mariana Camargo, Regianí prepara a merenda do dia|Fellipe Abreu/ISA
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Os alimentos produzidos nas roças tradicionais quilombolas garantem uma alimentação saudável e livre de veneno|Fellipe Abreu/ISA
A proposta é que cada comunidade forneça alimentos para as escolas de seus próprios territórios. Esta circularidade reforça ainda mais a conexão entre as crianças, a comunidade e o território. É o que explica Ana Cláudia Ribeiro, mãe de dois alunos que estudam na Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental de Praia Grande e também fornecerá produtos de sua roça para a merenda.
“É uma graça para nós estarmos colocando o nosso alimento dentro da escola onde os nossos filhos estudam. E é bonita a participação da comunidade neste processo. Porque juntamos várias famílias para tratar das crianças que estão estudando. E temos a segurança de que elas vão se alimentar das nossas comidas tradicionais e orgânicas.”
Regianí Benedita Afonso é merendeira da rede municipal de ensino de Iporanga. Em sua avaliação, a Catrapovos é muito benéfica para todos que se relacionam com a iniciativa. “Como merendeira, acho superimportante a questão do alimento natural para as nossas crianças. Sempre preparamos tudo o que chegava com muito amor e carinho, mas agora vai ser muito melhor. Esta relação de todos na comunidade também fica bem mais estreita. É bom para todos.”
No caso de Iporanga, a chamada pública foi possível muito em razão do empenho da nutricionista Mariana Camargo Relva da Silva, que há mais de dez anos cuida da gestão nutricional da alimentação das unidades escolares do município.
Para além da importância crucial da oferta de alimentos frescos aos cerca de 240 estudantes que serão impactados pela iniciativa, a nutricionista reforça a relevância estratégica da Catrapovos para o futuro das escolas nos territórios quilombolas de Iporanga.
“O fortalecimento da escola é um dos nossos maiores objetivos. Com poucos alunos, como é o caso desta unidade, a possiblidade de fechamento da escola é muito grande. Então, com este vínculo mais aproximado e com a economia se movimentando em torno da escola, todos começam a ter mais esperança na escola. A comunidade tem a ganhar em todos os aspectos”, revela.
Assessor técnico do Instituto Socioambiental (ISA), Carlos Ribeiro explica que foi necessária grande articulação das associações das comunidades quilombolas do município, entidades parceiras e a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) com a Prefeitura para a viabilização da Chamada Pública em consonância com a nota técnica orientativa do MPF.
E ele resume a importância da iniciativa. “A Catrapovos Vale do Ribeira/SP é importante para as comunidades porque respeita a cultura alimentar das crianças, porque garante a entrega de alimentos frescos e saudáveis nas escolas, além de ser uma ferramenta de garantia da segurança alimentar, de geração de renda local para as famílias e, por fim, de fortalecimento do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira, patrimônio cultural brasileiro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).”
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Ao lado da mãe, Ana Cláudia Ribeiro, Hermógenes Miguel diz que ficou contente ao saber da novidade na merenda escolar e se mostrou ansioso para poder ter na escola sua comida preferida: arroz com galinha caipira|Fellipe Abreu/ISA
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Iniciativa promove o respeito à cultura alimentar das crianças pela oferta de alimentos da culinária tradicional quilombola|Fellipe Abreu/ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Karoline Bezerra Maia: conheça a primeira quilombola promotora de Justiça do Brasil
#ElasQueLutam! Mesmo tardia, nomeação no Ministério Público do Estado do Pará é fruto direto da luta coletiva do movimento quilombola
Na contramão da cultura individualista da sociedade moderna, os modos de vida de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) demonstram que as vivências nunca são somente individuais. O que se vive, se vive junto. O que se luta, se luta junto. E o que se conquista, se conquista junto.
O anúncio da nomeação de Karoline Bezerra Maia como Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, “a primeira quilombola promotora de Justiça da história do Brasil”, é evidência disso.
Maranhense, remanescente do Quilombo Jutaí, localizado no município de Monção, Karoline Maia foi aprovada para um dos cargos mais desejados da carreira jurídica aos 34 anos de idade.
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Nomeação de Karoline Bezerra Maia é simbólica para o movimento quilombola|Arquivo Pessoal
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Karoline em cerimônia de nomeação para Promotoria de Justiça do Ministério Público do Pará|Arquivo Pessoal
Uma conquista improvável aos olhos de parte da sociedade branca descendente daqueles que escravizaram pessoas como os avós de Karoline, ou que até hoje mantêm em suas propriedades trabalhadores em regime análogo à escravidão, como ocorreu com seu pai, Erozino Bezarra Maia, que trabalhou a troco de comida e abrigo.
No entanto, se trata sobretudo de uma conquista real, desejada e muito aguardada pela comunidade quilombola, que há muitos anos vem abrindo caminhos para que esta nomeação fosse possível e, mais do que isso, realizada.
“Maravilhosa! Realização de sonhos e articulações coletivas. Primeira de muitas Promotoras Quilombolas. Você é um arraso, mulher! Inspiração!”, disse a assessora jurídica da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), Rafaela Miranda, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, localizado no município de Iporanga (SP).
“Eu fico emocionada por chegar até onde cheguei. E não quero ser a primeira e única. Eu quero que, a partir deste movimento e toda esta repercussão, venham muitos e muitos mais quilombolas, mulheres, pessoas pretas para que a gente possa, de fato, fazer as instituições mais diversas. Para que, assim, a gente possa ter uma atuação mais eficaz. Que toda esta movimentação possa servir de inspiração para outras meninas pretas, pobres e quilombolas. Não é fácil. Vai ser difícil. Mas é possível”, comemorou Karoline.
Um propósito familiar
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Karoline Maia e o pai, Sr. Erozino|Arquivo Pessoal
Apesar das dificuldades, o pai de Karoline sabia ler e escrever. Ao contrário de sua mãe, Raimunda Bezerra Maia, que não frequentou a escola, integrando a estatística dos quase 10 milhões de brasileiros analfabetos, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Meus pais foram muito humildes, muito simples. Minha mãe assinava com a digital. Os pais dela foram escravizados. Ela trabalhava na roça”, recorda Karoline para pontuar que, mesmo sem terem vivenciado a educação regular, os pais fizeram de tudo para que ela frequentasse a escola. “Hoje eu vejo que eu poder estudar foi um propósito ao qual se dedicou a minha família”, avalia.
Isso porque não é um caminho óbvio para a realidade dos quilombolas no Brasil, como é para as famílias brancas de classe média, uma criança frequentar a escola regularmente até a graduação. Por isso, os pais de Karoline enfrentaram dificuldades ao longo da busca da filha pelos estudos.
Uma delas foi o distanciamento do território, a saída do quilombo para a cidade para ter acesso ao direito constitucional da educação – problema real e muito presente no cotidiano dos quilombolas e dos moradores do campo, principalmente dentre os povos e comunidades tradicionais.
No Brasil, existem cerca de seis mil “localidades quilombolas”, conforme grafa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que contabiliza territórios oficialmente reconhecidos, agrupamentos quilombolas, dentre outras denominações. Mas o Censo Escolar mostra que há 2.526 escolas quilombolas em todo o país. Ou seja, menos da metade destas localidades possui unidade de ensino. Os dados são referentes a 2023.
“Para que eu estudasse, passamos por um processo de desterritorialização. Infelizmente, o poder público não tem políticas públicas efetivas para nossa permanência em nossos territórios. No ano passado mesmo, uma escola quilombola foi fechada em minha comunidade. E isso porque estamos falando de ensino fundamental, porque a partir disso não há outra realidade senão a desterritorialização. É ir morar em casa de parente”, diz Karoline Maia.
Não por acaso, relatório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) aponta que 75% dos quilombolas concluíram o ensino fundamental até 2019, mas apenas 10% completaram o ensino médio até aquele mesmo ano.
Quase desistência
Os pais de Karoline são os personagens centrais da trajetória da promotora. Para que ela estudasse, além de se mudarem para a capital, São Luís, eles também se empenharam para conseguir bolsas de estudos para a filha porbom desempenho escolar, ainda que tivesse de conciliar com trabalhos informais para compor a renda familiar.
“Além de estudar, eu nunca pude deixar de trabalhar. A gente fazia doces para vender na rua, sempre tinha alguma produção em casa que a gente conseguia vender. Meu pai vendia galinha na feira e a gente ia ao Ceasa [Central de Abastecimento] coletar alimentos que o pessoal não conseguiria comercializar, que seriam descartados”, lembra.
E, para garantir a rematrícula e comprar os materiais escolares no início do ano, o Sr. Erozino recorria a empréstimos subsequentes, muito bem calculados para que o próximo ano estivesse assegurado. “O empréstimo terminava em novembro, que era quando ele quitava e fazia outro para garantir as despesas do próximo ano. E assim os anos se seguiam”, conta a promotora.
Quando se formou em 2013, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Karoline foi trabalhar em um escritório de advocacia, mas o trabalho não a completou, assim como os estágios que fez nos Ministérios Públicos Estadual (MPE-MA) e Federal (MPF-MA), que era de onde carregava as melhores memórias de realização profissional.
“[Foi] quando tive contato com ações quilombolas e indígenas. Aquilo tudo ficou em mim. Então eu trabalhava e estudava para concurso, acordando de madrugada e indo dormir bem tarde para conseguir estudar. Mas essa rotina é cansativa. E ainda tem a questão psicológica, porque as reprovações abalam a gente. Então chegou um momento em que eu desisti”, conta.
Foi só durante a pandemia, após o falecimento do pai, que Karoline retomou a rotina de estudos e a coragem para enfrentar os concursos. A mãe já havia falecido quando ela tinha 15 anos de idade em razão de uma complicação pós-cirúrgica. Não a viu formada.
“Meu pai é a minha maior referência, minha grande inspiração. Ele não tinha nada, mas o que tivemos foi ele quem conseguiu. Morávamos numa casa muito precária em São Luís, mas daí ele ganhou no bolão da Quina e pudemos nos mudar para uma casa em melhores condições. Foi tudo isso junto que fez com que eu chegasse até aqui”, remonta Karoline.
Advocacia por necessidade
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Karoline Maia em seu gabinete no Ministério Público do Pará|Arquivo Pessoal
Mas, ao contrário do que parece, cursar Direito não era um sonho, um desejo de infância. Foi a possibilidade de atuar pela causa quilombola que a fez prestar vestibular e investir nesta carreira.
“Fiz Direito influenciada por lutar. Advogar para a comunidade era um sonho do meu pai. E eu acompanhava desde muito pequena toda a luta do movimento, as discussões nas reuniões que eles me levavam. Então, para mim, aquilo era uma necessidade”, conta.
Karoline se lembra das reuniões da comunidade em torno da titulação definitiva do território. “A primeira reunião foi em 2010 e dali para a frente todas as conversas eram sobre o processo emperrado. Nós sempre ficamos por conta da Defensoria Pública Estadual. Mas as coisas não caminhavam.”
Quando começou a compreender melhor do que se tratava a luta de sua comunidade, ela então decidiu se tornar uma operadora do Direito. E foi no estágio que seus olhos se abriram para a carreira de Promotora de Justiça. “É como se a gente pudesse ter voz, se eu pudesse devolver algo para a minha comunidade.”
Uma conquista coletiva
E não foi só a comunidade de Jutaí que comemorou a nomeação de Karoline para o Ministério Público do Estado do Pará. Ao tomar conhecimento da cerimônia de posse para o cargo de Promotora de Justiça, imediatamente as redes sociais se inundaram de publicações em perfis por todo o País. Era a celebração pela conquista coletiva materializada na conquista individual de Karoline.
Uma destas manifestações foi a de Vercilene Dias, assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
"Mais uma mulher quilombola pioneira. Nossa companheira de luta é a primeira mulher quilombola Promotora de Justiça do país. Quero aqui parabenizá-la e também agradecer pelo esforço para chegar até aqui. Sei que não foram poucos os desafios. E desejar muito sucesso na nova jornada que se inicia. Sua conquista, apesar de tardia, adiada por uma estrutura social e de Estado que nos exclui e invisibiliza, nos traz esperança, esperança para as mais de 6 mil comunidades quilombolas do país. Importante para que outras milhares de mulheres e meninas quilombolas possam sonhar e acreditar que é possível", disse.
Natural do território Kalunga, no Estado de Goiás, Vercilene foi a primeira quilombola a se tornar mestre. Hoje doutoranda, é uma referência não só para Karoline, como para inúmeros outros quilombolas que ocuparam espaços no universo acadêmico brasileiro. “É isso, um caminho, um movimento que vai mudando a estrutura de toda uma sociedade em razão do aquilombar”, aponta Karoline.
Uma prova de como a luta abre caminhos e altera as estruturas da sociedade foi a ação afirmativa do Ministério Público do Pará, o primeiro a garantir cotas para quilombolas e indígenas no concurso para Promotores de Justiça, não por livre e espontânea vontade, mas após uma forte incidência do movimento, especialmente da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), cujos representantes chegaram a ocupar o prédio da instituição pública para pressionar pela garantia do espaço, em conjunto com a Associação dos Discentes Quilombolas da Universidade Federal do Pará, conforme recorda a assessora jurídica da Malungu, Flávia Santos.
Vercilene reforça como todas estas são conquistas de luta do movimento que vêm de seus antepassados. “Luta para que a gente conquistasse um espaço no ensino público, para que fizéssemos uma graduação no ensino público, para que tivéssemos ações afirmativas de permanência na universidade, para que ocupássemos um espaço na carreira pública. Do ponto de vista coletivo, é uma conquista importante. Fico muito feliz de ter atuado nesta luta no coletivo.”
Karoline Maia (ao centro) em evento de posse dos Promotores de Justiça do Pará|Arquivo Pessoal
Outra conquista que todas estas mulheres sustentam, em uníssono, é que uma composição mais diversa nas instituições públicas, desde as universidades até os órgãos de Justiça, é a garantia da ampliação da efetivação de direitos no país, contemplando toda sua diversidade.
“A chegada da Karoline neste espaço aumenta a perspectiva do que a Conaq já vem reivindicando sobre o sistema de Justiça, que é um olhar mais sensível e mais atento. Porque o sistema de Justiça que temos hoje é composto majoritariamente por homens héteros brancos. Então ela rompe com isso. E é também um olhar sensível a partir da vivência de quem passou por desafios, que saiu de um lugar de vulnerabilidade para ocupar um espaço de decisão. Isso é extremamente importante sob esta perspectiva de vida, sob o olhar de quem vem da base”, defende Vercilene.
E é o que reconhece a promotora. “Não é só a Karoline Maia que se tornou promotora. Mas é o quilombo, é o aquilombar. É ter um representante de nós. É fazer ser ouvido, fazer ser percebido. É demonstrar que todo este movimento não é por acaso, ele tem um motivo, um propósito e está no caminho certo. E que, aos poucos, a gente está quebrando as barreiras para que mais e mais pessoas quilombolas possam chegar a diversos cargos de diversas instituições.”
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
TRF3 debate aplicação da Consulta Prévia, Livre e Informada pela Justiça brasileira
Para juristas e operadores do Direito, Convenção 169 da OIT é expressa e não admite interpretações
“É chegada a hora de abrirmos as portas do Judiciário para os povos e comunidades tradicionais, sem formalismos e sem o juridiquês”, defende o presidente do TRF3, Desembargador Federal Carlos Muta | Taynara Borges/ISA
Desembargadores, procuradores da República, juízes federais e estaduais, defensores públicos, juristas e advogados populares se juntaram a advogados quilombolas e indígenas em evento no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), com sede na cidade de São Paulo, para se debruçarem sobre a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O dispositivo propõe a garantia de participação de povos e comunidades tradicionais nas tomadas de decisão em situações, propostas pelo governo ou pelo setor produtivo, que impactem suas vidas em seus territórios.
O evento foi proposto em função do lançamento do livro “Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. Assim como o livro, o evento se destinou à avaliação e à discussão da jurisprudência nos tribunais brasileiros acerca do tratado internacional, conhecido como Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, especificamente em seus artigos 6º e 7º, que se dedicam ao direito à consulta.
Aprovado em 1989, em Genebra, na Suíça, e em vigor internacionalmente desde 1991 enquanto Norma Internacional do Trabalho, o instrumento necessitou de um ato formal do Estado brasileiro para ter vigência na legislação nacional. E, embora tenha sido aprovado pela Câmara em 1993, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL nº34/93) só veio a se tornar vigente em 2003, após quase uma década de engavetamento no Senado, onde só obteve aprovação em 2002.
Desde então, compreendido como um instrumento de diálogo entre o Estado e os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), o PDL nº34/93 possui natureza instrumental e acessória ao conjunto de direitos reconhecidos a estas comunidades no arcabouço jurídico brasileiro, nas normas e instrumentos nacionais e internacionais vigentes no país.
Desconhecimento generalizado e deliberado
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O evento “Convenção 169 da OIT na jurisprudência brasileira: perspectivas e desafios” ocorreu nos dias 18 e 19 de abril, no auditório da Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3º Região | Taynara Borges/ISA
Nas palavras dos juristas e operadores do Direito presentes no evento no TRF3, muito embora a Convenção 169 da OIT apresente importantes avanços no reconhecimento e na garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais coletivos de PCTs, e seja compreendido como o instrumento internacional mais atualizado e abrangente no que diz respeito às suas condições de vida, sua aplicação por parte do Estado e sua garantia no âmbito jurídico brasileiro ainda são bastante tímidas.
A razão para isto é o desconhecimento generalizado e deliberado dos agentes estatais que deveriam aplicar as premissas da consulta prévia, livre e informada antes de qualquer tomada de decisão que afete as vivências destas comunidades em seus territórios, como também por aqueles que deveriam garantir sua aplicabilidade no âmbito legal.
Exemplos práticos da aplicabilidade do dispositivo de consulta prévia são os empreendimentos para a geração de energia elétrica, desde as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) espalhadas pelo país, passando por gigantes como a Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, situada à bacia do Rio Xingu, na região norte do Estado do Pará.
Entram nesse grupo também a instalação de plataformas de exploração de petróleo, como em todo o Polígono do Pré-Sal, no mar territorial entre os estados de Santa Catarina e Espírito Santo, a extração de minérios como o potássio no Amazonas, que possui a segunda maior reserva do planeta e incidências administrativas e legislativas que tenham impacto não só no território, mas na rotina, na cultura ou nos modos de vida das comunidades tradicionais.
A determinação da Convenção 169 é para que, antes mesmo de se iniciar o projeto para qualquer que seja o empreendimento ou a tomada de ação que interfira diretamente na vida de PCTs, o direito à consulta prévia, livre e informada seja devidamente aplicado – o que não ocorreu em nenhum dos casos citados e que, quase em sua totalidade, somente ocorre a posteriori, após judicialização, quando os impactos já foram sentidos pelas comunidades. Ou seja, quando já não há mais espaço para o diálogo, uma vez que as decisões já foram tomadas unilateral e arbitrariamente.
O evento “Convenção 169 da OIT na jurisprudência brasileira: perspectivas e desafios” ocorreu nos dias 18 e 19 de abril, no auditório da Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3º Região.
Acompanhe trechos do debate realizado no TRF3 sobre o direito dos Povos e Comunidades Tradicionais à Consulta Prévia, Livre e Informada
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Para Rafaela Santos, o direito à Consulta vem para “equilibrar a balança” das injustiças de uma abolição inconclusa | Taynara Borges/ISA
Somos as primeiras gerações que nascem livres, a minha e a de meu pai. Meus avós foram escravizados. Em 1888 tivemos uma abolição formal, mas inconclusa, da escravidão no Brasil. E foram cem anos de invisibilização jurídica. Passamos a ser sujeitos de direitos em 1988, com a Constituição Federal, a partir da garantia do direito ao território. Mas, mesmo assim, sempre vivemos ameaças atrás de ameaças. O direito à consulta prévia é para equilibrar a balança.
E os Protocolos de Consulta são os regulamentos das próprias comunidades, a partir de como elas se mobilizam, se organizam e se movimentam. Mas o governo vai atropelando os passos. São muitos os vícios que a gente observa. A consulta prévia não é audiência pública, não é mensagem de WhatsApp. Só haverá diálogo se houver um protocolo adequado.
Um dos símbolos da escravidão era a mordaça. E a gente não quer isso mais. A gente quer Anastácia livre!
(Rafaela Santos, Advogada Popular da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras – Eaacone)
É histórica a luta de povos e comunidades tradicionais por fazer valer a Convenção. Temos o marco da Constituição Federal, mas nossa luta por direitos remonta à colonização. Mas, ainda hoje, nossas identidades são pouco reconhecidas. As pessoas entendem que a consulta prévia é uma audiência pública, mas não é. Nós ficamos reféns das interpretações na hora de fazer valer o nosso direito. Tem que respeitar a cultura de cada povo, que é quem determina a forma e o tempo em que querem ser consultados.
O que precisamos debater é o que a gente consegue fazer para avançar no âmbito do sistema de Justiça acerca da observância do direito à consulta prévia. A Convenção deixa isso muito nítido, mas nem todos os juízes têm este entendimento, só os mais flexíveis. Existe um melindre. Mas, em primeiro lugar, é preciso compreender que este é um direito efetivo. O Protocolo de Consulta não deve ser enxergado como um mero rito. O objetivo é ter consentimento. Nosso desafio é fazer o sistema de Justiça entender que este é um direito aderente.
(Yuri Luz, Procurador da República – Ministério Público Federal)
Nós temos compreendido que o processo de consulta é um processo de decolonização. E talvez seja por isso que a gente não tenha conseguido efetivar este direito até hoje. Porque a Convenção 169 vem trazer o poder a estes povos e comunidades. Estamos na etapa 4 de licenciamento de uma gigante exploração de petróleo na Bacia de Santos e até hoje não conseguimos fazer valer este direito. O Ibama diz, desde a etapa 1, que não vai ter impacto nas comunidades indígenas, quilombolas e de pescadores. Só agora conseguimos provar que haverá impacto a estas comunidades. Mas a decisão de explorar ou não foi tomada antes mesmo dos leilões. Então a consulta prévia foi ultrapassada. O que for feito agora soa como figurativo. Colocamos vários ministérios na mesa e eles perguntaram se as centenas de comunidades desde a Bacia de Guanabara até o fim do litoral paulista têm seus devidos Protocolos de Consulta. Mas, na totalidade, elas não têm. E então surge um novo impasse sobre regulamentação. O que seria inverter a lógica do Protocolo.
(Walkíria Picoli, Procurador da República – Ministério Público Federal)
Os Protocolos Comunitários têm o poder de mudar estruturas. O Protocolo é como uma regra básica, e os planos de consulta desenvolvidos a partir daí são a concretização destes Protocolos. É aqui que há um espaço privilegiado para a construção de políticas públicas. E nós precisamos ter como referência que a autoatribuição é o pilar desta discussão. São os povos e comunidades que dizem quem são. E cada um determina seu próprio Protocolo de Consulta.
(Andrew Toshio, Defensor Público do Estado de São Paulo)
Quem deve realizar a consulta prévia é o Estado. E a gente tem um problema grave no planejamento estatal. Mas o Estado brasileiro precisa lançar mão de dispositivos para garantir esta efetivação. Não se constituem direitos sobre os direitos originários. Eles são inalienáveis. Há uma dificuldade em compreender que, quando se trata de PCTs, o movimento parte de baixo para cima, e que este é o único movimento possível para a garantia de direitos. O Estado brasileiro precisa de boa fé e de boa vontade. E o Judiciário, (precisa) compreender que a demora da Justiça gera um vácuo de legalidade, o que abre espaço para a violência. A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que a Convenção 169 é um princípio geral de garantia de direitos, e nós temos o dever de realizar uma defesa intransigente desses direitos.
(Juliana de Paula, assessora jurídica do Instituto Socioambiental – ISA)
Foi uma iniciativa muito importante a organização deste livro. Por isso, parabenizo o ISA e o Observatório. Porque se a Convenção tem um texto expresso e muito literal, como o universo de incerteza e dúvidas se cria? Estas dúvidas são construídas socialmente, a partir da dificuldade de se pensar estes povos e comunidades como detentores do Direito. Todas estas controvérsias têm intencionalidade. Como é o caso das dificuldades na questão fundiária. Se o Direito pressupõe um caráter ético, como alegar confusão entre audiência pública e consulta prévia?
(Maíra Moreira, Pesquisadora do Observatório de Protocolos Comunitários)
Às vezes é preciso explicar aos tribunais que PCTs vão além de povos indígenas. Porque nos deparamos com muitas interpretações, até mesmo de que em territórios não titulados ou não demarcados não precisa de consulta prévia. Estamos passando por isso com as indústrias eólicas. Elas passam por leilões sem a consulta prévia. E estas eólicas estão matando povos e comunidades tradicionais. Outro exemplo foi a transposição do Rio São Francisco, que não realizou consulta, e é bom ter em mente que ainda não terminou. Estas são as energias que são apontadas como limpas, mas que não são.
(Clarissa Marques, Pesquisadora do Observatório de Protocolos Comunitários)
Existe um devido processo legislativo, apoiado no artigo 231 da Constituição Federal que, interpretado à luz da Convenção 169 da OIT, diz que este é um direito constitucional. Logo, se entende enquanto cláusula pétrea. E é importante ressaltar que um dos maiores adversários está em um dos lados da Praça dos Três Poderes: no Congresso Federal. Além disso, os acessos a quem decide são assimétricos. E isso está muito profundamente penetrado nos sistemas de Justiça. É preciso propiciar a democratização destes espaços.
(Daniel Sarmento, Professor Titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
O Judiciário pode se posicionar melhor, aceitando que não sabe. Não podemos pensar que sabemos tudo e impor nossos modos de vida enquanto hegemônicos. Os povos (tradicionais) são vistos como incapazes de decidir por eles mesmos. Há uma recusa das instituições por compreender esta matéria. Isto tem que constar na formação dos magistrados. É essencial. Sem conhecer, a gente pode supor que ele (o direito à Consulta) não existe. E isso pode acarretar no sofrimento e no fim de muitas comunidades.
(Hallana Duarte Miranda, Juíza de Direito Titular da Comarca de Eldorado – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo)
Esta escuta emerge como uma solução premente. Mas os magistrados não sabem destas matérias. Eles estão num ambiente de despreparo. Por que não conseguimos ouvir? Porque temos tempos diferentes. Vamos precisar chegar num meio de caminho para resguardar este País que é tão diverso. Vamos ter de encontrar soluções possíveis. Às vezes me pergunto se somos mesmo civilizados, até mesmo diante de tantos animais irracionais.
(Daniele Maranhão, Desembargadora Federal – TRF1)
Trago não só os conhecimentos da minha ancestralidade, mas acumulei o conhecimento de vocês para estar aqui em pé de igualdade. Além da Convenção, que já tem caráter supralegal, os povos têm os Protocolos de Consulta escritos do jeito que vocês gostam: Times New Roman, tamanho 12. Nós estamos prontos para dialogar quando vocês chegarem. Mas tudo isso afetou nossa organização. São as mulheres que têm o conhecimento ancestral, mas o governo só chama os homens para conversar. Às minhas ancestrais eu honro estar aqui hoje.
Maíra Carneiro, Liderança Pankararu, Assessora da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho)
O paradigma foi mudado em 1988, mas de nada adiantou. Todas as hidrelétricas de lá para cá foram instaladas sem consulta prévia. O que mudou foi o paradigma do direito individual para o coletivo, e isso é fruto de lutas sociais profundas. Lá atrás, quando se compõe o Direito, ele expulsa o coletivo, a mulher e a natureza. E são eles que determinam as perspectivas de futuro. Sem isso nós não temos solução.
(Carlos Marés, Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
É chegada a hora de abrirmos as portas do Judiciário para os povos e comunidades tradicionais, sem formalismos e sem o juridiquês. O juiz federal tem que ser o juiz das massas, de quem foi esquecido ao longo dos séculos. O Judiciário de hoje não pode ser hermético. Temos que ter a capacidade de querer aprender com a sociedade para que ela nos transforme e que a gente use uma nova linguagem, a linguagem dos povos, como uma expressão legítima e dominante.
(Carlos Muta, Desembargador Federal, Presidente do TRF3)
Precisamos mudar o cérebro do nosso país. Ele veio de fora, de cabeças maldosas. Precisamos reflorestar a nossa mente, porque ela está monoculturada. Ñanderu está mostrando que a Terra está muito doente, com 44ºC de febre. E se para o Congresso é tudo negócio, para nós a Terra é mãe. Hoje, para demarcar terra precisa de governo, Justiça, de antropólogo. Mas quando foi para tirar nossas terras não precisou de nada. Eles criaram a Constituição, mas eles mesmos querem assassinar a Constituição. Não respeitam nossos direitos, muito menos o meio ambiente. Para eles, um boi vale mais do que uma criança em nossos territórios.
(Anastácio Peralta Ava Kwarahy Rendyju, liderança Guarani-Kaiowá, graduado em Licenciatura Intercultural Indígena e mestre em Educação e Territorialidade)
Eu tenho muita esperança de que este evento reverbere muito. Porque eu considero este um encontro histórico. Eu não me lembro de um evento como este, com esta presença tão diversa. Então eu tenho a esperança de sensibilizar as pessoas no sentido de dar a conhecer esta realidade e este direito. A Convenção 169 é pouco conhecida, pouco aplicada. Então, dar esta visibilidade é muito oportuno.
(Maria Luiza Grabner, Procuradora Regional da República, Coordenadora do GT Nacional do MPF sobre Comunidades Quilombolas)
Para quem tem martelo, tudo é prego. E assim a Justiça vai sendo aplicada. Então, este evento faz parte de um processo de incorporar nas instituições os princípios constitucionais de um Estado plural que, necessariamente, deve incluir todos os grupos, ouvir e abrir as portas para as pessoas. A gente não pode ficar encastelado, falando para nós mesmos. É interesse da comunidade e é interesse também dos magistrados poder ampliar seus horizontes, suas visões de mundo. Acho que todos só têm a ganhar.
(Cristina Melo, Desembargadora Federal - TRF3)
Assista às mesas do evento
Dia 18.04, manhã:
Dia 18.04, tarde:
Dia 19.04, manhã:
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Quilombolas geram renda reflorestando áreas degradadas da Mata Atlântica
Em encontro anual, coletores da Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira apresentam maior número de integrantes desde sua fundação
Um trabalho que rende frutos nos sentidos literal e figurado. Este é o resultado alcançado pela Rede de Sementes do Vale do Ribeira, que oferta sementes para a restauração de áreas degradadas de Mata Atlântica e gera renda para comunidades quilombolas dos municípios paulistas de Iporanga e Eldorado.
A Rede foi criada em 2017 a partir da reunião de quilombolas da região que iniciaram a coleta de sementes de espécies nativas de seus territórios para disponibilizar ao mercado de reflorestamento. O trabalho deu tão certo que, em 2023, foi formalizada a primeira cooperativa quilombola de coletores de sementes. E, desde então, o grupo extrativista só cresce.
Foi o que ocorreu durante o encontro anual da Rede, nos dias 6 e 7 de maio, quando novos integrantes foram incorporados à Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, que hoje soma 52 cooperados. Ao longo dos dois dias, em assembleia, os coletores ainda deliberaram acerca dos valores praticados sobre as sementes; apresentaram seu estatuto, com as funções e tarefas de cada participante e socializaram o balanço de 2023, com os números de venda e coleta.
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Coletores e apoiadores da Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira se reúnem no encontro anual, onde comemoram balanço de 2023 e traçam estratégias de trabalho para 2024|Taynara Borges/ISA
Ao todo, o grupo comercializou R$ 140 mil no ano passado, fruto da venda de mais de uma tonelada de sementes nativas da Mata Atlântica, que reflorestaram 35 hectares do bioma degradado a partir de uma variedade de 81 espécies como Jaracatiá, Araçá, Tapixingui, Guapiruvu e Mamica-de-Porca.
“Eu quero ser sócio porque eu acredito no trabalho que está sendo desenvolvido pela Cooperativa da Rede de Sementes. Não quero ser só mais um. Quero somar neste trabalho de restauração da floresta, porque, para mim, esta também é uma luta”, declarou o novo cooperado, Amarildo Meiri de França , coletor do Quilombo São Pedro.
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A Rede de Sementes trabalha com o plantio a partir da Muvuca: semeadura direta feita com a mistura de diferentes espécies estrategicamente escolhidas para a área a ser restaurada|Andressa Cabral Botelho/ISA
A Rede de Sementes é um exemplo de como se realiza, na prática, a economia da sociobiodiversidade: o uso sustentável da biodiversidade em atividades que geram renda para os povos e comunidades tradicionais, baseadas numa respeitosa relação destas pessoas com a natureza, o que resulta na preservação do meio ambiente, incidindo desde a mitigação dos efeitos críticos resultantes das mudanças climáticas até a garantia da segurança alimentar, ou seja, na melhoria da qualidade de vida de quem historicamente habita e é guardião da floresta em pé.
Pensando em toda esta cadeia, a coletora e secretária da Cooperativa da Rede, Zélia Morato, do Quilombo André Lopes, provoca: “Quem é que fala que dinheiro não dá em árvore? Dinheiro dá em árvore de pé, sim! Aqui está o exemplo disso. Nós não derrubamos. Nós preservamos as árvores e, assim, sempre vamos ter sementes para coletar”.
“No início achei que isso era impossível. Pensei até que era uma brincadeira. Mas logo entendi o tamanho deste trabalho. E é por isso que estou aqui. Estou aqui para reflorestar, para levar árvores para onde não tem, para onde está degradado. E, desde então, além de ajudar a crescer novas florestas, minha família também tem uma nova fonte de renda. Todo mundo sai ganhando”, declara ela que é uma das primeiras coletoras e articuladoras da Rede.
Você sabia que a Economia Circular, a Bioeconomia, a Agroecologia, e Agrofloresta, a Economia Regenerativa e a Bioconstrução são praticadas pelos Povos e Comunidades Tradicionais há séculos?! E que elas são a base da Economia da Sociobiodiversidade?! Entenda o caminho apontado por indígenas, quilombolas, ribeirinhos e tantas outras comunidades como a possibilidade possível de um futuro sem escassez de água, desmatamento e destruição, reduzindo os impactos de devastação da emergência climática. Assista aqui!
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