Manchetes Socioambientais
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“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
Uma das ameaças que mais cresceu nos últimos anos é o garimpo ilegal. Com o desmonte dos órgãos de fiscalização e controle, como o Ibama e a Funai, o Rio Negro e alguns de seus afluentes vêm sendo cada vez mais invadidos
O Rio Negro é o maior rio de águas pretas do mundo e o sétimo maior em volume de água. Chamado de rio de leite pelos povos originários do Noroeste amazônico, é o rio da vida, o rio por onde a cobra canoa navegou dando origem a povos originários no Amazonas, como os Tukano, Desano, Piratapuia, Tuyuka, Wanano e outros. Em seu curso de cerca de 1.700 quilômetros, que nasce na Colômbia e chega ao Brasil, existem “casas sagradas”, nas quais devemos ter cuidado e respeito se quisermos manter o equilíbrio da vida no mundo.
Na Nova Zelândia, em 2017, o rio Whanganui, terceiro maior do país e vital para o povo Maori, ganhou personalidade jurídica, dada pelo Parlamento neozelandês por reconhecer a relação do rio com os Maori. “A nova legislação é um reconhecimento da conexão profundamente espiritual entre o iwi (tribo) e o seu rio ancestral Whanganui. Agora, o rio passa a ter sua própria identidade jurídica, com todos os direitos e deveres correspondentes”, comemorou o então ministro da Justiça neozelandês, Chris Finlayson, em 2017.
Para a lei neozelandesa, inédita no mundo, “o rio é um ser vivo único que vai das montanhas ao mar, incorporando seus afluentes e todos os seus componentes físicos e metafísicos". Por isso, deve ser tratado como um indivíduo e ter seus direitos respeitados. Após essa conquista, na Índia, o gigante rio Ganges, sagrado para os hindus, também ganhou status de pessoa jurídica, na qual a justiça indiana declarou: “é uma entidade viva com o estatuto de uma pessoa legal”. Os indianos esperam, assim, ter mais força para livrar o Ganges da poluição que vem degradando e ameaçando seu curso.
No Amazonas, convivemos com esse milagre vivo que é o Rio Negro. Suas praias de areia branca, seus igapós, pedras e ilhas, formam paisagens paradisíacas, responsáveis por boa parte do turismo, lazer e beleza do estado. Na capital temos o encontro das águas, um dos símbolos maiores da Amazônia e do Brasil, com os dois gigantes se encontrando e formando o maior rio do mundo: o Amazonas. Porém, para nosso desencanto, presenciamos o avanço da ilegalidade e do profundo desrespeito e descaso com a vida do Rio Negro e tantos outros rios amazônicos. Um verdadeiro show de horrores e de ignorância diante de tanta vida em abundância.
Uma das grandes ameaças ao Negro que mais cresceu nos últimos anos é o garimpo ilegal. Com o desmonte dos órgãos de fiscalização e controle, como o Ibama e a Funai, o Negro e alguns de seus afluentes, vêm sendo cada vez mais invadido por balsas de garimpo, que sequer respeitam as terras indígenas demarcadas e as comunidades que vivem nas suas margens. Em busca de ouro lançam mercúrio nas águas do Negro, contaminando seus peixes, e levando perigo à sobrevivência de milhares de indígenas e ribeirinhos que dependem diretamente de suas águas para viver.
Além disso, todos nós que vivemos no Amazonas e temos a sorte de nos banharmos nas águas do Negro, estamos ameaçados pela contaminação de suas águas por metais pesados oriundos de atividades ilegais predatórias, que mais parecem sair da Idade Média. Em nenhum país sério do mundo, as autoridades do Estado permitiriam tamanha agressão a um patrimônio natural deste porte, responsável por imensa geração de renda pelo seu potencial turístico, assim como por sua sacralidade como um corpo vivo, cuja história se relaciona com os povos originários da Amazônia.
A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que atua em defesa das 750 comunidades e dos 23 povos indígenas rionegrinos, vem denunciando seguidamente e enviando ao Ministério Público Federal (MPF-AM), uma série de fotos, vídeos e relatos sobre essas invasões, grande parte delas ocorridas na região do Médio Rio Negro. O Rio Negro é reconhecido como maior área úmida do planeta de interesse internacional, denominado sítio Ramsar pela Convenção de proteção das áreas úmidas mundiais. Sua bacia é uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta e na região da Cabeça do Cachorro (Alto Rio Negro) se formam os grandes rios voadores, nuvens que levam chuva para demais regiões do país, promovendo o equilíbrio climático e colaborando com a produção agrícola brasileira.
Seja na perspectiva dos povos da Amazônia ou dos Maori na Nova Zelândia, os valores indígenas de ligação com a natureza - numa relação ética de reciprocidade e de dimensão do sagrado diante da criação - são essenciais para que possamos resolver os grandes problemas ambientais que enfrentamos. O nosso Rio Negro pede socorro e todos nós que já nos banhamos em suas águas pretas devemos nos comprometer a protegê-lo. É no mínimo um dever ético com as nossas crianças, jovens e as gerações que estão por vir.
* Juliana Radler é jornalista com especialização em meio ambiente e analista de políticas socioambientais do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA). Artigo originalmente publicado no jornal A Crística
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Gravado na comunidade de Serra de Mucura, Alto Rio Negro, filme mostra práticas de cura e proteção usadas no enfrentamento à Covid-19
A comunidade de Serra de Mucura, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), guarda algumas das Casas dos Conhecimentos da região do Rio Tiquié, na Bacia do Rio Negro, segundo a tradição indígena. Ao chegar à aldeia, em meio à floresta amazônica, é possível ver grandes pedras e, na localidade, há quatro grutas que representam Casas de Conhecimento Yepamasã. Mais conhecidas como malocas, delas teriam se originado alguns dos povos da região e que, antes de virem ao mundo, viajaram no bojo de uma grande cobra. São os Pamurimasa – Gente de Transformação, na tradução da língua Tukano. Gente que detém um conjunto de conhecimentos – masise - para cura e proteção.
Pamurimasa masise – A Ciência da Gente da Transformação é um documentário produzido em conjunto pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e traz o raro e delicado registro das conversas e troca de saberes entre esses conhecedores.
O filme será lançado em 23 de setembro em Manaus, no Centro de Medicina Indígena (Bahserikowi), com a presença dos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas) e conhecedores Damião Amaral Barbosa, Yebamasã, morador de São Felipe, e de Rogelino da Cruz Alves Azevedo, Tukano, da comunidade de São José, ambas comunidades na região do Tiquié.
Em seguida, no dia 26, haverá novo lançamento, dessa vez em São Gabriel da Cachoeira, na Maloca – Casa do Saber da Foirn, com a presença do antropólogo indígena e assessor e analista de pesquisa e desenvolvimento socioambiental do ISA, Dagoberto Azevedo, além de Damião e Rogelino.
O documentário foi gravado na comunidade de Serra de Mucura, em dezembro de 2020, quando aconteceu o 1º Encontro de Conhecedores Tradicionais Indígenas sobre a Covid-19, reunindo etnias como Tukano, Desano, Tuyuka, Tariano, Yebamasã e Makuna.
Debates, entrevistas, conversas e rituais foram gravados pelo documentarista Christian Braga, pelo Aima Mauro Pedrosa, do povo Tukano, integrante da Rede Wayuri de Comunicadores Indígena, e Edilson Villegas, do povo Tuyuka.
Registrado em línguas indígenas da região, principalmente o Tukano, Pamurimasa masise não só mostra os saberes indígenas, mas traz a reflexão sobre a necessidade de valorização dos povos indígenas, sua ciência e sua medicina, integradas a um conjunto de conhecimentos cosmológicos.
No cenário de incerteza causado pela pandemia da Covid-19, os moradores da região do Rio Negro aplicaram seus próprios conhecimentos para proteção e cura, envolvendo desde o uso de plantas dos quintais, das roças e da floresta para chás, benzimentos e curações. Entre as práticas protetivas estão os basese (benzimentos) e rituais de proteção.
E no relato desses povos – são 23 etnias convivendo no território do Alto e Médio Rio Negro em área dos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos – a pandemia só não causou mais danos devido aos cuidados indígenas.
“Os Pamurimasa têm seu próprio conhecimento, seu próprio modo de explicar. Por isso Ciência dos Pamurimasa. O filme trata de como os Kumûa (pajés/especialistas) puderam trazer conhecimentos muito importantes sobre prevenir, corrigir, neutralizar algumas doenças. O uso desse conhecimento na língua Tukano chama basese. Isso que trata este documentário”, explica o antropólogo indígena Dagoberto Azevedo.
Ele diz que o filme ajuda não indígenas a compreenderem o conjunto de conhecimentos que formam a ciência dos indígenas, além de ser uma importante forma de buscar o reconhecimento desse sistema complexo de saberes.
“A partir desse documentário, convidamos o não indígena ao diálogo sobre tratamentos e atendimentos conjuntos unindo os saberes dos Pamurimasa e dos não indígenas. E buscar que essa prática conjunta possa ser reconhecida e incentivada por políticas públicas”, afirma.
Participaram do encontro em Serra de Mucura cerca de 60 pessoas entre especialistas, conhecedores, professores, agentes de saúde indígena (AISs), Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas) e comunicadores da Rede Wayuri. O único pajé Yaí a participar foi Jairo Lodoño, sendo essa especialidade rara atualmente.
Coordenador-adjunto do Programa Rio Negro do ISA, o antropólogo Aloísio Cabalzar considera que a reação dos indígenas do Rio Negro à pandemia da Covid-19 reforçou a autonomia desses povos. “É uma maneira própria de enfrentamento e tem um lado também de autoconfiança, pois os indígenas têm os próprios recursos para lidar com isso, sem tanta dependência”, explica.
Vice-presidente da Foirn, Nildo Fontes, do povo Tukano, alerta que a valorização desses conhecimentos de cura e proteção é primordial para a sustentabilidade da região, pois fazem parte de um sistema complexo e integrado de saberes que envolve ciclos ambientais, trocas, cultura e saúde. “Esse encontro e o filme criam a expectativa de valorização. A tendência, se não for feito isso, é que as pessoas detentoras desses conhecimentos não consigam dar continuidade a seus trabalhos”, defende.
São Gabriel é o município do país com maior concentração de população indígena e foi fortemente atingido pela Covid-19, chegando a ocupar o primeiro lugar no ranking de cidade com maior índice de contaminação no comparativo por 100 mil habitantes. Temia-se uma tragédia, com grande número de mortos, pois na região há dificuldades de acesso aos serviços de saúde e, além disso, os indígenas são considerados mais vulneráveis a determinadas doenças respiratórias.
Segundo informações do Governo do Estado do Amazonas, até 14 de setembro, o número de casos da Covid-19 chegava a 615.181 confirmados, com 14.307 óbitos – uma taxa de letalidade de 2,3%. Em São Gabriel da Cachoeira eram, até essa data, 11.033 casos e 113 óbitos (taxa de letalidade de 1%). No município de Santa Isabel do Rio Negro eram 3.194 casos e 57 óbitos, enquanto em Barcelos são 5.359 confirmações e 60 mortes. Esses são os três principais municípios da região do Alto e Médio Rio Negro.
Pamurimasa Masise – A Ciência da Gente de Transformação
Sinopse:
Práticas ancestrais de proteção e cura utilizadas por povos indígenas do Rio Negro, no Amazonas, foram fortalecidas durante a pandemia da Covid-19.
Frente à ameaça do vírus e ao cenário de incerteza mundial, esses povos aplicaram seus próprios conhecimentos para criar um protocolo que envolveu desde o uso de plantas dos quintais, das roças e da floresta para chás, benzimentos e defumações, incluindo a realização de rituais sagrados.
Ao final de 2020, encontro realizado na comunidade Serra de Mucura, no rio Tiquié, município de São Gabriel da Cachoeira (AM), numa das áreas mais preservadas da Amazônia, reuniu especialistas indígenas de etnias como Tukano, Desano, Tuyuka, Tariano, Yebamasã e Makuna para intercâmbio de conhecimentos.
A maior parte das trocas de experiência aconteceu na língua Tukano. O Pamurimasa masise – Ciência dos Pamurimasa ou Ciência da Gente de Transformação – é um documentário que traz o delicado e raro registro dessa troca de saberes entre os conhecedores.
Lançamento em Manaus:
23 de setembro, sexta-feira
Centro de Medicina Indígena • Bahserikowi
Rua Bernardo Ramos, 97, Centro
Lançamento em São Gabriel da Cachoeira:
26 de setembro, segunda-feira
Maloca - Casa do Saber da Foirn
Avenida Álvaro Maia, 79, Centro
Ficha técnica
Filmagem
Christian Braga
Edilson Villegas, povo Tuyuka
Mauro Pedrosa, povo Tukano
Roteiro, edição e finalização
Raquel Uendi
Produção e entrevistas
Juliana Radler - ISA
Conselho Editorial
Aloisio Cabalzar – ISA
Dagoberto Azevedo, povo Tukano – ISA
Juliana Radler – ISA
Nildo Fontes, povo Tukano – FOIRN
Tradução Tukano – Português
Dagoberto Azevedo, povo Tukano
Mediador e tradutor da linguagem dos Kumuã
Damião Amaral Barbosa, povo Yeba-Masã
Fotos das grutas e cavernas
Vilmar Rezende Azevedo, povo Tukano
Roberval Pedrosa, povo Tukano
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Com a morte do indígena, o destino de sua terra é incerto. Indigenistas temem que ela seja entregue aos algozes de seu povo
Em 2018, cenas inéditas da Funai comprovaram novamente a existência de Tanaru, indígena que ficou conhecido como o "índio do buraco".
O nome fazia referência ao refúgio que o último sobrevivente de seu povo cavava na terra para fugir da expansão das frentes de colonização no interior de Rondônia.
Na última quarta-feira (24/8), ele foi encontrado em seu tapiri, “deitado na rede e paramentado com penas de arara como se esperasse a morte”, conforme relatos.
Documentos oficiais mostram que, desde 1973, quando o Incra iniciou o trabalho de colonização do Vale do rio Corumbiara, no sul de Rondônia, já se sabia da existência de diferentes povos indígenas não contatados ou isolados na região.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, foram dezenas de relatos de massacres e fugas, enquanto avançavam o desmatamento e a abertura de fazendas.
Os indigenistas Marcelo dos Santos e Altair Algayer insistiram na identificação desses povos. Ambos faziam parte da Frente de Contato Guaporé, hoje convertida em Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé e, além de sofrerem ameaças, eram acusados de forjar a presença dos indígenas na área.
Um dos responsáveis por abrir a porteira foi Romero Jucá, na época presidente da Funai (1986-1988). Ele suspendeu as restrições que protegiam os territórios da gleba Corumbiara e distribuiu a terra onde os indígenas viviam a fazendeiros e madeireiros.
Buscando documentar a situação, os indigenistas organizaram em 1995 uma expedição e, além da imprensa, contaram com o antropólogo e cinegrafista do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Vincent Carelli.
A equipe encontrou ainda uma família com cinco indígenas Kanoê, na região do rio Omerê, que indicaram a existência de outro grupo de isolados na mesma área, os “Akuntsu”. Os 20 anos de filmagens deram origem ao documentário “Corumbiara” (2009), que denuncia o massacre de indígenas em 1985.
“Corumbiara” trouxe o primeiro registro do “índio do buraco”, feito em 1996. Nele, a câmera expõe o rosto assustado de Tanaru e registra para o mundo a solidão do sobrevivente de genocídio.
Desde então, a opção do indígena pelo isolamento passou a ser respaldada por uma portaria da Funai de restrição de uso, estabelecida pela primeira vez em 1997. A Portaria 1.040/2015 foi prorrogada por mais 10 anos, garantindo a interdição da área até 2025.
“Acho que ele vai ficar lá sozinho mesmo e vai ter suas dificuldades para sobreviver lá dentro (...) A gente acha que, talvez, nesse momento, ele vai pedir ajuda e espero que a gente esteja ali perto para ajudá-lo nesse final de vida”, disse Altair em depoimento ao livro “Cercos e Resistências: Povos Indígenas Isolados na Amazônia Brasileira” (2019), do Instituto Socioambiental (ISA).
Com a morte de Tanaru, o destino de sua terra é incerto. Indigenistas temem que a floresta protegida pelo isolado possa ser entregue aos algozes de seu povo. Para eles, a área deveria se tornar um monumento à resistência dos povos indígenas e de Tanaru, semeado na floresta que ele viveu para proteger. Até o final.
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Nos bastidores, em parceria com a campanha #IsoladosOuDizimados, artistas vão trazer uma mensagem especial sobre indígenas que rejeitam contato com o resto da sociedade
“A gente nunca pensou que a nossa música atravessaria o nosso território, agora, estamos no Rock in Rio. Isso é um sonho pra gente, mas também é uma retomada” conta Bruno, integrante e criador do Brô Mc 's, primeiro grupo musical indígena a pisar no festival Rock in Rio. Eles se apresentam no próximo dia 3 de setembro no palco Sunset, a convite do artista e rapper carioca, Xamã.
A realidade dos artistas indígenas Bruno Vn, Tio Creb, Kelvin Mbaretê e CH, integrantes do Brô, é o retrato real da pressão do agronegócio sobre as terras indígenas. Eles moram nas aldeias Bororo e Jaguapiru, quase que engolidos por grandes fazendas monocultoras situadas no município de Dourados, em Mato Grosso do Sul, a 235 quilômetros de Campo Grande.
Os artistas vivem em pequenos terrenos, encurralados pelo mar de fazendas do agronegócio que rodeiam a reserva Francisco Horta Barbosa, sobreposta às suas aldeias. Com pouco mais de 3,5 mil hectares, a reserva conta com a maior quantidade populacional indígena por metro quadrado no país, e chega a abrigar aproximadamente 20 mil indígenas dos povos Terena, Guarani e Kaiowá.
Essa condição é a prova viva da contradição dos discursos presidenciais de Bolsonaro: nessa reserva, visivelmente “é muito índio pra pouca terra”. A alta densidade populacional nas aldeias, o preconceito e a violência vivenciados pelos indígenas têm reflexo direto em uma taxa de suicídios três vezes maior do que a média nacional.
Foi por viverem imersos nessa cena de conflito e morte, que Bruno começou a se identificar com o rap. Em 2007, ainda criança, se sentiu atraído por um programa de rádio chamado “Ritmos na Batida”, que vez ou outra tocava rap, ritmo até então desconhecido e que logo ganhou atenção da aldeia. O flow de protesto cativou Bruno, que logo começou a se expressar, cantar e compor com seu irmão Clemerson.
Impulsionados por um professor, eles começaram timidamente a se apresentar em escolas e outros pequenos espaços culturais de Dourados e, finalmente, em 2009, Kelvin e Charlie também se aproximaram do rap e decidiram criar o primeiro grupo de rap indígena do Brasil. “Brô” é uma gíria comum entre os jovens da região e faz referência a palavra em inglês “brother”, que significa irmão, e deu o nome ao grupo.
“Eu entendi que essa era a minha forma para lutar em defesa da retomada do meu território sagrado. Eu me identificava com a raiva e indignação dos Racionais Mc’s, entendia que o que eles cantavam ali era fruto da injustiça. O que vivemos aqui é isso também [injustiça], por isso decidimos cantar”, diz Bruno.
Em suas letras - cantadas majoritariamente em guarani e Kaiowá - os Brô’s entoam e denunciam as consequências do empobrecimento cíclico em que seu povo foi condicionado, falam para os “seus” sobre o confinamento humano no espaço em que vivem, alertam sobre pressão e falta de oportunidade para os indígenas dessa região e reforçam suas ancestralidades e a importância das suas casas de reza.
Além da angústia e da denúncia das injustiças que os indígenas vivem, o Brô’s também anuncia a luta e resistência do seu povo através das retomadas.“Não é só uma questão política. As retomadas são um último suspiro para que a vida continue a existir. Não temos espaço para plantar, sofremos preconceito aqui. Estamos retomando nossas terras para viver”, explica Kelvin.
O movimento de reapropriação das terras ancestrais por parte dos indígenas Guarani e Kaiowá está se fortalecendo nos últimos anos, e é uma forma que eles encontraram de reivindicar seus territórios que foram sendo roubados pelo lobby do agronegócio.
As chamadas retomadas, que começaram a emergir nos anos 1980 e prosseguem até hoje, buscam a ocupação dos territórios que foram suprimidos dos indígenas. Em Mato Grosso do Sul, são ao todo 70 retomadas, que hoje protagonizam uma zona de conflito direto de ruralistas contra os indígenas da região, só neste ano.
As casas de sapé, vistas de longe, representam o símbolo da resistência do povo Guarani e Kaiowá: a reza. Ali, as casas de reza cobertas de palha são instrumento de luta e existência.
Clemerson, na foto, faz um sinal de reza, ele diz que esse símbolo representa seu povo, pois não é a forma mais direta de defesa.
“Não temos armas para combater os helicópteros que bombardeiam injustamente as nossas retomadas, temos a reza, única defesa desse povo”, afirma Clemerson. Retomada também será o nome do álbum que o grupo divulgará em breve.
Retomada e demarcação dos artistas indígenas
Após 13 anos de existência, o grupo ainda cria suas músicas em um espaço improvisado, construído pelo pai de Bruno e Clemerson. Ali, naquele quarto que se transformou em um estúdio, o grupo compõe, grava e difunde seu som de maneira independente.
A produção das músicas, em sua maioria, é feita inteiramente pelo grupo, que além de compor, realiza a gravação e mixagem de todas as suas composições. Apesar dos equipamentos de baixo custo, eles conseguem atingir um nível de qualidade sonora que impressiona seus parceiros.
Com apoio do cantor e DJ Alok, está em construção o estúdio e a produção do segundo disco oficial do grupo, previsto para lançamento em breve. A estrutura desse estúdio pretende apoiar outros rappers indígenas na produção musical.
Frente a tantas mudanças, os Brô’s atravessaram o seu território. E agora, estão a caminho do Rock in Rio. Após 37 anos de festival, que foi fundamental na consolidação de grandes nomes nacionais e internacionais, tornando-se parte da história e da cultura do nosso país, somente agora se reconhece a importância da presença indígena nesse espaço.
É com esperança de visibilidade que os Brô Mc’s chegam ao palco e tomam, em retomada, a cena artística do país.
“Eu falei que um dia a gente ia subir e retomar aquele palco do Rock in Rio, em uma vez que estive no Rio, há anos. Eu chamo de retomada porque estamos tomando o espaço como artista indígena, você não vê artistas indígenas em grandes palcos. Estamos fazendo a retomada, abrindo caminho para que outros artistas indígenas possam também estar nesse espaço e em outros, não vamos mais deixar de retomar”, comenta Bruno.
Brôs denunciam pressão aos isolados
O Brô, além de demarcar espaços em grandes palcos de disputa artística internacional, como o Rock in Rio, também atua em outras frentes para alertar a sociedade sobre a condição dos povos indígenas no Brasil. Em breve, será lançada uma animação, com música inédita do Brô Mc’s, que alerta sobre a condição dos povos indígenas isolados. Fiquem ligados!
O Chamado dos Isolados é uma produção que contará com uma música de autoria própria do grupo, em parceria com a comunicadora Lídia Guajajara, para alertar a sociedade sobre a atual condição dos povos indígenas que vivem em isolamento.
“Pra gente, compor e fazer parte da campanha é fortalecer a luta dos povos indígenas e fazer com que as pessoas conheçam a importância dos nossos parentes isolados”, diz CH.
A campanha #IsoladosOuDizimados alerta para o risco que povos indígenas isolados de quatro áreas diferentes no país correm, caso o governo federal não tome providências legais para a proteção desses territórios.
Em dezembro de 2022, as TIs Pirititi (RR), Jacareúba-Katawixi (AM), Piripikura (MT) estarão desprotegidas, pois os dispositivos que garantem sua sobrevivência, as Portarias de Restrição de Uso, vão vencer.
A campanha, assinada pela coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), têm o objetivo de recolher assinaturas através de uma petição para pressionar a Funai a renovar as portarias e avançar com os processos de demarcação definitiva dos territórios.
Acesse a petição e ajude a proteger esses povos e seus territórios.
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Pesquisa em Antropologia de João Paulo Barreto, do povo Tukano, se dedica à desconstrução de termos pejorativos e padronizados de práticas de saúde indígenas
A tradução de conceitos por trás de expressões e culturas indígenas – evitando termos pejorativos e padronizados – permeia a tese “Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma ‘teoria’ sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro”, do doutor em Antropologia João Paulo Lima Barreto, indígena do povo Yebamasã (Tukano). A pesquisa acaba de ser escolhida como melhor tese de Antropologia e Arqueologia de 2022 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O desafio de traduzir conceitos é caracterizado por João Paulo Barreto como decolonização pelas palavras. “Decolonizar é primeiro desconstruir palavras que parecem tão inocentes, mas não são. E colocar outras no lugar. Meu pai não é benzedor. Meu pai é Kumu, um especialista indígena. Não temos um conjunto de saberes tradicionais, temos medicina indígena”, afirma Barreto, que vem de uma família de Kumuã (plural de Kumu) e cita seu pai, Ovídio Barreto. Ele explica que as práticas de saúde, que ele chama de medicina indígena, são uma parte de um sistema complexo de conhecimento indígena.
Na tese premiada, Barreto explora a forma como os indígenas, sobretudo do Alto Rio Negro, entendem o corpo e por qual razão esse conhecimento é importante para a construção da relação com o entorno. Egresso do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS/Ufam), ele fez sua defesa em fevereiro de 2021 e foi o primeiro indígena a obter doutorado nessa instituição.
Filósofo e antropólogo, João Paulo Barreto é da comunidade de São Domingos Sávio, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM) e vive em Manaus, onde atua como pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai/Ufam). Ele é fundador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi.
Logo após saber da premiação da Capes, João Paulo Barreto chegou a São Gabriel para participar do I Encontro da Juventude Yanomami, em Maturacá, no Território Indígena Yanomami. A convite da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), ele falou sobre medicina indígena.
Em entrevista na sede do Instituto Socioambiental (ISA), em São Gabriel, o pesquisador conversou sobre a premiação — considerada por ele fruto do movimento indígena e de políticas afirmativas — os desafios da decolonização e os sonhos que tem de contribuir com projetos que fortaleçam a medicina indígena.
O ISA e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) vêm apoiando encontros de especialistas indígenas para troca de conhecimentos e discussões sobre a medicina indígena na região do Rio Negro. Em 2020, foi realizado um encontro em Serra de Mucura e, no ano passado, a comunidade de Caruru Cachoeira recebeu os conhecedores. Ambas estão no Rio Tiquié.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com João Paulo de Lima Barreto.
João Paulo, inicialmente eu gostaria que você se apresentasse.
Eu sou Yupuri, da etnia Yepamahsã, mais conhecida como Tukano, sou do Rio Tiquié, da comunidade São Domingos Sávio. Eu sou graduado em Filosofia, mestre e doutor em Antropologia.
Sua tese acaba de ser premiada na 17ª edição do Prêmio Capes de Tese, que reconhece os melhores trabalhos de conclusão de doutorado defendidos no Brasil em 2021. Você pode falar sobre a premiação?
A minha tese é fruto de uma luta de longos anos. Não é só a minha parte, mas uma luta coletiva. Eu digo isso porque eu sou fruto da política de ações afirmativas. A gente sabe que as políticas afirmativas estão sendo implementadas como uma conquista da luta do movimento indígena. Essa luta acontece há mais de 30 anos, mas as ações começaram a ser implementadas pelo governo somente nos últimos anos. Eu sempre falo com os jovens que nossa presença na universidade é de grande responsabilidade, porque vem também de uma luta do movimento.
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Em São Gabriel, Médicos Sem Fronteiras combate Covid-19 respeitando rituais indígenas
Essa premiação é importante para os jovens indígenas que estão entrando agora nas universidades?
O governo e o sistema olham a política afirmativa como um favor. Mas o movimento indígena sempre colocou que a gente reivindica um espaço nas universidades, nas instituições de graduação do ponto de vista das diferenças. O nosso sistema de conhecimento é diferente do sistema de conhecimento científico. Portanto, não dá para a gente discutir um conhecimento homogêneo, o que a gente chama de monocultura. Estamos discutindo a pluricultura. E muitas vezes o sistema de ensino não está aberto para isso.
A luta do momento indígena é nesse sentido: para que nós tenhamos acesso de forma diferenciada, mas como povo diferente, não como política afirmativa. Então, eu tenho me pautado muito na minha vida acadêmica, nessa política de mostrar que a luta do movimento indígena não é do ponto de vista da justiça social, mas das diferenças epistemológicas. Por isso a política afirmativa é uma reivindicação do movimento indígena: para que os indígenas, jovens indígenas, entrem na universidade e levem o conhecimento indígena.
E como essa questão das diferenças entre os conhecimentos está presente na sua tese?
O conhecimento indígena não é melhor nem pior: é diferente. Mas nas universidades há uma relação assimétrica. Daí vem todo um palavreado que é criado para o nosso modelo de conhecimento. Por exemplo, é muito triste ver meu pai, que é Kumu, e meus tios Kumuã serem chamados de benzedores, de curandeiros. Primeiro, que não tem essas categorias dentro do nosso conhecimento. Não tem noção de espírito, de sagrado. Não são nossos conceitos. São conceitos religiosos, dentro da lógica ocidental.
E quando você pega essas categorias ou esses conceitos e aplica pra entender nossa cultura, você distancia, traduz de forma equivocada. Daí vêm essas palavrinhas: sagrado, espírito, rezador, benzedor. Meu pai não é padre, não é freira, não é pastor, ele não está benzendo. No Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena (Neai), eu e outros pesquisadores como o Dagoberto Azevedo, povo Tukano, Justino Sarmento, Tuyuka, Gabriel Sodré Maia, Tukano, Sílvio Sanches, Bará e Jaime Moura Fernandes, Desano, buscamos juntos definir palavras, termos que possam expressar aquele sentido que a gente quer falar. Portanto, minha tese vem também desse fruto de compartilhamento coletivo.
A sua pesquisa propõe novos conceitos?
O esforço que a gente faz é pensar o pensamento indígena. É olhar o nosso conhecimento além da mera tradução. O exercício que eu faço é de tradução dos sentidos, dos conceitos indígenas. É entender essa lógica acadêmica e conseguir fazer essa tradução de sentido. Então é necessário parar de ficar reproduzindo palavras. Para mim, decolonizar significa primeiro desconstruir palavras que parecem inocentes, mas não são. E colocar outras formas de expressão. E isso não é fácil, é sofrido e doloroso. Então nesse sentido é desafiador para os jovens indígenas desconstruir, inclusive desconstruir palavras. Para decolonizar tem que começar pelas palavras.
Você poderia dar algum exemplo?
Como estou discutindo a questão da saúde e doença, tento trazer as palavras que médicos e enfermeiros possam entender. Para os Kumuã, estamos usando o termo especialistas indígenas. E usamos também medicina indígena, no lugar de termos como conhecimento tradicional, saberes, conhecimento milenar e tratamento alternativo.
Outro exemplo é sobre esse remédio que a gente compra na farmácia e nada mais é que uma manipulação química das coisas. Mas o Kumu não precisa fazer isso. Ele precisa saber a taxonomia dos vegetais e vai evocar essas características para curar. Então, ele não está rezando, ele está fazendo uma manipulação metaquímica das coisas. Com essa linguagem talvez seja possível as pessoas entenderem o que que está ocorrendo ali.
Você tem novos projetos?
Projeto individual eu não tenho, mas eu tenho sonhos. Sonhos de concretizar o que eu acabo de falar. Eu não quero fazer coisas de forma paralela, sozinho. Nós temos já muita coisa produzida e nós temos muita coisa acontecendo e eu gostaria de ter oportunidade de somar com isso, com a minha comunidade, com as ONGs.
Venho dizendo que não dá pra gente ficar pensando agora porque as coisas estão acontecendo: suicídio, muitas pessoas diabéticas, pessoas com hipertensão. No meu ponto de vista, trata-se de descuido. Porque a gente não faz mais o cuidado da parte das nossas concepções. É importante termos espaços para a medicina indígena e criar informações e dados, acompanhar sistematicamente.
Experiência dolorosa
A tese “Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma ‘teoria’ sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro”, de João Paulo de Lima Barreto, do povo Yebamasã, foi impulsionada por uma experiência pessoal dolorosa do pesquisador.
Em 2009, sua sobrinha, então com nove anos, foi picada por uma cobra em uma comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira. O quadro se agravou e a criança foi levada a Manaus, onde os médicos quiseram amputar a perna ferida.
A família propôs um tratamento conjunto dos médicos e o Kumuã, mas a proposta não foi aceita. Eles então procuraram o amparo do Ministério Público e conseguiram que o procedimento não fosse feito.
A menina foi curada e, apesar de ter perdido o movimento do pé, não teve o membro amputado. Hoje ela vive em São Gabriel da Cachoeira. “O médico dizia que não ia permitir a entrada do pajé no hospital cantando, dançando, pulando, fazendo fumaça. Está no imaginário da sociedade brasileira essa imagem do pajé de cocar. Isso tem que ser desconstruído”, diz Barreto.
Serviço
O mundo em mim - Uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no Alto Rio Negro
Autor: João Paulo Lima Barreto
Dimensões:17 x 23 cm
Peso: 500g
Formato: Papel / Brochura
Páginas: 260
1a Edição - 2022
ISBN 978-65-87337-12-8
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Lideranças Yanomami e Ye'kwana lançam hotsite e filme inédito para celebrar os 30 anos da demarcação da Terra Indígena Yanomami
Somando às celebrações dos 30 anos de homologação da Terra Indígena Yanomami, as Associações que formam o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana lançam agora o hotsite especial “Yanomami 30 Anos - O Futuro é Indígena”. Estreiam ainda um mini-documentário sobre o encontro entre lideranças locais e aliados históricos na comunidade Xihopi, no final de maio, para comemorar as últimas décadas e traçar estratégias de enfrentamento ao garimpo ilegal, a principal ameaça à sobrevivência das comunidades.
Durante todo o ano de 2022, o Fórum e seus parceiros organizam eventos e iniciativas culturais para relembrar e reverenciar a conquista histórica que garantiu a homologação em área contínua da maior Terra Indígena do Brasil, em 25 de maio de 1992 e, assim, "segurou o céu" para que os povos Yanomami e Ye’kwana, incluindo os grupos isolados, continuassem a viver conforme sua cultura.
“Não se pode destruir a terra sagrada. Que seja respeitada, junto com as crianças-futuro e também junto com os pajés. O território Yanomami pertence ao povo Yanomami”, afirma o xamã e grande liderança Yanomami Davi Kopenawa.
Além do filme, a plataforma digital apresenta uma linha do tempo da luta dos Yanomami desde os primeiros contatos, em 1950, e uma agenda de eventos que vão ocorrer ao longo dos próximos meses, entre exposições, filmes e livros. Além de muitas imagens e informações, o novo site também convida os visitantes à doar para a Hutukara Associação Yanomami, que precisa do apoio de todos para fazer frente às pressões e ameaças enfrentadas pelo território, comunidades e lideranças.
Os eventos e conteúdos de celebração dos 30 anos da Terra Indígena Yanomami contam com apoio do Instituto Socioambiental (ISA) e da Embaixada da Noruega e são realizados em parceria com a Descoloniza Filmes, a Aruac Filmes, o Grupo Companhia das Letras, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Instituto Moreira Salles e a Editora Ubu.
Assista ao mini-doc:
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Human Rights Watch afirmou que o governo brasileiro transformou a Funai em um órgão que coloca os povos indígenas em risco; Saiba essas e outras notícias no Fique Sabendo da quinzena
Bomba da Quinzena
No mês do Dia Internacional dos Povos Indígenas, a organização internacional Human Rights Watch chamou a atenção para as políticas adotadas pelo governo brasileiro que ameaçam os direitos dos povos indígenas. Segundo a organização, foram emitidas normativas prejudiciais aos povos indígenas e suspensas as demarcações de suas terras tradicionais.
“O governo brasileiro transformou a agência encarregada de promover e proteger os direitos indígenas em uma agência que colocou esses direitos em risco”, disse Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil.
De acordo com a organização, a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi profundamente enfraquecida durante a atual gestão federal, assim como órgãos federais de proteção ambiental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Além disso, três servidores da Funai e um procurador da República disseram à HRW que o atual presidente, Marcelo Xavier, criou um clima de medo e intimidação no órgão. Servidores também afirmaram, segundo a HRW, que o órgão rotineiramente nega autorização para viagens a Terras Indígenas que estão em processo de demarcação e que introduziu obstáculos burocráticos que dificultam o trabalho de proteção territorial.
Parte desse desmonte pode ser explicado pela queda significativa nos últimos oito anos do orçamento de órgãos federais com funções socioambientais O fundo do poço, porém, foi atingido na atual gestão federal, com o menor valor dos últimos 17 anos. O dado faz parte do relatório “O financiamento da gestão ambiental no Brasil: uma avaliação a partir do orçamento público federal", feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os cortes afetam áreas como a do combate ao desmatamento e às queimadas, oficialização e manutenção de Áreas Protegidas e proteção a comunidades indígenas e tradicionais.
Extra
Neste Agosto Indígena, todos os olhares internacionais seguem voltados para o Brasil. A situação dos povos e das Terras Indígenas está na pauta da Organização das Nações Unidas (ONU). Na segunda-feira que antecedeu o Dia Internacional dos Povos Indígenas, a relatora da ONU que monitora a situação dos defensores de direitos humanos, Mary Lawlor, se reuniu com lideranças dos povos Guarani-Kaiowá e com vítimas de ataques sofridos na região de Dourados e Amambai, no Mato Grosso do Sul.
Um dos relatos ouvidos por Lawlor foi o de um adolescente indígena de 14 anos baleado numa operação policial na região de Amambai. Outro relato foi dado por uma estudante indígena que, na mesma operação, recebeu uma bala de raspão na cabeça. Lideranças de outras áreas indígenas também informaram a ONU sobre as constantes ameaças por parte de pistoleiros, principalmente onde há reivindicação pela demarcação das terras.
A pauta deve seguir no radar da organização. Ainda no fim de agosto, entidades da sociedade civil devem se reunir na sede da ONU em Genebra para questionar a situação dos direitos humanos no Brasil e a pauta indígena deve receber bastante destaque.
Isso vale um mapa
Em agosto é celebrado o Dia Internacional dos Povos Indígenas, que busca garantir direitos aos diversos povos indígenas no mundo todo. Segundo as últimas estimativas do IBGE, existem mais de um milhão de indígenas no Brasil (IBGE 2020), com presença em mais de 500 municípios. No Brasil, existem 256 diferentes povos indígenas, espalhados por todo o território. Essas Terras Indígenas somam 726 áreas, ocupando 13,6% do país.
Apesar dos números expressivos, ser indígena no Brasil é ter que batalhar diariamente para manter seus direitos. Segundo uma pesquisa do De Olho Nos Ruralistas, 297 Terras Indígenas estão cadastradas em nome de milhares de pessoas físicas ou jurídicas, por mais que essas áreas sejam protegidas constitucionalmente.
Cinco dessas terras possuem toda sua área sobrepostas ao Cadastro Ambiental Rural (CAR): Maró, no Pará, Herarekã Xetá, no Paraná, Taquara, no Mato Grosso do Sul, Fortaleza do Patauá, no Amazonas, e Jarara, também no Mato Grosso do Sul.
Baú Socioambiental
Para remexer o baú, relembramos a Terra Indígena Yanomami, que recentemente completou 30 anos de demarcação. "Yanomami" na expressão yanõmami thëpë, significa "seres humanos". Localizada entre os estados de Roraima e Amazonas, a TI Yanomami é a maior Terra Indígena do Brasil!
Território de milhares de indígenas de diversos povos, dentre eles os Yanomami, os Ye'kwana e também de isolados, como os Surucucu/Kataroa, a TI Yanomami está sob ataque do garimpo e da violência institucional.
Estima-se que 20 mil garimpeiros explorem ilegalmente a região. A presença do garimpo traz desmatamento e poluição, além de doenças e violações aos povos originários. Para denunciar as ameaças crescentes que pressionam o território, a Hutukara Associação Yanomami produziu o relatório Yanomami Sob Ataque, que entre outras coisas, demonstra que em 2021 o garimpo ilegal avançou 46% em comparação com 2020.
Socioambiental se escreve junto
O mês de agosto conta com uma vasta programação para aqueles que querem conhecer mais sobre os povos indígenas e suas culturas. É o caso do recém-inaugurado Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, que planejou exposições, palestras, performances artísticas e debates ao longo desse mês. Além disso, os visitantes do museu podem também conferir exposições temporárias de artistas indígenas, como Denilson Baniwa e Xadalu Tupã Jekupé.
Em agosto também aconteceu o lançamento de uma websérie produzida por jovens indígenas de quatro povos que se reuniram na aldeia Wani Wani, na Terra Capoto-Jarina, no Mato Grosso, com a missão de se tornarem narradores da própria história.
A websérie conta com sete curtas-metragens e o primeiro episódio já foi disponibilizado nas redes sociais do Instituto Raoni. Os curtas abordam a vida dos povos indígenas através de cenas do cotidiano, com partes encenadas, entrevistas em português e em línguas nativas, além de cenas que resgatam e preservam suas histórias e culturas.
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#ElasQueLutam! Influenciadora e apresentadora leva os saberes tradicionais, a política indigenista e o ativismo climático para o centro do debate com carisma e criatividade
Quando criança, Samela Sateré Mawé gostava de colecionar moedas que sua avó trazia de presente de viagens internacionais, brincar com as roupas de frio da matriarca da família e ver suas fotos em lugares distantes. Como defensora dos direitos das mulheres indígenas, Zenilda Sateré, a avó, vivia levando as demandas das comunidades originárias para fora do país. E foi a estas lembranças que Samela retornou quando ela viajou para Escócia em novembro de 2021, para participar da COP 26.
“Quando eu vi todas aquelas pessoas fazendo entrevista minha, batendo foto minha, eu lembrei de toda essa infância. E isso me tocou muito, porque eu falei: ‘estou traçando o mesmo caminho que a minha avó traçou há muito tempo’”, recorda.
A participação na COP 26 veio porque Samela desponta hoje como uma importante liderança indígena e ativista, cujo campo de atuação reside notadamente na internet. Comunicadora e influenciadora digital, ela já conta com mais de 76 mil seguidores em seu perfil pessoal do Instagram, onde explica pautas da política indigenista e dos costumes dos povos originários com carisma e criatividade.
As mulheres sempre foram referência para Samela, a começar pela avó e pela mãe, Regina Sateré Mawé. “São elas que abriram caminho para mim”, conta. “Mas eu me inspiro em todas elas: na Sônia [Guajarara], na Célia [Xakriabá], na Alessandra [Munduruku]. Eu tenho muito respeito e queria ser algum dia como elas”.
Samela cresceu dentro da Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé, entidade criada por Zenilda Sateré após sua chegada em Manaus (AM).
A organização promove o artesanato feito pelas mulheres do povo e o protagonismo político dessas lideranças. Desde pequena, ela frequenta reuniões e marchas do movimento indígena.
“Eu sempre participei, mas nos bastidores, vendendo artesanato, ou pintando, acompanhando minha mãe”, conta.
Quando era pequena, lembra, ficava sentada no chão desenhando enquanto escutava as adultas discutindo pautas e reivindicações.
“E sempre foram pelos mesmos objetivos: luta por terra, educação, saúde, língua, identidade”. Por isso, costuma dizer que sempre foi ativista, ainda que só tenha aprendido o significado da palavra quando já era um pouco mais velha.
Ela se recorda bem desse momento: estava nos primeiros anos da faculdade de Biologia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e comentou que precisaria sair mais cedo para ir a um ato com sua família. Foi quando uma colega perguntou: ‘vocês são ativistas?’ e ela percebeu que não sabia exatamente o que aquilo queria dizer. ‘São pessoas que lutam por alguma causa’, respondeu a colega.
Refletindo sobre a expressão, Samela concluiu que não existe outro jeito de existir sendo indígena. “Não tem um momento da nossa vida em que a gente escolhe sermos ativistas dos direitos humanos, dos direitos dos Povos Indígenas, ativistas ambientais. A gente nasce e todas essas causas se entrelaçam no nosso dia a dia,” aponta. “É uma palavra nova para descrever o que a gente já faz há muito tempo.”
Protagonismo e comunicação
Foi na universidade, também, que Samela começou a ganhar maior notoriedade como jovem liderança indígena. “A gente precisava se reunir para garantir o direito à permanência. E, como eu era uma das pessoas que nasceu no movimento, eu tinha um posicionamento [e] mais embasamento para falar”, afirma. Ela se uniu ao Movimento de Estudantes Indígenas do Amazonas, do qual participa até hoje.
No entanto, o salto de jovem ativista local para nacional se deu durante a pandemia de Covid-19. Quando a Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (AMISM) começou a confeccionar máscaras de tecido, foi preciso uma porta-voz para divulgar os produtos, discutir as pressões da pandemia sobre o povo Sateré Mawé e fortalecer a presença online da entidade. Foi aí que Samela entrou.
“As mulheres não tinham muita afinidade com as câmeras. Então, eu vim mais para a parte do ativismo digital, [de participar] de entrevistas, rodas de conversa, lives,” comenta. “Foi como se você passasse a vida toda escutando e chegasse um momento que você colocasse para fora tudo o que você aprendeu”.
O espaço em frente às câmeras foi se tornando mais confortável e Samela se descobriu comunicadora. “A pandemia escancarou as portas da internet para muitas pessoas, e nós fomos entrando nesse universo e demarcando as redes; as telas”, complementa.
A desenvoltura para fazer vídeos e se expressar no meio digital chamou a atenção de outros perfis, como o do Canal Reload, iniciativa que pretende fazer jornalismo para a juventude, com linguagem leve e descomplicada. Samela foi indicada pela equipe do site Amazônia Real, com quem havia participado de uma oficina sobre redes sociais e comunicação digital em 2018 e para quem já era uma jovem comunicadora em potencial. Hoje, Samela é uma das apresentadoras do canal, para quem produz conteúdo sobre as pautas indígenas e socioambientais.
“Foi muito bom, porque eu comecei a dialogar mais, gesticular mais, ser mais desenvolta. E aí eu já comecei a mediar rodas de conversa; uma coisa foi levando à outra”, diz.
Samela também atraiu os olhares de Sonia Guajajara, ex-coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “[Ela] viu meus vídeos descomplicando as notícias sobre povos indígenas e falou: ‘eu quero essa menina bem aqui’”, ri. Samela passou a integrar também a equipe de comunicação da Apib e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), ajudando na gestão das redes sociais, fazendo vídeos-convite para atos e na cobertura de eventos como o Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas.
Assista ao vídeo com Samela Sateré Mawé!
“A gente se enxerga na nossa etnomídia. Nós somos os protagonistas da nossa história, nós estamos mostrando o que está acontecendo com o nosso povo, nos nossos territórios,” explica. “Então se tornou uma ferramenta de luta, resistência e decolonização.”
Ativismo climático
Também durante a pandemia de Covid-19, a organização Fridays For Future Brasil a procurou para que ajudasse a mapear as necessidades das comunidades indígenas da Amazônia e viabilizar doações de cestas básicas, kits de higiene e ambulâncias.
Samela juntou-se ao movimento, criado pela sueca Greta Thunberg, e se descobriu ativista climática. “A pauta ambiental não se dissocia da pauta indígena, porque os territórios indígenas são os que mais preservam a biodiversidade, a flora, a fauna,” reflete. “Quando há uma grande taxa de desmatamento, há um desequilíbrio no clima. E nós, Povos Indígenas, impedimos que isso aconteça”.
Para Samela, participar das discussões sobre as mudanças climáticas é também conseguir aliar o conhecimento tradicional e o científico, um dos desafios principais que ela, como estudante de Biologia, busca solucionar.
“A gente sempre viu homens brancos discutindo sobre clima, [mas] eles muitas vezes nunca passaram pelo que a gente passa. Eles nunca vão saber o que é desigualdade social,” comenta. “Estamos lutando para ocupar esses espaços [de decisão], porque nós, comunidades indígenas, pretas e periféricas, somos os que mais sofrem as consequências das mudanças climáticas”, argumenta.
Além da COP 26, ela também esteve, mais recentemente, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo+50). “Eu fiquei feliz de ver o protagonismo da juventude e dos povos indígenas. Mas [saí] querendo mais, porque a gente só estava nos espaços de construção, não nos de tomada de decisão”.
A mais jovem de uma linha familiar de mulheres guerreiras, Samela reconhece que esta primavera da juventude indígena vem na sequência da tomada de protagonismo por suas mães.
“Antes, [eram] os homens que saiam das suas aldeias para discutir políticas públicas. Quando a gente precisou de uma grande massa de mulheres para fazer a diferença no movimento, elas vieram, mas não vieram sozinhas. Elas trouxeram seus filhos”, explica. Filhos estes que cresceram no movimento indígena, como a própria Samela, e que hoje contribuem com as ferramentas que dominam: a internet e o celular.
“Os desafios são justamente as minhas fortalezas: ser jovem, mulher, indígena”, aponta, uma vez que todas essas categorias vêm, frequentemente, acompanhadas de descrédito, machismo e preconceitos. “Mas eu gosto de ter conhecimento para poder combater tudo isso. As pessoas nem ousam questionar a minha identidade, porque sabem que vão receber uma resposta à altura”, finaliza.
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Exposição do artista indígena conta com mais de 90 desenhos e fica de 29 de julho a 30 de outubro em cartaz
Sonhos, espíritos-xapiri, animais, o cotidiano do povo que segura o céu: meses depois de a Terra Indígena Yanomami completar 30 anos de sua homologação, cenas singulares da Urihi-A, a terra-floresta yanomami, vão ocupar o Museu de Arte de São Paulo (Masp), sob os olhos do artista Joseca Yanomami.
Joseca Yanomami: nossa terra-floresta é a exposição do artista que estará em cartaz entre os dias 29 de julho e 30 de outubro. Ela reúne 93 desenhos, que expressam de forma sensível os detalhes da cosmovisão yanomami, os seres visíveis e invisíveis com quem os indígenas dividem a floresta e a luta cotidiana desse povo para preservar sua identidade diante das ameaças do garimpo ilegal.
“Quando eu aprendi a desenhar, eu ouvia os pajés cantando e eu gravava na minha cabeça para desenhar depois”, Joseca contou ao ISA em 2021. “Desenho os parentes, os animais, árvores, os passarinhos, araras, macacos, antas, peixes”.
Todos os desenhos estavam sob a guarda do Instituto Socioambiental (ISA) e foram comprados de Joseca e doados ao Masp.
Joseca
Joseca nasceu na década de 1970, na região do Demini, Terra Indígena Yanomami, e começou a desenhar e a esculpir animais notáveis em madeira no início dos anos 2000. Antes disso, ele havia sido o primeiro estudioso de línguas e professor da comunidade Watorikɨ, no início dos anos 1990 e também o primeiro Yanomami a trabalhar na área de saúde.
Desde 2003, as obras do artista são exibidas em importantes instituições de arte e ajudam a fortalecer a luta Yanomami e a divulgar os saberes dos indígenas para o Brasil e o mundo. Atualmente, além da exposição no Masp, seus desenhos podem ser vistos na mostra “Les Vivants”, da Fundação Cartier, em Lille (França) e também na exposição “Rooted Beings”, no Wellcome Collection Museum, em Londres (Inglaterra).
Ehuana
À mostra em Lille, somam-se ainda os desenhos de Ehuana Yaira, artista, artesã e pesquisadora da comunidade Watorikɨ. Primeira mulher Yanomami a escrever um livro em sua própria língua e a primeira da sua região a ocupar o cargo de professora, Ehuana se interessou pela arte ao contribuir com uma investigação sobre plantas medicinais, um conhecimento de domínio feminino.
Primeira artista yanomami, suas obras registram o cotidiano das mulheres yanomami a partir da ótica singular com a qual Ehuana retrata sua própria vida. São cenas coletando alimentos na floresta, pescando com timbó, na roça, carregando lenha, cuidando das crianças, facilitando partos, além do ritual da primeira menstruação e outros temas caros ao cotidiano das mulheres yanomami. Ela apresentou seus desenhos pela primeira vez na mostra “Árvores”, que passou por Paris em 2019 e por Xangai, na China, em 2021.
Yanomami Sob Ataque
A maior Terra Indígena do Brasil, distribuída entre os estados de Roraima e Amazonas, está invadida por mais de 20 mil garimpeiros ilegais. De acordo com o mais recente relatório da Hutukara Associação Yanomami, o garimpo cresceu nada menos que 3.350% entre 2016 e 2020.
Conforme denúncias dos indígenas, a atividade ilegal fez explodir os casos de malária no território, promoveu o completo colapso do sistema de saúde e intensificou os ataques de grupos criminosos às comunidades locais.
Serviço
Exposição “Joseca Yanomami: nossa terra-floresta”
Quando: 29 de julho a 30 de outubro
Onde: Museu de Arte de São Paulo (Masp) - Av. Paulista, 1578, Bela Vista, São Paulo
Valores: R$50, com meia-entrada para estudantes, idosos e professores. Gratuito às terças-feiras.
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Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) se uniu ao ato de servidores e também pediu a exoneração do presidente Marcelo Xavier e justiça por Dom Phillips e Bruno Pereira
Uma manifestação multiétnica, com discursos nas línguas Yanomami, Tukano e Baniwa, e organizada pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), se somou à mobilização de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) em São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, nesta quinta-feira (23/6).
Em várias partes do país, aconteceram protestos pelo crime bárbaro contra o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira e pela saída do presidente da Funai, Marcelo Xavier.
Cerca de 120 pessoas, entre lideranças indígenas, professores, mulheres, crianças e indigenistas participaram do ato em frente à Coordenação Regional do Rio Negro (CR-RNG) da Funai. Em seguida, os manifestantes seguiram em passeata até a Maloca/Casa do Saber, na sede da Foirn. Protestos aconteceram ainda em Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, municípios da região do Rio Negro.
Diretor-presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré, disse que os indígenas do Rio Negro querem ser reconhecidos por sua riqueza multiétnica, mas demandam políticas públicas e segurança para o território e reforço na estrutura da Funai. “Estamos fazendo o papel do Estado. Foi assim durante a pandemia, no combate à Covid-19, e está sendo assim para garantir a segurança nos nossos territórios”, disse.
Falando em nome dos 23 povos indígenas da região do Rio Negro, Marivelton Baré leu uma carta-manifesto da Foirn contra o desmantelamento da política indigenista no Brasil, denunciando o enfraquecimento proposital das iniciativas de proteção e monitoramento territorial — o que abre espaço para pressão do garimpo e do narcotráfico, atrapalhando as atividades da economia sustentável.
“Nos últimos três anos, as invasões aos territórios indígenas no Rio Negro aumentaram vertiginosamente. Existem no momento registrados pela Funai Rio Negro 10 denúncias de garimpos ilegais na região, assim como denúncias crescentes da atuação do narcotráfico em vários afluentes da margem direita do Rio Negro, como os rios Marié, Téa, Jurubaxi e Uneuixi. A atuação de bandidos na região afeta as atividades produtivas sustentáveis dos povos indígenas, como o turismo de base comunitária e a agricultura, além de trazer medo e insegurança para as comunidades indígenas”, afirma o texto.
São Gabriel da Cachoeira é conhecida por ser a cidade com maior concentração de população indígena no país, reunindo povos como os Baniwa, Tukano, Baré, Yanomami, Arapasso, Tuyuka e Piratapuya.
Com pintura tradicional, o tuxaua Carlos Lopes, do povo Yanomami, morador da comunidade de Maturacá, fez um duro discurso em sua língua, alertando para os constantes ataques dos homens brancos.
A liderança demonstrou tristeza pela morte de Dom e Bruno e se disse preocupado com o avanço do garimpo ilegal e com a morte de crianças. “Eu sou Yanomami real. Quando foi criado o Brasil, já existia Yanomami verdadeiro. Mas como o branco veio querendo destruir a gente?”, questionou.
Presentes no protesto, lideranças femininas denunciaram a falta de políticas públicas e pediram mais saúde, segurança e educação para os indígenas. Diretora da Foirn, Janete Alves, do povo Desana, falou na língua indígena Tukano.
“A gente tem nosso direito, a gente tem nosso Planto de Gestão Territorial e Ambiental, é nosso plano de vida, a gente quer implementar e por isso estamos lutando. Peço o fortalecimento das mulheres, estamos lutando contra a violência. Queremos respeito a nossos direitos e queremos fortalecer o bem-viver dos povos indígenas do Rio Negro”, ressaltou.
A professora e liderança Auxiliadora Fernandes, do povo Dâw, mobilizou estudantes para que participassem do ato. O povo Dâw vive na comunidade Waruá, em frente à principal orla de São Gabriel, e para chegar à cidade precisa atravessar trecho do Rio Negro. Já durante a travessia, o grupo veio levantando faixas de frases de protesto, cobrando seus direitos.
No ato em São Gabriel, os servidores da Funai leram também uma carta-manifesto, intitulada “Nenhuma gota de sangue a mais”. Além de manifestarem profunda tristeza e indignação pelo crime contra Dom e Bruno, os indigenistas cobraram responsabilização dos culpados e exigiram melhoria na estrutura de trabalho e segurança para a execução de atividades para promover e proteger os direitos dos povos indígenas.
Estiveram à frente da mobilização a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef/Fenadsef), a Associação Nacional dos Servidores da Funai (Ansef) e a Indigenistas Associados (INA), que pedem a saída do atual presidente da Funai, Marcelo Xavier.
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