Documento reconhece esforços do governo, mas exige ações urgentes, como o combate à malária
Surucucu, conhecida como a região das serras e uma das regiões mais populosas da Terra Indígena Yanomami, foi o palco do VI Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, reunindo mais de 550 pessoas para discussões na mais alta instância de decisões da Terra Indígena Yanomami de 20 a 24 de outubro.
O grande encontro deste ano resultou na Carta de Surucucu, direcionada ao Governo Federal. Os Yanomami e Ye‘kwana reconheceram os esforços que têm sido feitos desde a criação da Casa de Governo em fevereiro de 2024 e exigiram ações ainda necessárias, especialmente no combate à malária e na proteção territorial.
“As decisões aqui apresentadas não são palavras soltas. Elas são a nossa legítima voz e vontade, e é assim que devem ser tratadas, conforme manda o nosso protocolo de consulta”, diz trecho do documento que foca no combate ao garimpo e malária, além de pedir por educação adequada às necessidades do território.
Com a Carta de Surucucu, as lideranças também pedem ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Ministério da Justiça (MJ) que criem forças tarefas a fim de que o Poder Judiciário conclua inquéritos de investigação e processos em aberto.
“É hora de responsabilizar os chefes, os grandes criminosos! A lentidão da justiça pode levar à prescrição desses crimes”, diz trecho do documento.
Chegada a Kori Yauopë
Waihiri Hekurari, anfitrião do VI Fórum, começou a receber os convidados na comunidade Kori Yauopë dois dias antes do início do evento. Quando a equipe do Instituto Socioambiental chegou ao local, Waihiri se dividia entre cumprimentar os visitantes e trabalhar nos últimos ajustes das casas construídas para alojamento durante o Fórum.
Uma das vozes mais expressivas no combate ao garimpo e nas denúncias de descaso durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), Waihiri ficou mundialmente conhecido como Júnior Hekurari - nome que abandonou por sentir a necessidade de uma alcunha mais adulta e diretamente ligada a língua do seu povo. O novo nome carrega o mesmo peso que a palavra “guerreiro” em português.
Surucucu foi uma das regiões mais afetadas pelo garimpo ilegal durante a gestão Bolsonaro. Consequentemente também sofreu com a explosão de casos de malária e chocou o mundo com fotos de crianças e idosos desnutridos. Waihiri lembra o quanto temeu por seu povo.
“A Terra Indígena Yanomami sofreu uma invasão dos garimpeiros e foi bem próximo a minha comunidade, nós ficamos bem assustados com o incentivo que o ex-presidente Jair Bolsonaro fazia para os garimpeiros invadirem. Ele não nos protegeu como presidente do Brasil”, afirmou.
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) instaurou a Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em janeiro de 2023, Surucucu rapidamente se tornou um dos pontos de atenção do governo.
“Eu ando muito nas comunidades e estou vendo a floresta renascer, estou vendo as águas renascerem e isso é ótimo para podermos viver sem adoecer de novo, mas não temos a garantia de como vai ser amanhã se a Casa de Governo for retirada. As ações do governo são provisórias, não tem lei que obrigue a manter toda esta operação”, pontua Waihiri.
A comunidade de Hekurari ganhou o primeiro Centro de Referência em Saúde Indígena do Brasil. Uma unidade inaugurada em 06 de setembro e que, conforme o Governo Federal, tem capacidade para beneficiar cerca de 10 mil indígenas de 60 comunidades, reduzindo remoções de média e alta complexidade para a cidade. Embora o Centro esteja pronto e equipado, os Yanomami ainda aguardam a chegada de profissionais qualificados para que os exames sejam realizados.
Uma imensidão de gente
Quando o VI Fórum começou na manhã ensolarada do dia 20, os representantes de diferentes regiões entraram no xapono se apresentando com cantos tradicionais, pintados com urucum e jenipapo e segurando flechas apontadas para cima. O momento cultural logo deu espaço para que cada associação apresentasse por uma hora as ações que têm feito em benefício dos Yanomami e Ye’kwana.
O resto da semana oscilou entre manhãs que começavam frias mesmo quando o sol podia ser visto enquanto a comunidade estava envolta em neblina e dias que mudavam rapidamente de ensolarado para tempestades. Mas nada disso impediu que os indígenas seguissem discutindo sobre educação, governança, projetos de crédito extraordinário e proteção territorial.
O xapono escolhido para abrigar as discussões ganhou uma arquibancada de madeira capaz de manter até 400 pessoas sentadas. Quando os indígenas sentavam nas fileiras, a casa coletiva era preenchida pelas mais diversas cores vibrantes de suas roupas e das penas que compunham seus adornos e artefatos. Uma verdadeira imensidão de gente.
Nos intervalos, os indígenas pegavam pratos de comida, sentavam ao redor do Xapono, esqueciam o celular e conversavam. E este cenário é o que Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami, descreve como o sonho dele para o futuro da Terra Indígena Yanomami: sem internet, sem invasores, com saúde e o silêncio da floresta.
“Minha família está toda aqui porque todos são meus parentes e estão todos bonitos, pintados e fazendo uma festa no VI Fórum de Lideranças”, disse Kopenawa.
De frente para a arquibancada dentro do xapono, quatro grandes mesas estavam posicionadas e ocupadas principalmente pelos representantes das sete associações que compõem a frente de governança do maior território indígena do Brasil.
Se nos últimos dois anos os Yanomami e Ye’kwana chamaram o governo para dialogar e prestar contas, desta vez optaram por fortalecer as relações internas com um diálogo centrado nas necessidades apresentadas pelos indígenas que vivem na base e em apresentações de iniciativas das associações nos últimos anos. Embora descrevam a relação com o atual governo como boa, as lideranças tomaram esta decisão a fim de articular melhor a mensagem do que desejam do Estado de agora em diante.
“Lula está tentando consertar o que outras autoridades estragaram, principalmente Jair Bolsonaro que não foi bom presidente para governar o nosso Brasil. Enquanto o Lula é uma pessoa que gosta da natureza, que gosta da beleza e gosta de nós e cumpriu com a palavra que ele nos prometeu. Mas precisa continuar protegendo a nossa terra e não deixar entrar garimpeiros. Nós estamos juntos neste caminho”, afirmou Kopenawa.
Pelo segundo ano consecutivo, uma pequena delegação de Yanomami e Ye’kwana da Venezuela participou do Fórum de Lideranças. Anñelito Hernandez, que veio da comunidade San Martín, localizada no Alto Ventuari, disse que a participação foi importante para entender os avanços que as associações brasileiras tiveram.
“Vimos que existe um acompanhamento por parte do Estado, um compromisso com as comunidades. Também é importante para que possamos trocar informações sobre o que acontece na Amazônia venezuelana e brasileira. Precisamos discutir o futuro da natureza, da biodiversidade e existência dos povos originários”, afirmou.
Na Venezuela, o primeiro passo para demarcação de um território é a aprovação do Protocolo de Consulta. No entanto, há quase duas décadas o governo não valida protocolos de consulta de povos indígenas.
Pedidos contra o garimpo
Elayne Rodrigues Maciel, coordenadora da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye'kuana da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), foi uma das poucas representantes governamentais convidada ao evento. Maciel aproveitou o momento para explicar que o diálogo entre as comunidades e associações é imprescindível para a compreensão da necessidade de novas bases de proteção e postos de vigilância da Funai.
“A gente precisa de muito apoio dos indígenas porque muito do que sai de operações é do que eles trazem de apoio para nós. Não temos como adivinhar onde os garimpeiros estão escondidos se não houver os indígenas para informar para nós onde estão os garimpeiros”, disse.
Maciel também explicou que as forças de segurança estão atuando de forma conjunta para combater o garimpo e apreender materiais retirados ilegalmente de terras indígenas. No início de agosto deste ano, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) fez a maior apreensão de ouro da história do país na BR-401 em Boa Vista.
“O que eu peço a sociedade não indígena é que não compre porque quando vocês compram ouro estão financiando a invasão de outras terras indígenas. Eu sei que o ouro tem importância na vida dos não indígenas, é visto como algo bonito, mas causa sofrimento aos povos da floresta. Seja amigo do povo Yanomami porque não queremos mais chorar pela procura do ouro dentro da nossa terra”, suplicou Waihiri Hekurari.
A Carta de Surucucu indica que a FUNAI precisa avançar na implementação das Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) e apoiar o Plano de Vigilância Indígena da Terra Indígena Yanomami.
Ainda referente ao combate ao garimpo, as lideranças pedem no documento que haja celeridade nos inquéritos e julgamentos de garimpeiros e financiadores da atividade ilegal, manutenção da Casa de Governo e operações de desintrusão, além de aprovação do Projeto de Lei 3.776/2024, que prevê aumento de penas mínimas.
Pedidos sobre Saúde
Conforme a Carta de Surucucu, houve 14.615 casos positivos de malária só nos primeiros oito meses deste ano. A quantidade é preocupante, pois a população Yanomami é estimada em cerca de 30 mil pessoas. O documento aponta que há esforços para reestruturação da Saúde e que houve uma queda de 20% no número de casos positivos em comparação ao mesmo período de 2024, mas pedem que as equipes de saúde foquem no diagnóstico rápido.
“É preciso que as equipes do DSEI-YY, junto com nossos agentes de saúde indígena, estejam presentes nas nossas comunidades, fazendo busca ativa e oferecendo tratamentos imediatos para romper o ciclo da malária”, diz trecho da carta.
A presidenta da Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), Carlinha Lins, demonstrou preocupação com a saúde das mulheres que vivem no território.
“Em nome das mulheres, o meu desejo é que haja formações para podermos usar remédios que nos são dados da natureza, um fortalecimento da medicina tradicional e das parteiras”, disse, acrescentando estar preocupada com o número de casos de câncer de colo de útero.
Neste ano, mulheres Agentes de Saúde Indígena (AIS) foram formadas para prevenção do câncer de colo de útero e o tema também foi discutido durante o XVI Encontro de Mulheres Yanomami.
Pedido sobre Educação
A carta também reforça o desejo dos Yanomami e Ye’kwana por uma educação diferenciada com Territórios Etnoeducacionais como caminho para terem acesso a escolas diferenciadas, bilíngues e interculturais.
“Os jovens cobram a gente. Na minha comunidade, eles nos cobram por ajuda na educação, é o principal pedido. Eles querem o fim das invasões e querem frequentar escolas”, pontuou Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume).
Neste ano, a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) formou os três primeiros mestres Yanomami. Eles tiveram uma atenção especial desde a fase do pré-projeto, que foram escritos em língua nativa, até as aulas que chegaram a ocorrer dentro da comunidade com a presença de professores universitários. Provando que com a adaptação necessária, os Yanomami e Ye’kwana podem chegar a novos espaços e contribuir com ciência e educação a partir da própria cosmovisão.
O documento das lideranças solicita uma reunião com representantes do Ministério da Educação na Terra Indígena Yanomami. Eles solicitam ainda que a reunião respeite o tempo das lideranças e o Protocolo de Consulta.
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